Carta de desapego
Sou uma praga viva.
Voando e rastejando pela noite, em busca de sangue novo, carne fresca, alma nova e sonhos bons.
Passo sugando energias positivas a minha volta.
Sou um rato portador de pestes, um pombo dono de pulgas, uma barata vetora de doenças, um morcego mestre de um vírus.
Passo a noite a procura de vida, sendo o percursor da morte.
Sou o tempo, inexorável, inalcançável, imortal.
Sou a angústia da existência, o terror do vazio, o pesadelo que nunca acaba.
Sou o verme, sou o verme, sou o verme.
A falta de inspiração do poeta, que passa anos a fio sem uma fagulha, sem luz.
Sou pecado, lascivo, gordo, furioso, imóvel, invejoso, agourento e arrogante.
Ladrão de paixão, do desejo, do bom e moral.
Estou aqui para tomar o que é meu, o que é seu. Levar aquilo que pertence a todos menos a mim.
Quero levar a felicidade, fidelidade, o amor que não será mais seu nem de ninguém, apenas meu.
Sou o satânico, sou o vaticano, sou deus irrevogável deus.
Como diria o nihilista, humano demasiado humano.
Como diria o cartesiano, sou uma coisa que pensa, que sente.
Como diria o existêncialista, sou uma escolha.
Da filosofia à astrologia, sou chefe de meus sabores e dissabores, mestre da minha própria razão e bestialidade. Sou uma infinita vontade, uma potência que não cabe em mim.
Como lider de um sonho sadomasoquista eu sigo, caminho, ando, corro, vôo em direção a uma luz que nunca chega.
Sou o pesadelo vivo, sou uma carta de abandono, uma ligação não retornada, um amor não correspondido.
Gosto de pensar que sou o tesão que partiu, a ereção que não subiu, o fogo que apagou e sumiu, as cinzas que não foram para o mar, o enterro que nunca aconteceu.
Sou a morte vívida, a gana despedaçada, desgraçada vida.
Digo isso tudo pois sei que até aqui você já desistiu do resto,
Quando na verdade sou vulnerável, fraco, emburrado, amargurado.
Sou a encarnação do que resta de um amor fracassado.
Quero apenas um espaço para aquele desabafo. Preciso de atenção pois sei que fui mal amado.
Deixo um testamento, um sonho em que nunca me ocorreu, de que na verdade não era você.
Segui por um caminho que não era meu, carreguei a sua cruz e deixei meus sonhos todos de lado, quando eu deveria é ter continuado, seguido meu rumo, independente do embargo.
A peste me dominou, quando eu mais precisava era dominar o meu ser.
As pulgas que me coçavam, estavam em você, quando eu que deveria me mover.
A doença que em mim habitava, deveria habitar você.
O vírus do amor dominava apenas em um, e não em dois, e não existe vacina para você.
Meus pecados existiram e ainda vão persistir, e procuro em dores novas e velhas uma solução para ser são.
Não vou me ferir ou me matar, pretendo apenas me afogar em novas vidas, sem deixar de respirar, pois eu sei bem isso, que se eu não fizer é o que vai me matar.
A única coisa que roubei, talvez com sorte foi um beijo, pois sei que restos não lhe habitam.
Recuperei apenas a chave que abre o que se encontra em mim, abri essas portas para limpar um salão antigo e empoeirado de novas e velhas experiências que jamais foram guardadas.
Sou amplo e santificado me sinto, abençoado como um menino.
Caí e estou me levantando, sou satã irresistível satã.
Como tantos outros diriam e já disseram, a dor é insuperável, o sofrimento não.
Deixo para trás tantos sonhos e invocações, desejos e ilusões.
Sou uma duna, levando a poeira e areia, impossível não esquecer você.
Sou o sal do mar, salgando o que tem de conservar.
Sou o passado, que só restam lembranças.
Quero ser o futuro.
E que talvez me traga alguma esperança.
Volto a escrever sem temer,
E se você chegou até aqui, quero poder me esquecer.
Não nego, sou ambos.
Tenho talvez até uma terceira metade,
Sou aquilo que cheira a morto, uma coisa que sente, que ri e chora, uma existência quem sabe decidida.
Quero ser uma metamorfose ambulante, uma batida forte numa caixa de som, uma tatuagem sem significado, um brinco amaldiçoado.
Quero ser um beijo na noite, um amor sem temor ou tremor, um calmo rio.
Quero deixar de ser aquilo que fui nos últimos anos, e voltar a ser o que fui na última década.
Quero ser livre mais uma vez,
E quem sabe,
Desapego.