UMA CARTA PARA VOCÊ
Oi.
Boa tarde.
Acordei e a primeira coisa que fiz foi olhar no despertador que horas eram. Assombrado vi que ainda era muito cedo – o relógio marcava 7:00 horas – e concluí que essa não era uma boa hora para se levantar num dia de domingo. Virei-me na cama para o lado e o sono apoderou-se de mim e eu, completamente derrotado, a ele me entreguei de uma forma covarde e vergonhosa.
Acordo agora pela segunda – e agora definitiva – vez e, ainda meio sonolento, abri os olhos aos poucos e pelo mesmo relógio constato que já passa um pouco das 10:00 horas. Vejo-me rodeado de paredes, estantes com livros e discos em total desarrumação, alguma roupa espalhada pelo chão, uma janela semiaberta por onde entra alguma iluminação e nenhum ar. O calor é intenso e a minha sorte é o velho e sempre útil ventilador no teto que, apesar de barulhento, me dá algum alento. Que cenário mais deprimente ainda mais para quem já sofre permanentemente de depressão.
Levanto-me com aquela mesma boa vontade de todo mundo quando levanta da cama: Os braços esticados para cima, o corpo e as pernas retesados e também a boca toda aberta num bocejo que dá vontade de não acabar mais. Parece que quero engolir o mundo: A mais pura e melhor expressão da preguiça.
Finalmente dirijo-me ao banheiro e diante do espelho vejo uma cara que, a princípio me assusta. Os olhos semicerrados, os cabelos – poucos que me restam – em completo desalinho, marcas do travesseiro pelo rosto e uma total aparência de quem tomou umas e outras na véspera. Fico a imaginar se depois disso tudo ainda houvesse uma dentadura postiça dentro de um copo cheio d’água. Enfim, uma figura de causar desânimo a qualquer um. Mas, o que fazer. Esse sou eu, queira ou não, goste ou não.
Vou para a cozinha pensando naqueles brequefestes (não se assuste, pois a palavra americana correspondente, como tantas outras, já foi aportuguesada) que somente existe nos hotéis 5 estrelas e qual a minha decepção quando constato que somente temos, para hoje, bolacha água e sal, manteiga, leite desnatado e café solúvel. O mesmo de todo dia. Mas...
Hoje é domingo e o que se fazer num domingo numa cidade que não tem praia. Chego a acreditar certas horas que sou um anfíbio, pois não consigo viver sem água, principalmente a salgada e, para quem nasceu em Salvador e lá viveu sua infância e sua juventude, e o mar, principalmente aos domingos é fundamental, sem nenhum exagero. É duro demais aguentar a velhice tendo como única opção para passear nos domingos, a ida a um Shopping Center, ao qual você já foi mais de quatro ou cinco vezes na semana, ou ao supermercado, ideia esta que me atrai menos ainda. Por isso, trancafio-me dentro da minha carapaça e, carrancudo e mal humorado passo mais um domingo “alegre e inesquecível” dentro de casa e resisto heroicamente a essas duas opções.
Nessas horas é que enxergo a importância que o mar tem na minha vida. Como é duro viver sem ele. Sem sequer enxerga-lo de vez em quando. Poder encher os pulmões com aquele delicioso cheiro de salitre. Ainda mais aos domingos dia em que a minha presença nas praias de Salvador era uma obrigação, obrigação somente comparável à de ir à Fonte Nova à tarde assistir aos jogos do meu inesquecível e querido Bahia e, após isso, comparecer ao Farol da Barra para apreciar a beleza das mulheres da Bahia. Acredito que, como dizem Gil e Caetano em uma música que acho a mais linda de todas, “Na terra em que o mar não bate. Não bate o meu coração. O mar onde o céu flutua. Onde morre o sol e a lua. E acaba o caminho do chão. Nasci numa onda verde. Na espuma me batizei. Vim trazido numa rede. Na areia me enterrarei.” Mas a verdade é que meu coração ainda continua batendo, apesar da saudade da minha terra e do mar.
Assim, após lavar a louça que usei, sento-me diante dessa bendita máquina – que faz coisas inacreditáveis – e ponho-me a pensar o que vou mandar que ela faça para mim.
Tocar uma música? É uma boa ideia. E assim, coloco o CD do concerto nº 2 para piano de Rachmaninoff e começo a me deliciar. Fazer mais o quê? Pesquisar alguma coisa? Não. Hoje não estou com paciência para isso. Continuar o romance que estou escrevendo? Também não.
Paro para pensar e chego à conclusão de que faz alguns dias que estou pensando em escrever-lhe, mas sempre uma coisa ou outra atrapalha o meu raciocínio que, diga-se, hoje também não está dos melhores. Aliás, sinto que cada vez ele está mais fraco, mas fazer o quê? No entanto, agora, estou novamente sozinho tendo como companheira a minha eterna solidão e aí resolvi que escreveria, mesmo que não tivesse assunto ou motivo para escrever.
As vezes quando digo que sou um cara solitário por natureza muita gente me pergunta se moro sozinho e se espanta quando respondo que não.
A solidão em si não implica obrigatoriamente dizer que a pessoa está só. Muitas vezes você está cercado de gente e, no entanto o seu espírito, a sua cabeça está em tal dimensão que o torna solitário.
O casamento não é nem nunca foi cura para a solidão, e, pior ainda, a sua longa duração muitas vezes carrega-nos mais para ela de forma irreversível.
Acrescente-se a isto um sonho que todos têm na juventude como se fosse uma tábua de salvação no futuro e, quando ela chega, transforma-se em um mal que, em alguns momentos somente falta nos levar à loucura. Sim, é dela mesma que estou falando: Da tal da aposentadoria em consequência da velhice.
Que coisa terrível. O que eu não daria para ter a minha, não digo juventude porque aí já seria querer demais, afinal não tenho nenhuma propensão a vir a me tornar num novo Fausto, personagem de Goethe, que, não tendo aproveitado a sua juventude, já velho e sozinho – não casou nem teve filhos – recebeu a visita de Mefistófeles, o demónio, e a ele vendeu a sua alma transformando-se num jovem garboso e alegre, vindo depois, porém, as consequências as quais não veem aqui ao caso serem comentadas.
A juventude me traria, também, lembranças que tento a tanto custo esquecer – e não consigo – de um amor que se foi, mas que me marcou para sempre. Para que revivê-lo e tornar a perdê-lo? Não. Seria castigar-me outra vez, coisa que não me acho merecedor.
Então, diante desta minha definitiva resolução de não fazer tal pacto com tão nefanda personagem, resta-me perguntar: O que eu não daria para voltar lá pelos meus 45/50 anos, quando me sentia na plenitude dos meus conhecimentos, advogando em São Paulo, tendo com o que me distrair, com o que pensar?
Não, hoje nada mais tenho para pensar, a não ser uns poucos processos, todos em fase de acabamento e que dependem mais dos nossos ilustres desembargadores do que de mim?
Não tenho com quem conversar. Com minha mulher? Pouco provável, afinal que assuntos teríamos nós para conversar se estamos 24:00 horas juntos por dia e as notícias que ouço nos jornais da TV ela também as ouve, se o que leio – raramente – nos jornais, ela também lê. Portanto falar sobre o quê? “Ah! Meu chinelo está ficando velho e preciso comprar um outro” e como resposta “O meu também”. Que assunto edificante, não?
Desta forma, tenho que recorrer a alguém com quem não estou com frequência.
Quem? Meus amigos? Não os tenho nesta cidade onde estou morando atualmente. Meus amigos antigos – será que ainda os tenho? – não me procuram e da mesma forma eu procedo. Portanto tenho que recorrer a você, embora ache que procura-la constantemente vá causar-lhe certo cansaço. Mas, o que fazer? Azar o seu. Sobrou para você, muito embora saiba perfeitamente, e você também sabe que é uma conversa infrutífera, sem nenhuma perspectiva de no futuro, talvez próximo, talvez não, dar num possível encontro, impossibilidade esta, aliás, que você já deixou bem claro todas as vezes que a aventei. Não entendo, mas acato.
Na verdade poderia começar perguntando-lhe como está passando, ou que está fazendo e aí então, lembro-me que não estamos conversando “tête à tête” e sim apenas e tão somente, através de uma simples e fria troca de mensagens por este negócio chamado internet. Aí tudo que pensei foi por água abaixo, mas tentarei começar de outra forma.
Que tal começar pedindo-lhe desculpas pela maneira não muito educada como procedi da última vez que nos falamos. Aliás, não acho que fui somente mal educado, mas pode-se até dizer que fui um tanto rude o que não é a minha maneira natural de ser e você bem o sabe.
Acontece, todavia, que com a proximidade das festas de fim de ano, principalmente o Natal, aflige-me uma nostalgia, uma angústia que, invariavelmente transforma-se em depressão a qual, junto com a solidão, culmina por transformar-me um sujeito amargo; Insuportável até, eu diria.
Mas o que fazer. Afinal de contas o DNA da gente vem desde os nossos ancestrais e nada podemos fazer para muda-lo, não é mesmo?
Portanto, desculpe-me – se é que lhe é possível desculpar-me – depois de tantas e tantas coisas que você já me desculpou, ou seria melhor dizer, perdoou! Como disse no começo desta, a minha imaginação hoje está quase a zero e por isso sinto que o pouco dela que restou começa a fugir do meu controle, pois na realidade tudo não passa, na verdade, apenas de um motivo para escrever-lhe.
Poderia dizer-lhe, por exemplo que ontem, após pesquisa no computador, consegui gravar uns dois discos de um pianista americano, ou corrigindo, inglês, mas que viveu seus grandes momentos em New York. Existem discos dele sozinho com o trio que leva o seu nome e tocando com Nat ‘King’ Cole, Tony Bennett e outros deste porte e o nome dele é George Shearing.
Desnecessário é dizer que o cara é bom demais. Cego de nascença começou a tocar aos três anos de idade e, infelizmente para os amantes da música, já faleceu.
Que mais poderia dizer-lhe? Ah! Sim, ia me esquecendo, apesar de não ligar muito para isso, desejo-lhe um Natal de paz junto aos seus entes queridos e um Ano Novo muito feliz em todo o seu transcorrer, cheio de saúde, grandes realizações, consolidação de situações que ficaram pendentes este ano, enfim, tudo de bom, pois isto é tudo que eu posso desejar a alguém como você.
Bem, acho que esgotei tudo que poderia dizer somente me restando dizer-lhe que, quando puder – e se puder e quiser – responda esta que a receberei com carinho.
Do amigo que muito lhe ama.