Leve
, com aquela expressão mais ou menos e apenas de quem fala do tempo – mais ou menos interessada, apenas introduzindo a conversa.
Dos dois lados, o inofensivo abismo sem fundo, a ser atravessado em uma tábua estreita e levemente – apenas levemente – instável. Não dava para ver, não ainda, mas já tinha partezinhas podres
(o mofo crescendo secretamente sob os pés, hum, que cheiro é esse? Nada, tá tudo bem)
- Onde está sua habilidade de confiar? – e aquele trejeito estudado de quem sugere uma ida à padaria da esquina de chinelos e bermuda.
- Não sei o que houve, essa merda não tava funcionando direito, então levei ao conserto ou ao médico ou qualquer coisa que o valha...
Os argumentos
(mas que droga esse cheiro tá me dando dor de cabeça quero outro cigarro vamos lá fora?)
os argumentos soavam patéticos antes mesmo de sair da boca.
A mão ainda estava estendida, convidando, com a segurança de quem convida para a missa de domingo. Obsceno oferecer assim, sem mais aquela, tal passeio insano.
A tábua sobre o abismo estalou alegremente ao vento
(como quem diz olá não esqueça de mim estou esperando não tenho o dia todo)
- Seria uma bela queda. – Fez mais uma tentativa.
- Sim – rosto vazio de quem responde decorado a sabatina – mas o voo seria glorioso.
Os argumentos, mesmo os mais patéticos, estavam esgotados.
Isso vai dar merda, ainda pensou antes de pousar delicadamente o primeiro pé na ridiculamente frágil estrutura que era agora seu sustentáculo.
Aos poucos, porém, os passos se tornaram mais impetuosos e ligeiros. Voltara do conserto, a confiança.
Preparava a mais sonora (musical, gosto de percussão, é impressionante) a mais sonora das passadas quando
(meu deus é tão inesperado!)
a coisa toda veio abaixo.
Não soube, por algum tempo, dizer da glória do voo, mas sempre se lembraria do quão ridiculamente longo ele foi.
Ainda teve tempo de ouvir a voz, inexpressiva como sempre, a lhe dizer que essas coisas acontecem, que lamentava, meio que sussurrar um até logo e ir-se embora, carregando em seu rastro uma porção de coisas.
Quando tudo mais nos falta, ainda resta a ironia.
Costumava dizer-se isso... mas foi antes de a
ironia ir, ela também, para o conserto.