A alguém que queira ler um pouco...
“Queridos amigos”, este seria o melhor começo de uma carta, não para a minha. Não pela falta de queridos amigos, mas, sim, pela falta de hipocrisia de escrever-lhes, hoje, depois de tanto tempo. Seria uma grande demasia fazê-lo.
Começo, pois, simplesmente com o conteúdo. Começo dizendo “adeus”. Hoje, é um dia chuvoso e acredito que morrer em um dia cinzento, nublado e frio, sem o risco de o calor derreter minha carne, é bem melhor que morrer em um dia de calor. Afinal, nos dias de frio se escolhe é morrer ou esperar, já nos de calor se escolhe é matar ou viver. Como nunca me imaginei tendo a coragem suficiente para matar, opto por morrer.
Lanço-me diante do abismo da depressão, buscando tentar conhecer, de um modo ou de outro, a verdadeira essência de um ser que está quase se pondo, que é quase poente, que se deixa levar pelos limiares das sombras, em um lugar cheio de ira e de dor, onde somente o horror advindo das próprias sombras de minha vã e pequena existência me assola.
Ligo o rádio, em um último movimento de condenado, para ouvir um velho blues, quem sabe o blues de uma das antigas encruzilhadas por onde passei, sem deixar, uma única vez, um agrado ao demônio. Ligo-o, mas, hoje, hoje não posso ouvir. Penso nos cigarros que fumei por puro gosto da decadência, acendo-os, mas, novamente, hoje, não os posso fumar. Não posso beber minhas velhas doses de uísque. Isto por que, um moribundo, sentenciado por si mesmo à morte, não pode ter o último desejo feito realidade.
Restar-me-ia dizer “aleluia”. Di-lo-ia caso tempo tivesse. Para fora de mim, o tempo passa. Dentro? Dentro não existe está pequena ideia dos homens de tempo, afinal, o tempo não passa. Ele simplesmente acontece. Diluiria dentro de mim todos os desejos, se ainda pudesse. Transformá-los-ia em algo diferente: diferente daquela tradição que nos assoma, que nos ronda. Em nível de passado, mergulho nas sombras de um homem que, ontem, teria sido, mas que, hoje, sê-lo-ia se o passado e a tradição permitissem.
Fora o tempo nossa última instância da vida, deixaria que me levasse. Pediria aos Santos e Anjos do Senhor que me salvassem. Cairia de joelhos pedindo, clamando pela salvação que, agora, é-me impossível vir. Sou como um homem cego pelo medo de sua própria fé. Trancado no profundo edifício. Busca-se, em mim, uma pureza que se põe há todos os instantes.
Questione-me, como último ato que resta a um homem inundado de sentimentos, sobre a vida, sobre o tempo e divago da razão inicial de escrever-lhes. Perdi-me muitas vezes pelos sonhos, como me perco no vai e vem das ondas sobre a praia. Perdi-me muitas vezes pelo mar, como me perco no eterno bombear dos quadris das bailarinas que, com maestria e falta de profissionalismo, valsam o “Le lac des cygnes”.
Hoje, confundo-me pela pureza de escrever ou pelo ato sujo de possuir um corpo e aproveitar os instantes que me restam. Opto pela pureza, que de pura não tem o papel. Pois é na falta de tempo para amar, que o homem conta seus profundos pesadelos.
Revolvo-me por dentro e procuro uma saída: tudo trancado. Desejo fugir, ouvir, comer, amar, beijar e, por mais uma vez, tentar. Não posso. Sou um edifício, trancado, dentro de mim. Deveria ser diferente: morrer não deveria doer. E não dói.
Dói mesmo é deixar tudo aquilo que amamos e encontramos, depois de tanto tempo. Isso dói. Morrer é apenas, no mais trágico, aproximar-se um pouco mais desta vaga ideia de paraíso.
Talvez, se me sendo permitido, possa, eu, diminuir a espera e morrer de uma vez por todas: morrer de uma morte heroica, sem dores, sem lágrimas, sem pedidos aos ceifeiros da noite que me deixem. Sem nada disso. Apenas, deitar e morrer. Toda a via da vida leva-nos para este momento de escolha: sentar e esperar ou morrer? Hoje, é-me permitido, apenas, sentar e esperar que a morte venha, como uma velha amiga, pela qual vivo a esperar.
Resolvo implorar. Pedir para o tempo voltar, fazer tudo de novo, igualzinho, mas com a possibilidade de fazer. Fá-lo, mesmo sabendo que a resposta, aquela velha companheira dos que têm dúvidas, seria a mesma, sempre e para todo o sempre, amém.
Lancei-me no desespero. Por um milagre, o rádio toca uma música. Chegou o momento. Não preciso correr, não preciso fugir. Sei que de nada adiantará. Mesmo assim, faço. Afinal, o que seria da minha morte, se não a evitasse.
Corro e tranco a porta. Ouço a voz que me chama ao longe, que me assola e faz-me diferente. Ela chegou… Talvez seja assim que tudo termine. Talvez deva ser assim. Então, chega de fugir. Aberta a porta e recebo-a: uma velha amiga que, hoje, volta para casa…