ONDE VAMOS PARAR? O QUE VAI SER DE NÓS?
“Eu quero acreditar que vocês ainda vão evoluir
Para poder amar.
E amar muito mais para poder evoluir.”
Casa das Máquinas
Amor, amada minha, tu vens com este teu frenesi, esta ânsia de saber e conhecer e entender, e me põe fora dos ardentes lençóis a pensar, porque é em pensamento que a excito, aqueço, mexo, estremeço e te faço gozar.
Como responder-lhe sobre onde vamos parar, o que vai ser de nós, o que irá nos acontecer? Olhar a bola de cristal? Jogar búzios ou tarô? Inserir os dados em um supercomputador? Pode parecer estranho, mas esta última alternativa talvez seja a correta, é como prever a quantidade e intensidade de furações daqui prá frente, com base no passado e nos padrões de formação, no caso de atuação, dos agentes, no caso os humanos.
Quando a Perestróica foi anunciada, uma amiga perguntou-me o que aconteceria no leste europeu a partir daquele momento. Eu lhe respondi que provavelmente a URSS seria desintegrada, o que liberaria uma disputa violenta por territórios, o que iria reavivar os ódios étnicos da região. Estava certo, só não imaginava o quanto, não pensei que poderia durar tanto, como a luta pela independência da Chechênia, nem ser tão dura e cruel como o que houve nos Bálcãs. Voltaremos a falar disto depois...
Antes, vou devolver-lhe o dilema. Se fosse para termos apenas um grande escritor como referência, quem você escolheria, Dumas ou Cervantes? Pela importância você seria levada a preferir o espanhol, talvez contra seu coração anti-parnasiano, talvez contra a razão, ou em prol da necessária ilusão. Dumas foi um romancista, escreveu o maior épico das histórias de cavalaria, aquilo que nos faz sonhar, desejar, arder, sem ser. Cervantes também foi romancista, porém do tipo pensador, daqueles que põe a arte como instrumento de intervenção social, sua história de cavalaria era uma ironia às histórias de cavalaria, um libelo contra a alienação. Não foi o primeiro, houve antes Erasmo, houve ainda o Maquiavel, mas estes atingiram, no inicio, um publico pequeno, Saavedra é quem popularizou, com o cavaleiro da triste figura, a triste realidade.
E quem quer saber da realidade triste? Jung disse que não suportamos viver o tempo todo em contato com o real, precisamos de alienação. Precisamos então do romance, novelas, religião, ópio, qualquer coisa assim. Precisamos de Erasmo, Cervantes, Maquiavel, Goethe, Weber, Jung, Nietzsche para não sermos mais que meros animais. E mesmo com eles, não se pode dizer que não somos, e dos mais ferozes, estão aí os nossos massacres, do Carandiru, da Candelária, de Carajás, estão aí as guerras africanas, o meio-oriente, e os Bálcãs, em pleno coração europeu, às portas do século XXI.
Voltemos agora a Nietzsche, “o filósofo é a má consciência de seu tempo”, então, nos conformemos e vamos diretamente à resposta, dorida, incontrolável, absurda, da sua questão.
Preferia dizer que nada nos resta, nas não é assim, teremos muito de tudo, de fome, de violência, de despudor, de descrença, embora sejam nestes momentos em que o homem mais recorra à fé. Acho que o Jung já explicou o porquê.
Um povo para ter uma mínima condição precisa eliminar seu maior mal, a corrupção, e depois o segundo, a submissão. Foquemos o maior, pois tem ele, figuradamente falando, dois agentes, o da ativa e o da passiva, o corrupto e o corruptor. E aqui nos enquadramos todos nós, corruptíveis ou corruptores, ou ambos, em algo todos nos encaixamos. A percepção não é exclusivamente minha, nem tão nova, está lá nos cadernos de viagem do Beagle, o diário de Darwin, na parte que fala do Brasil: “Todos aqui podem ser subornados.... Os brasileiros, até onde vai minha capacidade de julgamento, possuem só uma pequena quantia daquelas qualidades que dão dignidade à humanidade”.
Não se engane, amada, imaginado que nos últimos dois séculos alguma coisa mudou. No ranking mundial de países menos corruptos, realizado pela ONG Transparência Internacional, divulgado no último dia 26, si, três dias atrás, o Brasil aparece em 69º lugar, com 3,7 pontos de 10 possíveis. Continuamos tão corruptos quanto possível, seja nos corredores do congresso, nos palácios dos governantes, na patrulha rodoviária, na vaga de idoso do estacionamento, na fila do banco.
Há uns dois ou três anos atrás dei uma palestra em uma universidade sobre o tema Ética Corporativa. Minha abordagem não foi os esforços que as grandes empresas fazem, por meio de fundações e institutos, para serem vistas como boazinhas, quando não o são. Falava para futuros administradores, que teriam de saber como as coisas de fato são e acontecem, falei da corrupção e da permissividade, de como isto faz parte de nosso cotidiano. Para exemplificar perguntei quem era a favor do trabalho escravo e do trabalho infantil. Ninguém, é claro. Depois perguntei quem tinha um tênis Nike, Adidas ou de marca similar, e quem tinha carro movido a álcool. A maioria, que usa tênis fabricado na China com trabalho infantil, e roda em carro a álcool, fabricado com mão-de-obra escrava nas usinas paulistas.
Alguém jogou o tênis fora? Alguém abandonou o carro? É como na reeleição do Bush, na primeira vez podiam dizer que não conheciam suas mentiras, mas na segunda... não apenas tinham ciência, como as apoiavam....
Já leu, meu amor, A Fome, do Knut Hansen? Um dos livros mais duros e doridos que li, tanto que, está na estante há mais de vinte anos, e não consegui reler. Mas algumas de suas passagens ainda me são bem vívidas, como aquela em que a personagem está num parque, já transtornado pela fome, o frio e o desespero, e esbarra em uma senhora e sai sem se desculpar. Alguns metros depois um guarda o para e tira satisfação pelo seu comportamento indigno. E nós, não conseguimos nos indignar com crianças pedindo esmola nos sinais, mendigos serem queimados, velhos serem espancados em asilos, com a guerra civil do Rio, a exploração sexual infantil no nordeste, a fome no norte, a imprensa no pais todo.
Onde vamos parar? O que vai ser de nós? Eu tenho uma idéia faz tempo, de que está a se formar uma imensa favela da Patagônia ao Tamaulipas, onde agora se massacram quem tenta fugir para o reino encantado. Muita propaganda, principalmente governista, querem nos levar a crer que não, mas afora alguns oásis e jardins que ficarão, excluídos seremos todos, já o somos, só não percebemos ainda, pior, acreditamos que estamos nos incluindo no clube dos ricos.
“Longe de mim o profeta do horror que a Laranja Mecânica anuncia, amar e mudar as coisas me interessam mais” Belchior. Só o amor, amada minha, pode me contradizer e tornar os rumos diferentes.