Anjo I
Anjo,
Não seria crer demasiadamente na tua sensibilidade se pusesse-me a contar algumas histórias antigas, como se mapeasse a história de um caráter construído a ferro e fogo. Porém, penso que a vida é feita de fases que se auto-delimitam, e não nos cabe, meros seres humanos, encerrá-las por decreto: “Extingue-se a mágoa, o câncer, a pobreza, o medo, nesse instante”.
Parece absurdo, não é mesmo minha querida? Ouço levemente o canto dos pássaros lá fora, e a luz do sol queima minhas costas pela fresta da janela, e insiste em dizer-me coisas que não compreendo.
As palavras bailam em minha mente, fogem do papel, minha mais nobre e humilde habilidade é conservar a esperança, mesmo nos piores dias.
Venho trazer-lhe notícias da vida, como sempre me pedes; és louca? É como se pedisse a um fofoqueiro trouxesse novidades! E embora eu ainda nada tenha dito, e isso se prolongue, falo um pouco de ti, antes de falar de mim...
... que seria de nós si não fosse a esperança, que nos vem e nos foge, amarga e doce, que seria de nós! Visto de amor tua amizade e espero no sorriso de uma criança outra amizade tão sincera.
Repara em nossa volta, ah! Se tudo fosse e falasse numa linguagem doce e comovida! Se a vida fosse um sonho bom! Se a noite, esse meu deslumbramento ao admirar as estrelas e a lua, pertencesse a todos!
Mas o homem compõe traições. E enquanto olho as estrelas, meu outro eu se espalha nas calçadas, pede esmolas nas ruas, sente fome, dorme coberto por jornais, embaixo das pontes. Será justo que apenas alguns de mim admirem a beleza das estrelas?
E há ainda outros eus, que nem se importam com a miséria, que batem em suas mulheres e estupram seus filhos, que roubam e se drogam contra solidão.
O homem compõe traições.
Embora saiba compor canções de amor.
Há eus como você, que lutam, acreditam, têm fé. E fitam – a olhos nus – a vida. E a querem modificar. Somos parte de um todo, e você, é uma das partes mais belas que há em mim.
Seria insensato escrever-lhe e permitir que minha falastrice impedisse de dizer o que se diz em uma carta. As coisas vão indo, tenho ainda aquela velha mania de acreditar que posso mudar o mundo.
E tenho saudades de ti.
Quando escrever-me, pergunte coisas que queres saber, e tentarei ser mais sensato. Pois se tivesses perguntado: “Como estás?” Toda essa carta seria minha resposta.
Com toda a insensatez do meu desejo de viver, me despeço.
Com carinho, de seu eterno amigo,