Capítulos de minha vida, parte I

Hoje escrevo esta carta, para que daqui algum tempo quando já não estiver mais neste plano, alguém a encontre e saiba um pouco, sobre resquícios do que um dia foi uma vida.

Uma vida como a de todos com alegrias e tristezas.

Lembro bem aquele dia, talvez esta seja uma das lembranças mais fortes e constantes até hoje.

Minha mãe trabalhava como enfermeira, portanto passava algumas noites no hospital Evangélico em Curitiba, chegava em casa pela manhã.

Até ela chegar quem ficava responsável por mim era meu irmão Sebastião, na época com dezenove anos, eu estava com oito anos.

Lembro que estava tomando banho, meu irmão lixava a porta do banheiro e lá pelas tantas, pediu para que eu acabasse logo, pois precisava sair antes que nossa mãe chegasse e não queria que ninguém soubesse que havia saído com o carro, um fusquinha vermelho.

Resumindo, meu irmão iria pegar o carro escondido e me levaria junto, o propósito de tal missão arriscada era a seguinte: o dia das mães estava próximo, ele queria comprar um presente e como estava sem dinheiro iria até a casa de um amigo chamado João, para lhe vender um par de alianças.

Meu irmão havia terminado o noivado e não precisaria mais das alianças.

Acabei meu banho, coloquei meu uniforme, aquele da década de setenta, calça azul de tergal, camisa branca com o emblema do colégio e o tênis conga.

Começava aí uma sequência de imprevistos que de alguma forma pareciam querer impedir nossa saída.

Primeiro quando fui entrar no carro, queria por que queria ir sentada no banco de trás, até chorei, mas meu irmão disse não e me colocou no banco da frente.

Então saímos, quando estávamos na esquina de casa meu irmão lembrou-se que havia esquecido o macaco do carro em casa, voltamos para pegar, quando estávamos na esquina, ele lembrou-se que havia esquecido as alianças, retornamos e ele as pegou.

Finalmente conseguimos sair, fomos até a casa do João, a irmã dele falou que ele estava no trabalho, fomos até lá.

Todo nosso trajeto ficava nas proximidades de nossa casa, algo em torno de uns cinco ou seis quilómetros.

A estradinha que dava acesso ao abatedouro onde João trabalhava era de terra e pouco habitada.

Ao chegarmos, meu irmão desceu do carro, eu só ouvi alguém dizendo que o João havia acabado de sair e que seu meu irmão corresse um pouco o alcançaria.

Saímos e meu irmão seguiu o conselho, estava dirijindo muito depressa, eu sentada no banco do passageiro e segurando naquele negócinho que havia no painel do fusca, feito para segurar mesmo.

Eu estava com muito medo, olhava para o velocímetro e percebia a velocidade, 100, 120, mas não tinha coragem de pedir para ele ir mais devagar.

Finalmente quando estava criando coragem para fazer o pedido, só pude ouvir meu irmão gritando para eu me segurar que ele havia perdido a direção.

Naquela época não havia a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança, ambos estávamos sem o mesmo.

O carro capotou bateu em um poste e tornou a capotar, nós dois voamos pelo vidro, foi tudo muito rápido mas esta sequência de imagens é muito viva e real em minha mente.

Meu irmão bateu com a fonte em uma pedra o que perfurou sua cabeça, eu aparentemente não me machuquei, a única coisa que sabia era que aquele moço caído no chão era meu irmão.

Foi quando pude notar que havia uma casa bem em frente do local do acidente, uma casa bonita, mas vi uma mulher fechando as janelas e pouco depois vindo colocar um cadeado no portão.

Não passavam muitos carros por ali, o primeiro que passou parou, era uma Kombi de um frigorífico, o homem desceu e veio me socorrer, ele me segurava e não deixava eu ir até meu irmão, que estava estendido n chão com uma poça de sangue em volta da cabeça e com um dos braçoas estendidos me chamando.

Foi aí que vi um homem, negro de camisa branca, calças cor de tijolo e com uma enchada nas mãos,e le chegou perto de meu irmão e com a enxada cobriu o sangue, jogando terra em cima, o rosto deste homem é muito nítido.

Eu gritava, queria ir com meu irmão mas o homem me colocou dentro da Kombi e disse que ia me levar para casa.

Meu irmão ficou lá.

Lembro que o tio da Kombi, perguntou onde eu morava, eu não sabia, havia perdido a memória, a única coisa que sabia era que aquele moço era meu irmão.

Depois de algum tempo consegui guiar o homem até minha casa, foram surgindo umas lembranças e fui reconhecendo o caminho de casa.

Quando chegamos fui levada por uma vizinha até meu quarto, colocada em cima da cama, ela me trouxe um chá.

Logo depois minha mãe chegou e não esperava o que iria encontrar.

Imediatamente me levou para o hospital onde traballhava.

Os médicos na hora nada lhe disseram mas acreditavam que eu não iria sobreviver, afinal tive traumatismo de crânio, urinava sangue e vomitava sangue.

Minha mãe me deixou aos cuidados dos médicos e depois foi até o hospital para onde meu irmão fora levado, hospital Cajuru.

Quando estava chegando meu pai estava saindo, era tarde meu irmão havia acabado de falecer.

Eu, como vocês podem observar sobrevivi, aqui estou.

Eu vi a morte cedo demais, bem ali na minha frente, cresci tendo que lidar com isto, naquele tempo não havia esse negócipo de psicólogo, não isto era coisa para "doido", esta era a visão.

Não pude ir ao velório nem ao enterro do meu irmão, estava internada, quando sai lembro que as pessoas vinham me falar, seu irmão foi viajar, eu dizia, não ele não foi viajar, ele morreu.

Eu presênciei os últimos momentos da vida de meu irmão e achavam que podiam me enganar, como os adultos são imbecis as vezes.

Depois de ver a morte tão perto e tão cêdo nunca mais fui a mesma, foi como se minha infância houvesse acabado ali.

Infelizmente temos que aprender a conviver com nossas feridas, até hoje não aprendi a dirijir, quem sabe ainda crie coragem.

As lembranças que tenho de meu irmão são as melhores, ele me ensinou a andar de bicicleta, tem até uma foto dele segurando atrás para eu não cair, na velha caloi.

Ele brincava comigo quando íamos para a praia, procuro não pensar nisto tudo, mas tem dias que não tem como.

Esqueci de dizer, lembra da briga que eu e meu irmão tivemos antes de saírmos de casa quando eu queria sentar atrás e ele não deixou, pois bem, a parte de trás do fusca ficou totalmente amassada, eu teria morrido se tivesse ido ali.

Muitas vezes enfrentamos dificuldades em nosso cotidiano, eu mesma estes dias não ando lá muito bem, procuro estar. todos procuramos.

Mas um questionamento sempre me atormenta, porque sobrevivi, qual a razão...

Não sei, acho que nunca saberei.

Julia Lopes Ramos
Enviado por Julia Lopes Ramos em 18/09/2009
Reeditado em 18/09/2009
Código do texto: T1818429
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