Cartas de Um Viajante - XXX (Última)
Dispenso a vida, a cordialidade, tudo! Tudo! não há mais motivos, apenas uma sujeira putrefe de ser enganado por todos em pró de um poder que eu nem mesmo quis! Que eu tanto rejeitei desconhecendo! Meu passado é uma vergonha e meu futuro mais ainda! Não entendo mais nada do que acontece comigo... Por que, meu pai, depois de tanto tempo decidiu aparecer para mim? Cansou de brincar com as memórias de teu filho? Me diga! Me diga vós! Esqueci-me, vós não tereis a resposta para meus lamentos.
Ao pisar neste cais encontrei banhado de sangue as areias da praia e todos em volta, ao descer do barco encontrar diante dos meus olhos uma cidade repleta de fantasmas e mortos, Kedad chegou antes de mim! Ravenus havia se dependurado desmaiado ao chão, mal pude levantar e vi das sombras aparecer Marik, como um general embebido em tortura e poderio. Não havia novamente nenhum sinal de Arlid! Ele nos abandonara, e a memória me consumia a mente e o espírito! Eu senti-me como se brincasse com a loucura em um cenário surreal e fantástico, onde todas as sombras se acordavam e obedeciam à um general e seu superior, ele as controlava como marionetes! À todos! Rapidamente me pus a frente de Ravenus, não podia o deixar sucumbir! E então houve uma fúria que se transformou em lobo e em besta, esta fúria sentiu todos os ataques, viu todos os espíritos se remoerem naquele mar sanguinolento repleto de devastação e perversidade, e foi esta criatura que viu com tua íris azul e lupina a escuridão tomar conta do tempo e do espaço, e aparecer ao lado de Kedad sua antiga amada...! Isso me dilacerou até o fundo dos meus ossos e pelos!
E a ver ao lado dele, segurando sua mão e rindo-se de mim! Uma tristeza inexplicável apoderou-se de meu ser junto à uma fúria indenominavel. Nunca ninguém foi tão desonesto e desleal quanto ela foi! Era como se minha alma se partisse e meu corpo tomasse formas inimagináveis.
Eu sei, eu a matei. Nunca mais a verei novamente; E Marik que tantos corpos se apossou estava irreconhecível, seu físico exalava o cheiro da putrefez de cadáveres e tua pele se assemelhava à uma armadura marmoreá. O fogo era roxo e a àgua verde. Seus olhos não queimavam mais nada, e o que era antes orgulho e disciplina, hoje era só destruição. E uma escuridão nos apossou, só podia ver a vibração dos gemidos agoniantes das pessoas que contorciam-se em chamas e desespero , todos um à um caindo mortos e exacerbados, como se suas almas fossem roubadas junto às sombras. E a imagem dela vestido em branco e com os olhos celestes brilhando no breu aparecendo entre os corpos me consumia, reaparecendo como reflexos soltos na memória, e ver-te agarrada a ele, agarrada à mãos que não eram minhas... E logo em seguida me apunhalar pelas costas para sorver do meu sangue o teu veneno. Veneno esse, que tem teu nome escrito em cada molécula. (Agora sei como tu te sentes, meu amor).
Nossas vozes perdidas em diálogos tão febris e tão molhados de estrelas (de)cadentes tornaram minha sombra um lobo flamejante. Logo, meus olhos se aprofundaram em ternura e só conseguiam ver Ravenus se agoniar flutuante e vivo entre os mortos. Teus olhos transpassavam desesperança. E meus olhos eram pura solidão e desvelo.
Eu não sei como estas mãos foram parar sujas de teu sangue, querida, é como se algo fora de mim, ou melhor, ancestral de mim o tivera feito, fazer algo que deveria e em consciência eu jamais conseguiria. As sombras atravessavam perfurantes o meu ser, e fez-se um rasgo em meu íntimo e na escuridão, como se chamas lutassem dentro de mim e como um fogo fátuo da terra surgisse e iluminasse a noite. Uma fraca luz vinda da lua as penetrou.
E esta culpa que não consigo arrancar de meu peito e muito menos entender porque sou aclamado como rei me apossa. Não consigo me lembrar de muita coisa, tenho só vultos e fadigas, é como se meu corpo tivesse apagado minha mente. Um lobo vermelho de aspecto de fogo. Um falso império que sucumbe à morte. As sombras são apenas parcela da escuridão... E a flauta é apenas o primeiro afago da alma.
Ah, minha dama, será que ainda poderei te encontrar? Esta tua lembrança tornou-se serpente e mordeu meu pescoço. Só as chamas conhecem a verdade do coração. Tuas lágrimas foram o acalanto de minha fera indomável e o lamento de meu pesar. E neste momento, com todas estas palavras dispersas, despeço-me.
Ravenus se foi ao longe pelo mundo, enlouquecido em sua própria melancolia... Tuas penas e teu toque me saúdam no breu da noite e mesacodem o seio da ventura e da solidão inabalavel. Arlid que agora está sentado abaixo de meu troo como o espírito vivo de meu pai, aquietou-se, todavia, desconfio de cada passo dele. E as vezes sinto como se Yurius recordasse de mim nos jardins...!
- Eu sou o rei da terra desolada, e o trovador de uma viagem sobrenatural.
Agora infelizmente me despeço de vós, não tenho condições de prosseguir com estas cartas no estado em que me encontro. As viagens sucumbiram à escadas e portas.
Sinceras e lutolentas despedidas,
Ralph Wüf
E tudo termina com um uivo e pétalas de sangue.
O conhecimento é o mais esguio e arisco dos seres... Até ele, me abandonou nesta viagem... Ou será que eu que o abandonei?
À todos, minhas sinceras desculpas.