Cartas de um viajante - XVII

Olá,

Entrego-me às cordialidades diante à miséria da vida e da desgraça. Ter nos lábios o calor do vinho e o gosto acre da pele humana enquanto sons ensurdecidos de carne agitada se confundem com gritos e urros de dor diante a morte. Eles prometeram vingança e vieram a cumprir.

Banhar a pele em àgua e ervas, depilar do rosto os pelos, embeber-me em licores e consumir os órgãos em sexo. Nada disso vale, pois após o gozo tem-se o sono, depois do vinho o vomito, depois da morte a vingança... Entrei-me na cidade assim que o barco atracou no porto, ouvi recomendações e logo fui deixado numa instalada à beira mar. Pelo breve anoitecer caminhei pelas vielas e adentrei no lupanar mais imundo que havia naquela cidade portuária.

Adentrei com o alaurde que tomei emprestado de um bardo vagabundo que assim como eu, estava morto para sua amada, tirei do instrumento notas e das mulheres suspiros. Elas estremeciam e minha alma se agonizava em dor e pranto. Embriaguei-me e ceguei-me em orgia.

De longe vi uma mulher deixada pela vida, sua meninez já morta, seus olhos amendoados, seus cabelos castanhos, sua pele alva, seus seios fartos... Lembrou-me vagamente de minha dama do cadente. Trouxe-me ela vinho e beijos, eu os devolvi à sangue solto e carne. Carne presa e espremida na cama, no suor convulso e febril da paixão ébria e inconsolável, onde notas multi sonoras e desafinadas se confundem com urros distorcidos de prazer vazio e doloroso. Onde gemidos se soltam de gargantas rotas e bocas miseráveis se segue um morticínio e espalha aquele cheiro sanguinolento de morte apodrecida invade as narinas e os cômodos. Como eu não houvera percebido antes! Enquanto eu me consumia em carne a vida se consumia em sangue e espada. As mulheres, os bêbados, todos morriam!

Então, eu estava acordado. Sabia era sem mesmo o conhecer, sabia quem este procurava e o que ele queria, eu sabia tudo, menos como correr. Retirei a mulher de cima de meu corpo e deixei-a inerte em duvidas e questões efêmeras. Desci despido como um demônio pelas escadas e vi quem me esperava. O ar nobre, o sorriso letal, os caninos acentuados, o cheiro de morte! Chamei-lhe a atenção e cordial trocou-me palavras, respeitos e ofensas. Tocou-me o peito com a espada de prata, gemi e pensei em desfalecer, porém a mente se abriu e eu acordei em fúria que se acordou em forma de lobo. Um ardência no peito, uma ardência na alma. E eu me sentia consumindo em chamas que ardiam à ódio e se embriagavam em sangue. Fosse o dos mortos humanos no chão, fosse do sangue coagulado na veia e o esparramado nos pelos. A prata penetrava na pele e ardia a alma. Eu não poderia morrer. Tentei deixar ser morto abrindo o peito às presas prateadas do aço, prestes a sentir o esmalte morto das presas vampiricas à pele... Até que minha memória é nula, e eu mal posso me lembrar de novo do que aconteceu. Quando pensei em desfalecer senti algo mudar, uma fúria tomando o lugar de tudo e eu apenas senti o silêncio e a tranquilidade de uma brisa que beija o corpo em movimento constante. Então, desfaleci.

Acordei quando homens encontraram-me nu ainda vivo dentro do bordel, despido e desnudado de vergonha adentrei o quarto. A mulher estava morta. Pegadas de sangue seguiam até a janela onde marcas de garras tentavam apanhar. Ela havia se jogado e seus olhos gritavam espanto. Voltei à estalagem a beira-mar paguei o que devia e me consumi em duvidas e culpas.

Miséria, mil vezes miséria! Que rastro de morte e desgraça é essa que me persegue?! Não tenho respostas e nem vós, diabos que lêem e riem de meus lamentos! Matei minha amada no peito, matei meu sujo e falso prazer na cama e me afoguei em vazio... Eu não posso ser livre. Eu jamais o serei! Estou preso e encoleirado em prata quente, não posso consumir-me em vícios e muito menos em alta boêmia. Eu estou vivo graças à uma maldição de divindades loucas. Eu não posso morrer, muito menos “viver”! Apenas posso vagar como um nômade maldito, um carregador de pragas que vive a torturas! Sou um bardo flagelado! Um filósofo sem filosofia, sem razão ou conhecimento! Sou apenas um sábio ébrio em mentiras. Soprem as velas, tapem a lua, quero sofrer! Afoguem a chama que arde em meu peito e me expliquem por que viver se não há vida!

Me dizeis vós! Até quando sofrer?!?

Desesperados cumprimentos,

Ralph Wüf

“Afoguem minha lira em sons de flauta”.

Ralph Wüf
Enviado por Ralph Wüf em 24/08/2008
Reeditado em 24/08/2008
Código do texto: T1144348
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