Cartas de um Viajante - XV
Miséria! Mil vezes miséria! Que mão divina maldita é essa que sempre afaga-me a vida? Ser salvo pelos dedos do desconhecido posto aos cuidados de estranhos... Será este meu fardo? Ser o peso na boa vontade daqueles que me encontram moribundo à caminho da morte? Ou será que ainda não estou pronto para morrer? Mas quanto sofrimento ainda espera por mim? Qual martírio ainda me custará até poder ficar "cadente"... Caído, morto, sem peso, velho, nunca mais novo, podre, sem vida, sem sentimentos, apenas vazio e sem consciência?
Estou inerte em um barco que cruza este mar que me negou a morte. Não sei o destino, mas afinal, qual é o meu além de solitário vagar?
Conversei com o capitão e ele contou-me a irrisória historia de como um peixe de olhos verdes e tropicais me trouxe de volta à superfície. Chega a ser ridiculamente engraçado, inimaginável ao ponto de não querer acreditar que estou vivo.
Uma coisa nesse barco me chama a atenção, todos aqui tem uma aparência tão cansada e tão rija que o bater das ondas no casco se torna tão firme quanto a expressão severa destes homens sem passado. Todos tais marinheiros não conheceram o prazer do ontem, apenas a aridez exaustiva do hoje. Os tempos são difíceis.
Estive enquanto balanço pensando em por quê estar ainda vivo. Salvo quando criança, salvo pela sorte, salvo pelo destino... Eu sempre fui de todos o mais fraco, o menos resistente e talentoso, apenas mantive durante horas esta solidão incansável como companhia, minha única aliada de vida e morte (além desta flauta qual obrigo atenção). O vento marítimo canta uma canção diferente, ela é tão bravejante e tão sedutora que chega a exaurir a alma de descontentamentos, intimando uma alegria passageira e festiva, porém em certos trechos sinto percorrer pela vela e pelos ouvidos uma canção tão melancólica e angustiante que parece um grito de horror em forma de ventania, é como se tomasse os lamentos dos navegantes e os jogassem em pleno mar em redemoinhos lamentantes.
Mas que confusão e desesperança que abatem-me o peito!
Não sei nada, nem em qual porto desembarcar e se tal o fizer... Para onde ir? Não tenho noticias de Arlid e tão pouco de Ravenus, a ausência de Kedad me preocupa... Eu não sei para onde ir, parece que minha vida se fez teia prendendo-me em saudades e lembranças eternamente a eles. Entretanto vagarei errante como este pranto que me planta mágoas no coração, tenho canções tristes como companheiras, tenho garrafas para beijar-lhes a boca, tenho um lobo para atormentar o espírito... Entretanto, quero por um segundo ainda que sequer esquecer-me e libertar-me deste sofrimento que me persegue. Este manto sujo que me abriga do sol e da lua, apenas para deixar-me desnudo à tempestade que se aproxima, deixando meu seio descoberto para que a próxima seta se aproxime e perfure meu corpo; O manto me cobre e me sufoca.
Eu não sei para onde vou, com toda sinceridade afirmo tal descontentamento, soltarei no próximo porto e vadiarei pelas ruas e tavernas, beberei de bocas, me alimentarei de corpos feminis, purificarei minha alma no esquecimento vadio e leviano. E rezarei à volúpia e à lasciva para que me guardem e banhem em suas águas turvas e vermelhas. Quero perder-me em desdém!
Adeus minha amada, adeus! Teu amado morreu no mar.
Saudosos e Fúnebres cumprimentos,
Ralph Wüf; O Bardo das Tavernas.
"Que minha vida por uma noite, ainda que por uma misera noite, seja mundana, vadia, livre e só".