Cartas de Um Viajante - XII
Pelos deuses... Qual alma teve piedade de mim? Sinto-me como se estivesse sido jogado de um lado para outro como um pacote flácido, e laçado várias vezes pelo chicote negro da morte tendo o espírito apertado e torturado... Meu Deus, qual alma teve piedade de mim?!
Acabo de acordar atordoado, não vejo nada, porém muito sinto. Está um escuro tão vazio, como se minha alma tivesse saído e se desprendido no vácuo. O vácuo emocional.
Ataduras prendem meu peito e seguram minhas pernas, mantendo-as rijas e aquecidas. Uma dor lateja em minha mente, por trás da cabeça, como se algo tentasse puxar com toda força possuinte algo a muito guardado dentro de minha memória perdido entre o passado. Tateei o chão e encontrei caído uma carta. Minha visão embaçada que mal enxerga a negritude de onde estou não me ajuda. Sei que estou vivo e isso me conforta, fraco como meu espirito, mas ainda assim vivo. Eu sinto meu coração bater. Um medo suave cresce em mim, o que escrevo o faço no escuro; Não há som, não há vida, e isso me assusta. Aonde posso eu estar?
Me sinto calmo, como se estivesse em casa ainda criança enrolado em uma manta e sendo segurado forte e confortável no colo de minha mãe.
Ai minha mãe! Eu nunca tive memórias dela, nunca tive este conforto e ternura... Nunca soube quem foi a desgraçada que me pôs no mundo. Entretanto enquanto eu estava desacordado sonhei muitos delírios, um deles, foi uma mulher e perto dela eu me sentia como me sinto agora... Tão calmo. Ela tinha olhos ternos e cinzas, uma pele tão branda e clara, um sangue tão novo... Tão morto! Eu a vi morrer com uma lâmina prata enfiada em suas entranhas! E eu vi um homem... Um covarde, bravo como eu! Ele era forte, diferente da mulher de cabelos negros, ele era tão ruivo que parecia transbordar o laranja avermelhado do pôr-do-sol, os olhos tão azuis... Ele matou aquele que matou a mulher, ele pegou um cesto e colocou um rolo de panos. Os panos eram vivos! Tinha uma criança dentro dos panos! Entregou-a a um homem, ele desapareceu correndo pelas sombras... Então, uma flecha vinda do nada em pleno ar acertou o seu peito, ele cuspiu sangue e chorou. Aquele que corria ainda olhava para trás, e como ultimo pedido, o ruivo sussurrou da maneira mais audível possível. Ele disse: "Proteja o Ralph". E com isso ele morreu.
Logo após os sonhos se desviaram e me vi em uma solidão branca, choroso, tão quanto choro agora. Acordei com olhos ardentes, eles ardem a cada lágrima que caem, como se purgassem o meu pesar. Me sinto tão pequenino, passei tantos anos sem ter a ideia de quem eram meus pais, sem nunca ter tido curiosidade ou vontade profunda de os conhecer... Agora me sinto perdido, vi meus pais morrerem tentando salvar minha vida. Eles deveriam talvez ter me deixado morrer, um ser tão medíocre não merece estar vivo. Eu não mereço viver. Por onde passo deixo este rastro fétido de mortes... Primeiro meus pais, depois meu tio, e tão pouco atrás o Yurius...
Eu acho que deveria morrer! Só este luto deve me acompanhar! Somente o pranto me aguenta...
Será que devo deixar este fim me consumir aqui mesmo? Padecer e deixar morrer este meu lúgubre lamento... Findar o fim de meus dias.
Este envelope em meus dedos está a me instigar curiosidade, mas mal posso enxergar o selo qual o fecha, apenas sinto o bruto papel entre meus dedos. Será talvez que este meu sangue de lobo que habita meu seio adiantará de algo?
Meu corpo lateja, o suor escorre frio e um temor cresce poderoso em mim... Algo turva minha consciência, uma fúria, uma raiva flamejante, os músculos doem, os dentes rasgam... Eu não aguento mais!