Altino de Siqueira Cavalcanti: Um Destino Escrito nas Águas.
Na velha laje da escadaria do porto,
escutei o soar de um famoso e alegre apito.
Era nosso Comandante Altino, um mito,
com seu Velho Chico — um tanto torto.
Poeta Raimundinho
Entre as águas extensas e caudalosas do Rio Solimões e as lembranças que navegam na memória de Fonte Boa, vive a história de um homem que fez do rio seu destino e da vida uma travessia de coragem. Refiro-me ao comandante Altino — não apenas um condutor de embarcações, mas um guia de caminhos, construtor de pontes invisíveis entre comunidades, cuja presença deixou marcas profundas em cada porto por onde passou.
O relato a seguir nasceu das prozas que tive com o poeta Raimundinho, quando, no pretérito dia 3 de abril de 2025, o acompanhei até o porto da Manaus Moderna, de onde ele partiria rumo a Fonte Boa. Diante da imensidão do rio e da vastidão da paisagem, nossas lembranças nos levaram ao tempo em que ali permanecia ancorado o Velho Chico com o seu capitão. Esta narrativa, portanto, revive com simplicidade e reverência, momentos significativos do protagonismo de Altino, cuja jornada revela por que seu nome ainda ecoa no coração do povo fonteboense.
Altino Siqueira Cavalcanti, homem simples, determinado e visionário, foi uma das grandes figuras de Fonte Boa, no Amazonas. Comandante e proprietário do inesquecível barco motor São Francisco do Anamã IV, ele permanece na lembrança coletiva entre todos que reconhecem o valor de sua contribuição para o desenvolvimento daquela região.
Nascido em 17 de setembro de 1918, em Fonte Boa, Altino enfrentou cedo os desafios da vida. Aos 13 anos, com a morte precoce de seu pai, Antônio de Siqueira Cavalcanti, precisou abandonar os estudos para sustentar sua mãe e seus sete irmãos, iniciando ali a lida na pesca, demonstrando desde cedo senso de responsabilidade e uma notável resiliência.
Em certo momento lembrei ao poeta Raimundinho da entrevista concedida em 1998, no convés da embarcação, onde Altino reviveu um episódio marcante de sua juventude. Aos 17 anos, foi convidado por Florentino Fabrício da Silva para cuidar de um regatão — experiência que despertaria sua paixão e vocação para o transporte fluvial.
Foi nesse instante que sua vida tomou novo rumo, quando, em 1937, começou a trabalhar com o senhor Jacó Benacon. No mesmo ano, o destino lhe apresentou a jovem Lita dos Santos Turibe, por quem se apaixonou profundamente. O amor entre os dois logo floresceu com intensidade e tornou-se uma união sólida. Casaram-se e construíram uma grande e amorosa família, com 13 filhos. Revelou ainda o comandante, que dona Lita foi sua grande companheira — na vida, nas águas e nos sonhos.
Versátil e incansável, Altino exerceu muitas funções ao longo da vida — foi cortador de seringa, comerciante e visionário. Em 1948, adquiriu seu primeiro barco, o Teresinha, dando início a uma nova fase em suas atividades comerciais, conectando povoados e municípios por meio de rotas fluviais que ampliaram o comércio e integraram a região.
Em 1980, com a ajuda de seu primo e amigo Eurípedes Ferreira Lins, adquiriu o icônico São Francisco do Anamã, consolidando-se como uma das grandes referências do transporte regional. Três anos depois, ingressou na vida pública: foi eleito vereador e, posteriormente, presidente da Câmara Municipal de Fonte Boa, chegando a assumir interinamente a prefeitura em diversas ocasiões. Seu exemplo de liderança inspirou também seus filhos — entre eles, Ivan de Siqueira Cavalcanti, que foi vereador na década de 1990, também por Fonte Boa.
Mesmo após tantos anos de trabalho, Altino nunca se afastou das águas que moldaram sua existência. Até 1998, seguia comandando embarcações, pilotando o barco Viageiro, de sua filha, operando rotas pelo Baixo Amazonas, retornando sempre que podia à sua amada Fonte Boa — seu porto seguro.
Sob o fim da tarde, em meio ao crepúsculo que abraçava a região portuária do centro histórico de Manaus, evocamos novamente o velho Chico — símbolo maior de sua trajetória fluvial — que, com o passar do tempo, foi aposentado. Recordamos que, durante anos, ele permaneceu ancorado no porto da Baré, como um monumento silencioso de uma era de coragem, sacrifício e serviço à população amazônica. Sua imagem ali despertava memórias e emoções — não apenas da família Cavalcanti, mas de toda a comunidade fonteboense que nele viajou, negociou, reencontrou sonhos e esperanças em seus conveses.
Disse-me o poeta que era impreterivelmente proibido namorar dentro do barco — com direito, inclusive, à punição: o namorador podia ser deixado na primeira beira durante a viagem. Mas essa… essa já é história pra outro tempo.
O certo é que, anos depois, o barco foi tragado pelo leito do rio — como que acolhido pelas águas que o conduziram por tantos caminhos. Um fim simbólico e poético para uma embarcação que foi mais que madeira e motor: foi casa, ponte e estrada sobre as águas. Seu desaparecimento físico não apaga sua relevância; ao contrário, imortaliza-o, junto de seu comandante, na memória coletiva de Fonte Boa e de todos aqueles que vivem às margens do rio que banha essa terra de bons frutos, berço de nossas famílias.
Altino é também lembrado não apenas por seu trabalho incansável e seu espírito empreendedor, mas também por seu humor cativante. Era um contador de causos, um verdadeiro anedotário, sempre pronto a arrancar risos com suas piadas e histórias — algumas impudicas, em tempos em que os melindres eram raros e o que hoje chamamos de 'politicamente correto' ainda não dava o tom das conversas. No entanto, no comando de seus barcos, demonstrava seriedade e firmeza — era sisudo, comprometido, exigente e respeitado por sua disciplina e responsabilidade.
Por fim, quem herdou seu tino comercial e o amor pelas águas foi sua filha Cleide, que, ao lado do esposo Chiquinho — homem arrojado, trabalhador e vitorioso — segue navegando pelos mesmos caminhos. Hoje, comandam o barco Dona Lita, batizado em justa homenagem à matriarca da família. Esta moderna embarcação carrega mais do que pessoas e mercadorias — leva adiante a tradição, o afeto e o legado de um homem cuja vida foi um exemplo de coragem, amor e serviço.
E assim, pelas mesmas águas que um dia acolheram o velho São Francisco do Anamã, a história do “seu Altino” continua fluindo. Como o passado e o presente que navegam juntos, ela segue levando progresso, esperança e memória ao povo de Fonte Boa — uma herança viva que pulsa no coração do rio e de sua gente.
P.S.: Com o desejo de boa viagem ao poeta Raimundinho, dedico-lhe esta história — tecida entre memórias, afeto e o eterno vai e vem das águas do nosso Amazonas, em especial as que banham Fonte Boa.