EU, EM VERSO POR MIM E EM PROSA PELA IA

No livro saído, recentemente, do prelo da Editora Clube de Autores, Há Sempre Uma Mulher, fiz constar algumas linhas numa espécie de epílogo com o qual eu me representasse num retrato em preto e branco de mim mesmo. Vai na íntegra abaixo:

"EU, EM VERSO POR MIM E EM PROSA PELA IA

Nasci em um mundo distante da informática, da internet, das redes sociais e da inteligência artificial. E cresci em um tempo em que os jovens gostavam de assistir, nas poucas televisões existentes nos lares, aos Festivais da Canção, eventos musicais, que tiveram o auge no fim dos anos sessenta e possuíam um apelo similar a um viral dos dias de hoje.

Nos palcos televisivos dos festivais, os artistas competiam com gêneros musicais vinculados à Jovem Guarda, Bossa Nova, Tropicália e MPB. Estes movimentos, por sua vez, se dividiam entre o grupo dos alienados, formado pelos adeptos da Jovem Guarda e da Bossa Nova e o grupo dos engajados, reunindo os afeitos à MPB e à Tropicália.

Em um deles, inscrevi uma canção chamada Adivinha, contendo os seguintes versos:

ADIVINHA

Sou da terra

onde a água teima

e nunca vem molhar.

Sou do rio onde a vertente

queima em vez de desaguar

Sou o grito seco cabra,

que ninguém quer escutar.

Quem sou eu?

Quem sou eu?

Sou servo do sol a pino,

terra seca, vento, mar,

pele preta, dente ruim

com esperança de matar,

a fome, murchando o braço

que da terra quer cuidar.

Quem sou eu?

Quem sou eu?

Sou filho da natureza,

aquém do próprio chão,

pescador de mares secos

num lugar de solidão,

suor quente, mãos cortadas,

terra árida, pouco pão.

Quem sou eu?

Quem sou eu?

Àquela altura, eu tentava, através da música, desvendar o microcosmo insondável do quem eu sou, hábito comum aos adolescentes e jovens adultos, guiados pelas dúvidas e incertezas sobre si mesmo.

Os resquícios da nordestinidade se fizeram presentes na letra da canção, que repeti nos versos de Origem, insertos no livro Portas da Solidão, publicado, ainda, em linotipia pela Fundação Cultural de Blumenau.

ORIGEM

- Vim das paragens do vento

no troar de atabaques de uma raça

sentada à lenda de uma pedra.

- Vim de um bamburro, de um atoleiro,

com pensamentos de frade e desejos

além dos mosteiros.

- Vim de um bueiro

nas rodas do carro de lata

que levou à igreja meus pais

e ao cemitério meus avos...

Mais tarde, jovem adulto, persistindo a dúvida em relação a quem sou, expus em versos em linhas desiguais, alguns traços superficiais dos meus eus, externo e interno.

ECCE HOMO!

Entranhada no físico

magro, feio, raquítico,

denuncia-me a máscara

do asno que sou,

embora traga opiniões avessas

ao lado perverso da política

e das coisas.

Sou apenas humano,

irracional, confuso,

nem sei se “asso”

se escreve “acim”

ou “açado”...

Sei um verso de Drummond,

meio do Quintana,

nenhum de Rimbaud...

Das duas frases de Pessoa,

gaguejo antes do fim...

Nem sei se poesia

tem significado (?)...

Faço frases,

corrompo a realidade,

destilo idéias...

Resgato do caos morto dos vivos

algumas palavras,

desapropriando o sentido,

colando imagens...

Na vidraça que sou, enfim,

a pedra afunda...

Preencho os vazios,

que me permitem...

E só para não cair em pedaços

nunca me dou por inteiro...

Atingindo a maturidade, e já tomado pela paixão incontida pelos sonetos, dei novos ares ao velho tema da procura por mim mesmo.

NADA

Sou muito bem assim e, até, sei lá,

Nem mesmo sei mais quem ou o que sou.

Se busco ir, talvez, aonde for,

Não ache a mim ou nada no lugar.

Penso, por vez, ser hora de parar.

E achar do fogo algo que restou,

Mas sobre a brasa ao tempo que apagou

Sigo, se a arder em mim nada mais há.

Sou o que sou um nada num instante

E noutro à vida indo sempre diante

De um espelho a nada refletir.

Sou nada e nada sempre eu serei,

Sentindo o nada reino e eu rei,

Por não querer mais nada conseguir.

RAPTOS LÍRICOS

De supetão senti o sobressalto

Subir ao pé e ir-se lombo afora,

Chegou à mente e sem qualquer demora,

Pegou-me a tal loucura de assalto.

É solução ser louco, isso ressalto,

Pois o que fui joguei porta a fora

E a realidade que é uma metáfora

Não conheci sequer mesmo por alto.

Graças a Deus, bebendo a poesia,

Eu vomitei o mundo numa pia

E é náusea o que restou dentro de mim.

Da vida o quanto dei, voltou em lixo,

Mas fiz dos raptos líricos capricho

E hoje sou feliz... Até que enfim..

ENIGMA

Eu empilhei as falhas da existência

Sobre o chão e após ver o arrumado

Eu descobri do cimo haver criado

Um monumento à tosca existência.

O olhar perdido, à luz da coerência,

Fez-me, à distância, ver o outro lado

Do incompreensível ser que foi criado

Pra ser feliz, mas vive em carência.

É que a razão uma hora nos atinge.

Eu sobre os meus fracassos vi a esfinge

De sombra horrenda e face hostilizada

A enviesar-me o olhar que ainda detenho

E exigir de mim todo o empenho

Na vida que ainda quer ser desvendada

VOO

Eu sei que posso voar!

Não sendo ave ao vento,

dentro, em meu pensamento,

elevo o corpo no ar.

E sobre o espelho dos mares

sou delicada gaivota

que, sem traçar uma rota,

voa a incertos lugares.

Sou eu, se estou a pensar,

a sombra no anteluar,

a aproximar-se dos céus.

E no instante em que paro,

com grande espanto reparo:

- Eu sou o rastro de Deus!

Apesar das impressões deixadas nos sonetos de abertura deste livro e nos outros aqui elencados, nos quais quis deixar um três por quatro de mim, cheguei à conclusão de que ninguém de fato jamais conhecerá a si mesmo, seja no plano espiritual, seja no aspecto físico, já que o próprio espelho engana os olhos a mostrar, exatamente, o esboço do que queremos ser, embora os traços refletidos sejam diferentes.

ESPELHO, ESPELHO MEU

O espelho trai, mas não me acho velho,

Se em São Tomé minha alma se espelha.

A figura que traja moda velha

Traz na alma roupa acima do joelho.

O espelho é enganoso pra conselho,

Mente tão bem que a face não vermelha

Por isso um muxoxo se esguelha

Em minhas faces dignas de um fedelho.

Ora direis... O espelho só reflete

Imagens e a de cada um repete

Senão era um vazio e pra que tê-lo?

Ó espelho, ó espelho meu, meu velho amigo,

Se fealdades trago além do umbigo,

Esconda, antes que use um martelo.

Há Sempre Uma Mulher deveria ter acabado com o soneto Ponto Final. Essa era a intenção. Mas, concluído o livro, decidi que o autor não poderia ser mantido anônimo e discreto. Quem é deveria ser um mistério parcialmente revelado, mesmo porque, de acordo com Fernando Pessoa, em Balança de Minerva, “Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos” . Pensando, assim, sem medo de perder a privacidade, resolvi deixar outros vestígios do que penso ser, nesta espécie de epílogo com novos aspectos, além dos que já registrara nos sonetos iniciais e em outros textos dispersos ao longo do trabalho.

Na empreitada, vi que, para cumprir o objeto determinado de revelar-me, precisava escrever outro livro, uma vez que o nosso eu, contendo o que gostamos e o que não gostamos, o que sabemos bem ou mal fazer, as nossas esperanças e os nossos temores está escrito em linguagem objetiva e clara nesse livro guardado em nosso inconsciente que devíamos resgatar e cobrir de emoções e de letras.

Mas, igual à maioria de nós, desisti em cumprir essa tarefa, talvez, por entender, como os outros fizeram, que o destino nos nega o acesso privilegiado ao nosso eu, impedindo-nos a descrever a nós e a nossa personalidade com exatidão.

Se os meus sonetos só descrevem muito pouco de mim, para eu ter uma visão exata de quem sou, com detalhes fora de minha influência, não deveria recorrer aos amigos, posto que, com certeza, esses se sentiriam constrangidos e compelidos a falar bem. E se desse chance aos desafetos, estes aproveitariam a deixa para enxovalhar minha reputação, respingando o sobejo da secreção biliar do querer mal na obra.

Destarte, em busca de isenção, recorri à inteligência artificial, acreditando que os dados provindos de uma máquina fluíssem fiéis e imparciais. Esperava algo que se aproximasse aos registros da Curiosa autobiografia do trágico e do comediante Ermete Noveli, tido como o maior ator italiano de sua geração, publicada pelo Correio da Manhã em 1912, quando estreou no Teatro Municipal.

O entrevistado, depois de gracejar sobre o físico, sobre o retrato psicológico, ofereceu os seguintes termos:

Quanto ao retrato interno, posso assegurar-vos que a medalha apresenta inverso melhor. Possuo um caráter suave, bom (talvez demasiado bom), coração terníssimo. Quando chego, porém a compreender que me atraiçoam, então, como a Rosina do Barbeiro “divento una vipera”. Engenhoso, rápido, audacioso, espírito minuciosamente observador, memória fresca e fácil de guardar o que estudo e sempre pronta e esquecer, especialmente, a maldade dos demais. Nervoso e desconfiado como um gato, sou carinhoso como um cãozinho...

Eis aqui as minhas principais qualidades ditas pela voz de um ator do início do século vinte. Considerações deste jaez era o mínimo que esperava da IA. Mas à indagação “Quem é Erigutemberg Meneses?” recebi em resposta quatro linhas:

José Erigutemberg Meneses de Lima é um advogado e economista brasileiro que se dedica às letras. Ele é conhecido por sua produção literária, que inclui crônicas, contos, ensaios, textos jurídicos e poesia, especialmente sonetos.

Ora. Eu passei setenta anos tentando me descobrir e vem essa máquina e, em nanos segundos, me define em quatro linhas! Quatro linhas! Máquina estúpida...

Dando um muxoxo, fechei a máquina e pus um ponto final no livro."