Sobre partidas e fronteiras

Por volta de 2015, um acanhado – e diria eu, um tanto utópico – sonho começou a borboletear dentro do meu peito, querendo ganhar forma, cheiro e cor de ideia. Sabe essas ideias que entram sorrateiras na cabeça da gente, e não se dão por vencidas, até virarem feito? É uma destas, a qual me refiro.

A ideia? Empreender uma viagem sozinha além das fronteiras brasileiras. Já vinha, há algum tempo, deleitando alguns livros que tinham como eixo central o empreendimento de viagens, como, por exemplo, De moto pela América do Sul: diário de viagem, de Ernesto Che Guevara, ou Cem dias entre céu e mar, de Amyr Klink, ou ainda, Días de viaje: relatos en primera persona, de Aniko Villalba.

Entretanto, certa tarde, passeando pelos corredores da biblioteca da escola, na qual eu lecionava, um livro em particular me chamou a atenção. Trazia ele muitas páginas acompanhadas de uma linda capa, cor de madeira dourada, cheia de gravuras gravadas. Folheei curiosa, e descobri assim, as palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano e as xilogravuras do cordelista e poeta pernambucano José Francisco Borges. O livro, As palavras andantes, é um banquete de causos e relatos folclóricos, narrados de maneira enigmática.

Ao lê-lo, uma página, ou melhor dito, uma janela me inquietou profundamente. Nela estava escrito assim:

JANELA SOBRE A UTOPIA

Ela está no horizonte […] Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar.

Compreendi assim que, o meu sonho, outrora utópico, servia para isso: para eu dar os meus primeiros passos rumo ao desconhecido. O sonho, que virou ideia, caminhava agora rumo ao feito. Primeira parada: Uruguai, a terra das palavras andantes de Galeano.

DIÁRIO DE VIAGEM

Chuí, janeiro de 2017.

Não saí do Oiapoque, mas cheguei ao Chuí. Depois de 24 horas de viagem, 201 posições diferentes na poltrona e 1700 km percorridos, fui parar no extremo sul do nosso Brasil brasileiro.

Embarquei no Terminal Rodoviário Tietê, na capital paulista, em meio a um temporal que se armava. Tudo se passa tão depressa, que entre despedidas, as emoções se atropelam. O ônibus da cia uruguaia tinha uma boa pinta: dois andares, assentos confortáveis e tripulação bem receptiva. Ao me sentar pude ler a frase que se estendia diante dos meus olhos : EGA – el mejor viaje de tu vida! Encarei como um sinal de bom agouro.

Logo após alguns quilômetros, estranhamente consegui dormir, não sem antes experimentar a sensação de êxtase, que precedeu o choro, para então se transformar em alívio. Finalmente eu havia conseguido. Ledo engano, daqueles que pensam que a maior dor está na partida, na verdade, esta dor começa a surgir a partir do momento em que você decide ir e se arrasta até o dia em que você de fato parte. As últimas semanas são as mais difíceis. Você não dorme, não come e não … sim, até o intestino dá piti. Pensa tudo, sente tudo, e no final, já não entende mais nada. Você apenas segue adiante e torce para que a realidade seja ao menos parecida com o que você imaginou.

SOBRE FRONTEIRAS

Um pé cá, outro acolá. Estou quase lá. Mas afinal, onde termina o Brasil e começa o Uruguai? Ao chegar, me dou conta que as fronteiras têm seu universo particular. São dois mundos que se encontram, se mesclam, porém, não se fundem. Há uma desordem organizada, onde somente aqueles que aí vivem parecem se entender. A mim, mera forasteira, após pernoitar em um hostel um tanto precário, restava-me apenas caminhar com minha enorme mochila em busca de uma casa de câmbio em pleno domingo.

Primeira parada no Uruguai. Deixei meus pertences na rodoviária [ou quase isso] Rutas del Sol e me fui. Eu tinha apenas 2 horas e 45 minutos para tentar compreender como funcionavam as coisas em Chuí – Chuy. Calma, te explico.

Temos o Chuí brasileiro e o Chuy do Uruguai. Perguntei a um senhor uruguaio, que vendia tranquilo suas empanadas em uma banquinha de rua, o que nos separava, e achando graça da minha pergunta, ele me respondeu: “El cantero nos separa.” Simples seria, se as fronteiras que nos separam mundo afora, se resumissem a um canteiro de flores e árvores.

Fui até lá, e como uma coruja, comecei a observar. Se não houvesse os letreiros e fachadas, será que conseguiria distinguir os dois lados? À minha esquerda todas as placas escritas em português, à minha direita todas em castelhano. Atravessei a Avenida Uruguai, contei dez passos, e estava na calçada brasileira. Retornei ao canteiro. Doze passos pela Avenida Brasil, e estava en la acera uruguaya. Mais tarde, explicou-me o bilheteiro da rodoviária que cada avenida recebeu o nome do seu país vizinho como símbolo de amizade entre as duas nações.

Do lado uruguaio havia uma boa sinalização, em todas as ruas havia placas indicando seus respectivos nomes, já do lado brasileiro… bom, algumas coisas não mudam nem no fim do Brasil. Procurei por um longo trecho algo que me indicasse o nome da avenida, mas nenhuma placa sequer encontrei.

Toda esta andança me deu sede, o sol implacável judiava logo cedo. Resolvi entrar no supermercado para comprar água e algo para comer, para minha surpresa os preços estavam em reais e pesos uruguaios, e podia-se pagar com ambas as moedas, inclusive dólares. Pobres operadoras de caixa. Estava lotado de gente, onde era possível ouvir um gritando em português, outro respondendo em castelhano, fora o inglês da vida, que vez ou outra, também cruzava meu ouvido. Uma verdadeira babel.

Tempo encerrado. Era hora de resgatar minha mochila e correr para a praça onde pegaria meu ônibus. Não sei ao certo com qual sentimento me despedi de Chuí – Chuy, creio que nunca poderei entendê-los, a menos que eu viva ali. Por agora, ainda tenho outras fronteiras para cruzar.

Para ler este e outros relatos de viagens, acessem meu blog pessoal:

https://retalhosdetinta.wordpress.com/relatos-de-viagem/

Espero vocês lá!!

Liege Karyj
Enviado por Liege Karyj em 10/03/2024
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