Ascendência Materna dos Lins (de Fonte Boa)

Tendo anteriormente abordado os personagens de Milagres (CE), cujo berço advém Belarmino Ferreira Lins, e as nossas raízes nordestinas, nesta divisão discorreremos tão somente sobre a família de Zulmira, dos quais progenitores, de origens lusitana, se estabeleceram em Fonte Boa no final do século XIX.

A verdade é, que a “teia genealógica materna”, até pouco tempo era quase ou totalmente desconhecida por seus familiares. Excluindo-se um pequeno número de descendentes da primeira geração, correspondente aos 13 filhos, que guardavam raros fragmentos de lembranças sobre o assunto, notou-se que os demais aparentados jamais usufruíram de quaisquer notícias sobre eles.

Buscando ampliar este panorama, recorremos aos acervos bibliotecais do Estado do Amazonas, aos velhos alfarrábios dos arquivos públicos e aos jornais de época, objetivando outras informações que nos auxiliasse produzir uma significante síntese histórica dos “Freire de Lima”, cuja descendência corre forte em nossas veias. Eis o resultado.

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NO RELICÁRIO DA HISTÓRIA

Se por um lado a história dessa família estabelecida no Amazonas, no final dos anos oitocentos, em terras consagradas a Nossa Senhora de Guadalupe, é marcada pelo contexto dos processos migratórios, assim como na expansão econômica da Amazônia, a de seus protagonistas sobressai-se como uma marca d’água, um timbre acentuado, um relicário como expressão de amor e gratidão a esse chão de encanto e luz.

Consta que os pais de Zulmira nasceram em Portugal, e muito jovens transmigraram para o Brasil. A princípio se estabeleceram no Nordeste. Depois, na segunda metade do século XIX, como fizeram muitos compatrícios, vieram para o Amazonas.

Para o sociólogo Samuel Benchimol, os imigrantes lusitanos, participes desses processos migratórios, geralmente eram oriundos de pequenas propriedades rurais, “quase todos jovens, e pobres, filhos de agricultores de numerosas famílias patriarcais, com rígida educação doméstica, e obediente às tradições e valores religiosos”. Essas famílias, sobretudo as estabelecidas sobre as glebas agrícolas da região Norte, quando impossibilitadas de encaminhar os filhos às lavouras, não tinham alternativa senão incentivá-lo a emigrarem para o além-mar. Evidentemente, havia os que vinham a convites de parentes já estabelecidos, que geralmente os acolhiam e os ajudavam a se inserir nas cadeias comerciais locais, principalmente as de características lusitanas.

Em ambos os casos o episódio da partida era tido como um evento extremamente doloroso, tanto para os que iam, quanto aos que ficavam. Porém, para as mães, esse rompimento de presença física, do “amor materno” que gritava no silêncio das lágrimas, ao ver seu filho partir “para nunca mais voltar”, era a própria materialização de um poema trágico, que saia do mundo das metáforas para se tornar realidade. Um acontecimento muita das vezes fatídico.

O belíssimo fado “Imigrante” do cantor português Roberto Leal, em parceria com a esposa, Márcia Lúcia, além de despertar ternas memórias da terra natal, talvez possa exprimir, com muito afeto, os sentimentos dolorosamente sofridos por essas mães. Notemos, num embalo de emoções, o que diz a música:

Tantos sonhos são desfeitos /uma mãe que afaga o peito / seu filho que vai partir. / Pra longe vai o imigrante / pra outra terra distante / outro caminho a seguir. / Mal ele sobe ao navio / ao coração dá-lhe o frio / das saudades que já tem. / E olhando o lenço branco / que se agita vem-lhe o pranto / e acena pra ninguém. / Nunca mais, nunca mais / sua terra há de voltar. / Nunca mais, nunca mais / sua terra há de voltar...

De certo essa deve ter sido a mesma emoção atravessada nos corações dos ascendentes de Antônio e Laurinda, na ocasião em que deixaram aquele chão. Quando isso ocorreu? Não se sabe. Contudo, existem fortes indícios que ao chegarem ao Brasil, se estabeleceram em Pernambuco, e depois migrado a vila de Russas, Ceará, onde se naturalizaram cearenses. Isso era muito comum a época, principalmente quando os acolhidos eram crianças, circunstância que denota a hipótese de que teriam chegado ainda pequenos. Lembrando que, geralmente quem dava início a esses processos era a igreja local, cujo registros, depois de levados aos cartórios, chancelavam a emissão dos demais documentos.

A cidade de Russas, centrada no antigo território pertencente as Nações Potiguar, Baiacu Jenipapo e Canindé, constitui atualmente um dos mais importantes centros populacionais e econômicos do vale do Jaguaribe. Situa-se a 165 km de Fortaleza e, segundo Carlos Studart Filho, foi colonizada por portugueses e seus descendentes advindos de Pernambuco.

Maneco relatou guardar vaga lembrança sobre eles terem passado pelo Nordeste, mas que infelizmente não poderia confirmar o local. Foi somente com a ajuda de Bruno Mendonça, um dos guardiões de nossa história familiar, tetraneto de Antônio e Laurinda, que alguns desses indicadores ressurgiram, embora, envoltos de dúvidas:

Na certidão de casamento dos meus bisavôs, consta os nomes de Antônio Lopes de Lima e Laurinda Freira de Lima como naturais do Ceará. Nesse município de Russas, no Ceará, encontrei um registro de nascimento, de um dos filhos deles, e algumas informações sobre terem sido por lá padrinhos em vários batizados.

Os apontamentos encontrados pelo médico-historiador, fruto de intensa pesquisa, foram gentilmente compartilhados, objetivando enriquecer este trabalho. Entretanto, concordamos haver algumas divergências de informações na certidão de batismo de um provável filho, o Joaquim Lopes de Lima, nascido em Russas (CE) no dia 09 de fevereiro de 1886. Existe também uma contradição no sobrenome de Laurinda “Freires de Queiroz”. Sabe-se que os erros de grafia eram comuns à época, isso é muito visível nos livros de registros acessados, o que talvez possa justificar o “Freires” em vez de “Freire”. Todavia, referente ao “Queiroz”, seria este o sobrenome de solteira de Laurinda? Provavelmente sim, já que em outros assentamentos verifica-se tais informações, antepondo-se, aos dados dela, o “Lima”.

Confrontando diversas outras referências que nos chegaram as mãos, tão somente nos restou especular, se teriam eles constituído matrimônio em Russas, entre os anos de 1885/1886, antes de migrarem para o Norte? Provavelmente, sim.

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REGIÃO DO ACRE – ALTO JURUÁ

Apesar de não sabermos precisar a data, tempos depois, a família migrou para a região do Acre, então território boliviano, que desde 1852 não era ocupado pela Bolívia, pois além de ser uma região de difícil acesso, não oferecia ao país nenhuma rentabilidade econômica. Contudo, com o início do ciclo da borracha, o governo começou a exigir a retirada de todos os colonos que não fossem procedentes. Como se não bastasse, o Peru, visualizando o gigantesco potencial econômico que surgia, dado a riqueza gomífera da região, também começou a reclamar para si a extensão daquelas terras, de tal feita que, todo esse imbróglio gerou diversos conflitos armados entre brasileiros, peruanos, e bolivianos, o que resultou em disputa ferrenha do espaço.

Antes da riqueza dos seringais serem reveladas pelos primeiros exploradores, a região do Acre era totalmente desconhecida. Os mapas sequer mostravam para aonde iam os rios acreanos. Entre 1875 e 1880, com o “primeiro ciclo” da goma elástica, a região já se encontrava intensamente ocupada por brasileiros (principalmente nordestinos) e imigrantes de Portugal. Pertencente à Bolívia por força dos Tratados de Madri (1750), e Ayacucho (1867), à medida que os brasileiros foram avançando mata adentro em busca do látex, os conflitos armados não tardaram acontecer. Desses destacam-se: a disputa de Gálvez, a do Exército Boêmio dos Poetas, e a Revolta Acreana de Plácido Serrano.

Eurídice, uma das vozes que ajudaram a reconstruir essa história, ao tecer alguns brilhos de notícias surgidos à varanda de suas recordações, nos informou, que antes dos primeiros conflitos se intensificarem - para depois darem início ao que se convencionou chamar de “Revolução Acreana” - os pais de sua “mãezinha”, já observavam atentamente os movimentos migratórios que se deslocavam às regiões do Amazonas, buscando nesse feito a possibilidade de recomeçar a vida longe das constantes ameaças e dificuldades de isolamento que faziam perecer centenas de famílias.

Num desses clarões de oportunidades tomaram a decisão de migrar para o Amazonas, no qual se dizia haver um “eldorado” que cintilava luzes de riqueza e progresso. As circunstâncias indicavam ser a própria região do Juruá o local mais conveniente para dar início a nova jornada de vida. A proximidade facilitaria a locomoção e minimizaria os custos. Havia também uma forte corrente de união afetiva e comunitária formada por outros retirantes conhecidos, que por lá tinham se fixado em tempos passados. Todavia, algumas situações atrapalharam os planos, e dado a os contratempos acabaram por adiar a viagem.

Eurídice assomou que, em certa ocasião, Iquitos, no Peru, onde existia uma grande comunidade portuguesa, e um dos mais importantes portos comerciais da região, também surgiu como opção aos seus avós maternos:

Mas a ideia não vingou. Pareceria que o Amazonas os chamava pra cá. Imagine se eles não tivessem vindo para essas bandas. Imagine se não tivessem ido para Fonte Boa. Mamãe nunca teria conhecido o papai, e nem eu, nem você, nem seu pai, nem ninguém da nossa família estaria por aqui hoje contando essa história.

Destino, acaso, ou simplesmente um fato? Pouco importa. O tempo tomou seu curso, seguiu seu caminho, assim como fazem os rios jusantes, cujas águas vencendo obstáculos ajudam a fertilizar os solos de várzea fazendo florescer histórias de vida.

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A VILA DE FONTE BOA

A vinda dos Freires de Lima a Fonte Boa - conforme ilustrou Clarice, em referências aos antigos relatos de sua mãe - se deu, a princípio, por interferência de um comerciante regatão, desses que trocavam mais que vendia, e que muito ajudaram a escrever a própria história do Amazonas. Foi por intermédio dele que ficaram sabendo da existência do vilarejo:

O velho comandante costumava dizer ao vô Antônio, que sempre que ele passava por aquela vila, não sabia dizer o porquê, mas lembrava-se do amigo português que sonhava em se estabelecer no Amazonas.

Fonte Boa ficava na contramão de onde residiam. Para chegar ao local dos antigos Taracuatíuas, era preciso descer no barco a “Vapor” toda a calha do rio Juruá até seu delta, em terras do Amazonas, e depois subir as trincheiras largas e caudalosas do rio Solimões até as ribanceiras daquele lugar. Pequena, porém, pujante, a vila, tida como hospitaleira, margeada pelo cristalino rio Cajaraí, se espraiava à frente do gigantesco Solimões, que naqueles idos já havia se tornado a principal rota das grandes embarcações que faziam linha de comércio e passageiros entre Manaus e o fronteiriço povoado de Tabatinga.

Entre as muitas narrativas cheias de alegorias e metáforas, Clarice, da mesma forma, lembrou de ter sua mãe revelado, que o fato de tantos patrícios terem começado a falar sobre o lugarejo, foi o que deu a seu pai Antônio, a combustão derradeira para tocar de vez o antigo sonho de ver a família estabelecida no Amazonas. Assim o fez, até “porque ninguém vai dormir nossos sonhos” como bem expressa o cantor Dalton em sua bela e reflexiva música “Muito Estranho”, que por sinal foi um sucesso nos anos 80. Ponderações a parte, claro que esse novo chão não haveria de ser outro, senão Fonte Boa.

Eurípedes, ao abrir as janelas do quarto de suas memórias, em uma das muitas prosas sobre o assunto, com um olhar distante buscando relembrar a data em que ocorreu esse evento histórico, baixou a cabeça e depois de alguns minutos, disse:

[...] infelizmente ela se perdeu no tempo. Mas provavelmente chegaram a Fonte Boa entre os meados dos anos de 1895 e 1896. Sei bem por que mamãe chegou lá muito pequenininha, e em 1897 eles já tinham um pequeno comércio, das quais lembranças ela carinhosamente carregou em seu coração até o fim de sua vida.

Em outro instante, Maneco informou, que ao chegarem a vila, a família de seus avós maternos já se constituía de uma prole de filhos, alguns provavelmente nascidos no Ceará, outros no Alto Juruá, na dita comunidade localizada à região do Acre. Contudo, bem lembrou: “houve também os que nasceram em Fonte Boa”. Entretanto, no bojo dessa história, avulta-se aqueles que não nasceram na vila, mas dela fizeram sua pátria, a exemplo de Zulmira e outros irmãos, que acabaram sendo naturalizados fonteboense. Isso se deu na hora que seu pai, Antônio, foi protocolar o nascimento das progenituras no cartório local. O tabelião, ao fazer os registros, os nominou “natural daquele lugar”. Para Zulmira, em especial, o fato ocorrido se transmutou em sentimentos de honra, que guardou por toda existência.

Naíde, que trazia consigo a beleza e o encanto das prímulas, complementou que, sua mãe, sempre acreditou ter sido o “destino traçado por Deus”, o verdadeiro responsável por levar seus pais, Antônio e Laurinda, à Fonte Boa, para que pudesse se tornar fonteboense. “A propósito, o acaso também tinha reservado a ela uma pessoa muito especial, por quem se apaixonaria, casaria e constituiria uma bela família”, finalizou a matrona dos “Lins de Albuquerque”.

Nesse período, de acordo com o que escreveu o professor Sebastião Lima, havia em Fonte Boa dois núcleos habitacionais, a antiga Freguesia, localizada numa região “pantanosa” de difícil acesso, às margens das cabeceiras do rio Cajaraí, cujas pouquíssimas residências existiam, e a nova Vila, situada em terra firme, alta e plana, às margens do Solimões, conhecida por “sítio Barreiras de Fonte Boa”, na qual se encontra a atual sede do município.

Foi lá, neste segundo núcleo, que eles se estabeleceram, numa casa simples que se diferenciava pelas características da cultura lusitana oriunda de sua pátria. Por fora, uma residência com feições amazônicas, mas por dentro, portuguesa, como bem lembrou Eurídice:

Mãezinha dizia que as mãos de vó Laurinda cheiravam a flores de lavanda, e a casa de seus pais, cheirava a alecrim. Que de suas lembranças, de menina moça, recordava da fartura de carinho que os visitantes recebiam. As janelas tinham cortinas. Na mesa, além dos muitos produtos regionais que eles adoravam, havia também pão e muitas frutas. No quarto costumava cobrir a cama com cochas de chita alinhadas e almofadas ornadas com fita de cor. Na sala grande lembro do lugar de oração devotada a Nossa Senhora. À frente, um jardim e algumas árvores de onde vinham os cantos dos pássaros pelas manhãs. Como mãezinha falava, “nossa casa em Fonte Boa tinha ares de uma casa portuguesa”.

Para ilustrar as palavras embevecidas dessas recordações, recorremos a poesia contida na belíssima canção “Casa Portuguesa”, uma das mais conhecidas da música lusitana, especialmente interpretada pelo timbre da famosa fadista, Amália Rodrigues, que diz:

Numa casa portuguesa fica bem / pão e vinho sobre a mesa / e se a porta humildemente bate alguém / senta-se a mesa com a gente. [...] Quatro paredes caiadas / um cheirinho à alecrim / um cacho de uvas doiradas / duas rosas num jardim / um São José de Azulejo / mas o sol da primavera / uma promessa de beijos / dois braços à minha espera. É uma casa portuguesa com certeza. / É com certeza uma casa portuguesa.

Com o passar do tempo, e muito trabalho, os “Freire de Lima” logo viram os negócios prosperar, e os filhos, um a um, se estabelecendo, formando novos lares. Antônio, se tornou influente, militou politicamente, empreendeu como grande proprietário de terras. Sua esposa, Laurinda, foi seu esteio, trabalhadora, mulher firme que esteve sempre ao seu lado. Assim, contemplaram ver o surgimento dos netos, todos fonteboenses, homens e mulheres que ajudaram a construir a identidade social daquele lugar, tal qual fizeram tantos outros nativos, imigrantes, migrantes, conterrâneos ou não.

Vejamos na próxima cena um pouquinho mais de suas histórias.

LINS, Eylan Manoel da Silva. OS PIONEIROS: raízes da Família Lins no Município de Fonte Boa, 2023.

Eylan Lins
Enviado por Eylan Lins em 16/11/2022
Reeditado em 25/09/2023
Código do texto: T7651100
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