MARIA DE JESUS FERREIRA LINS (Tia Duty)
Adoro recolher pedaços do passado, fragmentos da história e memória de minhas raízes. Eles chegam a mim como um rio que corre em abundancia, às vezes calmo, noutras torrencial, mas ambas produzem encantadoras reflexões, e, mesmo com palavras desajustadas, proponho aqui compartilha-los. Acredito que as lembranças não podem se perder nos devaneios do abandono. É nesse sentido que resgato um pouquinho daquela que foi, e continua sendo, muito querida, tia Duty. Mas o faço na mesma perspectiva da escritora Lya Luft, quando diz: “Lembro-me do passado, não com melancolia ou saudade, mas com a sabedoria da maturidade que me faz projetar no presente àquilo que, sendo belo, não se perdeu”.
Não há conheci em vida, mas tenho um enorme carinho por sua memória. Sua história, muitas vezes suscitada e revivida pela oralidade de seus irmãos, em várias rodas de conversas provocadas por mim, muito me tocou. Ela foi uma mulher dinâmica e arrojada, humana e bem relacionada, apaixonada pelas melodias musicais, artes plásticas e poesia, entretanto, padeceu também das máculas mortais das dores provocadas pela perda prematura de seu esposo e filho.
Tia Duty, que recebeu na pia batismal da Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, o nome de Maria de Jesus Ferreira Lins, nasceu em Fonte Boa, Estado do Amazonas. Filha do casal Bellarmino e Zulmira Lins, (a quem idolatrava) veio à luz da vida terrena no dia 04 de maio de 1915, em sua aconchegante casa.
Na minha relação costumeira de provocar inquietação as lembranças de papai, houve um dia em que, ao conversarmos sobre tia Duty, ele recordou que ela “viveu sua infância cercada de muito carinho e atenção. Como todos os outros irmãos, ela também gostava de brincar e correr no quintal de nossa casa onde também funcionava o barracão comercial do seu avô.” À tarde, sempre bem vestida e perfumada, lembrou papai, “ela costumava passear na praça, sentar-se frente ao gigantesco Solimões que margeava a velha cidade que o rio levou, e sempre que a brisa chegava, ou alguém se descuidava, lá estava ela, solta, correndo e brincando de roda ou manja no terreiro localizado frente à velha Igreja.” Mas, o que papai bem destacou, foi ambiente mágico que permeava sua infante idade e as muitas histórias literárias que sua professora primária lhe fez chegar às mãos, que de certo há inspirou viajar a lugares distantes através de sua fértil imaginação.
Já tia Dalila, certa feita, recordou que os estudos primários de sua irmã Duty foram realizados em sua cidade natal, onde desde cedo se “destacou em sala de aula não só por ser uma aluna estudiosa e extremamente aplicada, mas por suas ações respeitosas impregnadas de valores”. Sua professora logo percebeu que a pequena Maria tinha um potencial intelectual que deveria ser mediado, e assim o fez. Não tardou Maria de Jesus Ferreira Lins, tornou-se uma jovem dotada de sólida cultura, revelando que sua boa criação a fez também uma mulher virtuosa.
Tio Eurípedes, um homem sábio de muitos atributos, foi em vida um genial memorialista que adorava reviver, de forma intensa e real, o passado distante. Certa vez em que proseávamos a caminho de sua casa, com o semblante sereno e alegre, lembrou que a formação do caráter de sua querida irmã foi forjada desde cedo no próprio seio familiar em que viveu. Trago a memória o momento em que repentinamente ele olhou em meus olhos e frisou, “tua tia Duty seguiu firme as orientações de papai e mamãe. Eles acreditavam que os estudos, e a formação do bom caráter forjado no ambiente familiar e social, seriam ferramentas indissolúveis para o seu sucesso profissional e suas realizações pessoais.” Decerto, esta filosofia fez com que ela internalizasse forças para realizar seus sonhos e fazer o que mais gostava, ou seja, servir aos jovens e demais membros de sua sociedade como educadora proficiente. Assim seguiu seu caminho, e, em 1924, fixou residência na capital Amazonas para concluir seus estudos. Em Manaus diplomou-se professora no então lendário Educandário Nossa Senhora do Carmo. A partir de então, revelou-me tia Clarice, “ela exerceu o magistério primário com brilhantismo, pelo qual, desde cedo já demonstrava amor e pendor inato”.
No juntar de tantas lembranças, eis aqui, outros fragmentos reconstruídos, das muitas histórias que pude colher sobre tia Duty!
FORMAÇÃO DA FAMÍLA LINS CHEBEDIM
Em 15 de setembro de 1945, tia Duty, que há tempos já vinha vivendo uma grande paixão com Tufi Chebedim, um comerciante de Benjamin Constant - que tinha descendência árabe - após tradicional permissão dada pela família, enlaçou noivado com aquele que seria sua primeira e única paixão amorosa. O casamento ocorreu em Fonte, em clima de muita festa e alegria. Depois de casada passou a morar e desfrutar sua nova vida em Benjamim Constant, onde seu esposo era empresário de sucesso. Dessa bem sucedida união, nasceu, em 1946, o único filho do casal, Said Lins Chebedim, que veio preencher de mais afeto e alegria o lar deste jovem casal.
Em ultima visita que fiz a tia Clarice, suscitei o assunto sobre o meu trabalho de está resgatando a história e memória de nossa família. Entre uma prosa e outra, quando falávamos a respeito do nascimento de seu sobrinho Said, tia “Catota” acabou me revelando que “... o Tufi e sua tia Duty nutria grande paixão pelo pequeno Said. Mesmo ainda no ventre de sua mãe já recebia dos dois muitos carinhos. Mas minha irmã tinha por ele um amor pleno”. Suas lembranças me transportou imediatamente a assertiva reflexiva do escritor Barbosa Filho, quando escreveu: “Ser Mãe é assumir de Deus o dom da criação, da doação e do amor incondicional. Ser mãe é encarnar a divindade na Terra”.
Said, sem dúbio algum, foi a maior alegria de tia Duty, e como sempre, foi em vida, carinhosa, meiga e atenciosa com seu filho. Jamais cansou de mimar em seus braços o amado rebento até que o mesmo adormecesse, somente então o colocava em sua rede que estava sempre limpa e exalando perfumes de fragrâncias suaves.
A MORTE DE TUFI E SAID
Certo dia desses, em que o ócio produtivo me batia à porta, estava deitado na rede, lá no quintal de casa, quando me lembrei do padre Fabio de Mello, que em uma de suas palestras proferidas aqui em Manaus, falava sobre a dor da partida daqueles que amamos. Um fragmento de frase que jamais esqueci foi: “a saudade eterniza a presença de quem foi...” Talvez esse tenha sido o primeiro sentimento imperceptível de uma semente plantada em tia Duty, quando seu esposo, Tufi Chebedim, em uma das viagens de negócios, entre Benjamim Constant e Fonte Boa, faleceu de forma insidiosa. O fato se deu em vista de um acidente aéreo, em que o avião aonde viajava, caiu no Rio Solimões próximo à cidade de São Paulo de Olivença. A natureza do acidente e a falta de técnicas de busca e salvamento, à época, não permitiu que houvesse o resgate de seu corpo, sendo o mesmo, ironicamente, sepultado nas profundezas do maior rio do mundo, o mesmo que tanto amava. A notícia de sua morte fora recebida por transmissão de telégrafo, que comunicou a tragédia destacando a relação dos nomes de todos os tripulantes e passageiros mortos no acidente, inclusive, a de Tufi Chebedim.
A morte inesperada e repentina de seu esposo foi um choque terrível a sua sensibilidade, que logo se viu resguardada pelo luto e apoio indelével de sua família. Viúva, portanto, procurou solucionar seus problemas, principalmente os empresariais, na qual tinha a responsabilidade de manter a firma funcionando ao mesmo tempo em que teria que honrar os pagamentos de seus credores. Para este ofício, teve o apoio incontestável de seu primo-cunhado Belarmino Gomes de Albuquerque – o Belo Gomes, que fora gerenciar as atividades comerciais.
Em 1951, quando as feridas pareciam cicatrizar, outro terrível golpe de profunda tristeza veio a enlutar aquele lar de paz e união. O fato é que tia Duty foi novamente apunhalada pelo “ingrato destino” que inesperadamente tragou de seu seio, roubando seu convívio, o tão amado e único filho, Said.
Papai relembrando o fatídico momento, falou-me que tia Duty, passou a se julgar morta desde o ocorrido com seu querido Said. A tristeza era extrema e a dor insuportável, pois seu coração de mãe amargava perenemente o dissabor de padecer o óbito de um filho. Said, de vida com tão pouca duração, assemelhou-se a um “astro” cuja fulguração de sua claridade, é de estrema beleza, no entanto de estadia curta. E assim findou-se a história de Said, menino gentil, toda esperança, que partiu deixando um grande vácuo no coração de sua mãe e na admiração de seus entes queridos, cuja memória, agora se torna um legado ao porvir.
Todo esse contexto me leva acreditar que a morte é uma dor que faz sentido. Ela nos leva ao patamar de muitas reflexões, sensibilizando-nos a uma proposta de vida intensa e florida. Mas, como superar a dor de se perder em um curto espaço de tempo, o marido e o filho que tanto amava, e tantas alegrias frutificavam ao doce lar dos Lins Chebedim? Somente o espírito forte, a fé, a formação religiosa, a esperança que não morre nunca, e o apoio familiar, foram, talvez, capazes de fazer com que tia Duty retornar-se a sua vida, entretanto, não mais radiante quando nela se tinha Tufi e Said. Nada obstante, enquanto vida teve, seu coração, ferido no mais puro amor, jamais deixou de sangrar em ardência de saudades, principalmente ao querido e estimado filho, tão cedo partido para o outro lado da vida.
Tenho convicção de que o pequeno Said, recolhido à luz da saudade agasalhada no peito de sua mão, transformou-se em versos diários, sentimentos poéticos que lhe ajudaram, mesmo na fragilidade do momento, seguir adiante. Creio também, que por trás da vidraça, se aqui pudesse reproduz literalmente Said, de forma metafórica, um simples verso do belo poema “Canção de Outono”, de Cecília Meireles, bem traduziria essa impressão, vejamos: “Tu és a folha de outono/ voante pelo jardim./ Deixo-te a minha saudade/ - a melhor parte de mim”. Não teria sido, portanto, as lembranças da saudade, a melhor parte de Said deixado a tia Duty neste novo e duro momento?
Após a morte de seu esposo e filho, largou tudo, e com o apoio de seus familiares se estabeleceu definitivamente em Manaus. Lá passou a residir na Rua Luís Anthony, no centro da cidade, bem atrás da Igreja do colégio Dom Bosco. Mas, com a saúde debilitada, e por insistência de seus familiares, resolveu ir morar com sua mãezinha que residia na Rua Belém, bairro da Cachoeirinha, onde viveu até o último dia de sua vida.
O destino, talvez não tão mais ingrato agora, tinha que cumprir sua última tarefa. Acredito que, em algum lugar florido no Reino do Céu, Tufi e Said, há tempos aguardavam para que esta família se reunisse novamente, e a felicidade pudesse reinar através da união dos três. Desta forma, e somente assim, foi possível tia Duty juntar-se a eles. A data de sua viagem ocorreu no sábado do dia 03 de novembro de 1962, com seu falecimento, aos 47 anos de idade, vítima da tão famigerada febre “tifoide”, que se alastrou nesses idos de forma epidêmica no Amazonas. Sua veste mortal fora sepultado no cemitério São João Batista, em Manaus, no jazigo da Família Lins, ao lado de seu estimado pai, que provavelmente, sisudo como sempre foi, também estava presente em espírito para recebê-la, conforta-la e abraça-la, assim como fazia em vida.
Talvez esteja certo Khalil Gibran, célebre escritor libanês quando em uma de suas fantásticas reflexões escreveu: “Os corações que as tristezas unem permanecem unidos para sempre. O laço da tristeza é mais forte que o laço da alegria. E o amor que as lágrimas lavam torna-se eternamente puro e belo”. Agora podemos entender que tia Duty cumpriu sim, de forma digna e rutilante sua curta missão na terra, e retornou para permanecerem junto daqueles que o aguardavam cheios de amor eternos!
A guisa de conclusão, você deve ter percebido que no bojo da história de tia Duty, aqui reconstruída e rememorada com muita intensidade, “... àquilo que, sendo belo, não se perdeu”, conforme propõe Lya Luft, pois, o sentido deve ser entendido não somente pela formosura das flores existenciais, mas na própria dor intensa, cujo real encanto aqui se restituiu no reencontro de seus familiares às margens serenas do outro lado do rio da vida, construindo, portanto, um elo entre a razão e a emoção esperançosa necessária ao equilíbrio da poética da vida.
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