CLARICE FERREIRA LINS

Escrever sobre minha família é sempre motivo de festa. A felicidade que sinto faz com que a varanda de minhas memórias seja adornada pela alegria das lembranças constantemente arejadas pelo frescor da brisa da liberdade que se apossa de meus sentimentos. Nessa empreitada acabo lançando mão de minha visão de mundo, revelando minha própria alma. A forma romanceada surge com objetivo de homenagear a história e a memória de meus familiares.

Tia Clarice é um desses romances concebidos no bojo da saudade e alegria. Esteve conosco por 93 anos. Por mais de nove décadas de vivência, manteve firme o espírito jovial e a eterna juventude preservada pelas emoções vividas. Recordar sua história - preservando sua memória - é para mim uma dádiva, a mesma que a natureza dispõe ao jardineiro que vive cercado de roseiral!

FLOR CLARICE

Tive o prazer, de na minha infante adolescência, conviver quase que diariamente com tia Clarice. Eis um pouquinho de sua história!

Clarice Ferreira Lins - alva como uma flor-de-leite - nasceu em Fonte Boa (AM), numa bela sexta-feira do dia 16 de julho de l920. Filha de Belarmino Ferreira Lins e Zulmira Lima Lins, a pequena, perfumada e luzida com olores e cores de flores silvestres, veio ao mundo com uma missão especial: ensinar que a felicidade está presente na simplicidade da vida!

Certa vez tive a oportunidade, entre uma e outra conversa, de perguntar a ela como tinha sido sua infância. Antes de responder, um sorriso adocicado veio-lhe aos lábios. Um suspiro rompeu o silêncio e logo começou a rememorar a pretérita primavera de sua infante idade. O fez como se o terreiro de sua casa estivesse projetado ali à frente de suas retinas. Com um olhar distante e as mãos gesticulando suavemente, a magia das lembranças a transportou as divertidas brincadeiras de roda, as suas bonecas que tanto prezava, ao carinho constante de sua mãezinha, a imagem sisuda de seu pai, aos banhos de rio, mas neste não podia de forma alguma chegar perto quando estava em seus dias de regras “por causa do boto”, ressaltou com uma grande gargalhada. Lembrou-se das muitas histórias do curupira, cobra grande e mapinguari que muito lhe amedrontara a imaginação nas rodadas familiares que ocorriam ao fim da tarde, logo após o jantar. Recordou de seu apelido quando criança, Catota. Assim era alcunhada por seus irmãos. Finalizou expressando que sua infância foi gozada com muita intensidade, e dela tinha boas e agradáveis lembranças. Talvez os primeiros versos do poema “Meus oito Anos”, de Casimiro de Abreu, possa muito bem traduzir o sentimento em elegia a sua infância recordada, vejamos: Oh, que saudades que tenho / da aurora da minha vida / da minha infância querida / que os anos não trazem mais.

Buscando saciar minhas inquietações familiares, sempre que por lá estava insistia para que tia Clarice me contasse um pouco mais a respeito de sua história pessoal, seus sonhos, sua formação escolar, etc. Ela sabia que daquelas conversas um dia eu iria escrever sua história. Tinhosa e reservada acabou por concordar falar “mais um pouquinho” sobre sua vida, desde que fosse breve. Então, sem titubear, seguiu falando de sua formação escolar. Lembrou-se que teve a felicidade de iniciar seus estudos primários com uma carinhosa professora, uma vizinha que mantinha fortes laços de amizade com sua família. Dela gozava profundo respeito e carinho, o que era recíproco, apesar da firmeza e cobrança constantes. Um grande exemplo a ser destacado por esta educadora, bem lembrou tia Clarice, fora a metodologia de educar as crianças. Não fora apenas uma singela professora repassadora de conhecimento e de conteúdos pragmáticos pré-estabelecidos pela escola, mais sim uma visionária que soube muito bem preparar seus educandos para a “vida”! De forma proativa, a mestra intensificava o processo pedagógico lançando mão da formação do caráter e da importância dos valores morais e éticos necessários para que os pequeninos, enquanto adultos, pudessem desfrutar um futuro promissor através da honestidade e do caráter elevado. É como diz, Mahatma Gandhi: A verdadeira educação consiste em por a descoberta ou fazer atualizar o melhor de uma pessoa. Que livro melhor que o livro da humanidade?

Seguindo os preceitos forjados no próprio seio familiar, e os caminhos delineados pelos reforços das práticas humanistas de sua professora, tia Clarice deu os primeiros passos em busca da realização do grande sonho de sua vida: estudar para também ser professora.

Em sua terra natal conclui seus estudos primários. Em momento oportuno, estabeleceu moradia na capital a fim de aprimorar os conhecimentos e realizar o sonho. Ao aportar na Paris dos Trópicos (Manaus), admirou-se em ver cravado no meio da selva uma cidade de rara beleza, uma cidade cosmopolita de prédios suntuosos e elegantes. A grandeza do Teatro Amazonas, que só conhecia por breves comentários, lhe deixou profundamente encantada. Na terra do mormaço (Manaus) concluiu seus estudos secundários formando-se professora normalista, função que se dedicou com profunda sensibilidade por vários anos. Mas foi na empresa dos Correios que ela definitivamente se estabeleceu, exercendo atividades administrativas até se aposentar em 1976.

Tia Clarice, desde muito cedo fora dotada de fina educação, tanto familiar quanto escolar, o que acabou por forjar em seu caráter de mulher amazônica, as raras e elevadas qualidades que se conservaram até o dia de sua partida.

SIMPLICIDADE, SEU MAIOR LEGADO

É sabido por grande parte de seus familiares que tia Clarice dedicou-se intensamente a cuidar de sua eterna e sempre amada “mãezinha”. Foi sua leal e melhor companheira. Assim, pouco gozou de vida social. Quando não estava trabalhando, estava sempre em casa cuidando de vó Zulmira e dos irmãos que por lá pairavam.

Além de boa educação, tia Clarice era reconhecida por ser uma moça muito bonita, e por ter um olhar cigano e místico que carregava consigo todos os seus desejos e angustias. Sempre foi uma mulher muito atraente. No rosto despontava o belo encantador sorriso que lhe acompanhou até pouco antes de sua partida. Foi noiva por várias vezes, três para sermos mais exatos. Nunca casou. Como ela mesma costumava falar: “não casei porque não era pra casar. Deus tinha outros planos para minha vida!” Não o fez por questão de escolha. Bem compreendera que sua missão, há muito já havia sido remetida a algo bem maior, a de ser mãe abnegada (de vó Zulmira), e tia querida, fato imperceptivelmente consumado por toda sua vida. Tornou-se, portanto, uma mulher altruísta e mantenedora de alegria de sua família.

Sempre escutei que sua maior desdita, foi não ter tido a ventura de conceber filhos. Que talvez, se assim lhe houvesse o destino reservado a missão de ser mãe, sua trajetória teria sido suavizada com os carinhos, os risos e as travessuras infantil. Mas se olharmos por outro ângulo, o do coração, da bondade humana, da percepção e da espiritualidade que habita nosso ser, vamos reconhecer que tia Clarice foi mãe sim! Aliás, podemos dizer que fora grande, generosa, dedicada e amantíssima mãe. Vou além, foi uma mãe fantástica! Mãe de sua preciosa Zulmira e de seu pequeno Whastinho.

Florbela Espanca tinha razão: “há uma primavera em cada vida”. Quando conseguimos entender esses laços sentimentais, chegamos à conclusão que, transcender os limites de ser filha, e se tornar mãe daqueles que a concebera, é inegavelmente uma dádiva conquistada por poucos. Conquistar o coração de uma criança agasalhando-o em seu coração como filho nascido de seu próprio ventre, é um ato de amor universal. Ver o filho na idade madura reconhecer todo o desprendimento, o amor e carinho recebido pela mãe adotiva, se reveste em um momento de gratificação, reconhecimento de missão cumprida; é um ato florido de cumplicidade ao amor. É a primavera da vida!

Devotadíssima de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, foi em vida uma mulher virtuosa, elegante e vaidosa! Seu lado genioso foi outra grande característica sua. Não gostava de “tirar retrato” mais quando o fazia – quase sempre por alguma obrigação - fechava o semblante e escondia o sorriso. Vale lembrar, entretanto, que alguns meses antes de sua partida, tia Clarice pousou para fotos com alguns familiares, sorrindo, sorrindo muito! Estava como sempre foi, elegante, cheia de adornos, florida de bons sentimentos e perfumada de carinho. Talvez, uma das poucas vezes, durante 93 anos, essa tenha sido a oportunidade de termos seu sorriso registrado em fotografias! Pode até parecer bobagem, mas é um grande feito histórico.

Com a morte de sua querida mãe Zulmira, ocorrido em 1984, e o casamento de seu filho Washington, tia Clarice passou a morar sozinha. Quer dizer, sozinha em termos de dizer, pois estava sempre acompanhada por uma secretária e seus animais de estimação. Ademais, seu filho-sobrinho a visitava diariamente. Papai (Maneco) todos os dias também estava por lá, era seu parceiro de dominó. Tio Eurípedes também foi muito presente em sua vida. Dona Adelaide foi para ela muito mais que uma cunhada, foi uma amiga, muitas vezes uma irmã. Mas era com a tia Dalila, sua irmã caçula, que mantinha um relacionamento mais próximo, um misto de amizade e irmandade espiritual. Quando esteve mais frágil, já nos últimos anos de vida, recebeu de tia-flor Dalila uma atenção especial compartilhada com o seu Whastinho, assim como, o carinho de seus sobrinhos e outros parentes.

MISSÃO CUMPRIDA

Já havia algum tempo que tia Clarice se encontrava debilitada de sua saúde. Um marca-passo instalado em seu peito para nivelar os batimentos cardíacos, há tempos fazia parte de seu dia a dia. A memória, vez outra, se desencontrava de sua lucidez. Mas a firmeza de sua aparência denotava está firme e forte como uma Itaúba, árvore de grande resistência da região amazônica.

Certa feita sentiu-se mal e foi internada para cuidados médicos. Dias depois, chegou à triste notícia de que ela havia partido. No leito do hospital, amparada aos braços de uma sobrinha querida, confessou, em suas últimas palavras, que já era hora de ir embora ao encontro de seus pais e de seus irmãos. Logo rogou o perdão a Deus, fez suas orações preceptorias e voltou a descansar. No dia 10 de setembro de 2013, as onze horas da manhã, findou-se a essência de seu corpo. Tia Clarice partiu, atravessou o grande rio da vida, juntou-se aos seus familiares e a presença de Deus Pai Criador.

No início da tarde, no rito de despedida, ela, deitada em sua branca canoa, ornamentada de flores diversas, parecia um pássaro angelical adormecida sobre rosas. Veio-me à luz a ressignificação da metáfora de sua vida. Tia Clarice estava partindo como veio, ornada de flores perfumadas, agora levada pelos ventos elísios. A frente de minha mente surgia no temporal das emoções um trecho da música de Nelson Ned cujo canto soara leve e suave como plumas de garças: Ah! Se as flores pudessem falar / Pra você que eu te amo.

Às vezes me pego olhando as estrelas. Fito o olhar além do horizonte celestial buscando na reflexão da saudade me aproximar de meus entes queridos que já partiram para o reino dos céus. Na noite da última despedida de tia Clarice, olhando para o infinito, como se as antigas canções me perseguissem, recordei da italiana “Al di là” composta por Carlos Donita. Esta, em especial nos remeteu, na plenitude de seus versos, ao novo lar de tia Clarice e de seus familiares que também já partiram, vejamos: Muito além das coisas mais belas, / Muito além das estrelas, você está... / Muito além do céu infinito... / Muito além desta vida, você está...

É preciso, antes de encerrar, retornar as margens do rio, ao terreiro frente ao barranco, nas paragens de Fonte Boa, sua terra natal, para saudá-la com os versos desprendidos das mãos do genial poeta Alencar e Silva, seu conterrâneo: Antes que o grande vendaval me afaste / do teu corpo de pássaros e rosas, / deixa que eu cante uma canção sonâmbula / sob as luas ciganas de teus olhos.

Eis o arco-íris luzido de tia Clarice: fez da simplicidade de sua vida seu maior legado. Através dela nos ensinou muito sobre o amor, humildade, respeito, amizade, cumplicidade, coragem e tantas outras virtudes que hoje estão se tornando raras no seio social moderno.

Carpe diem, tia Clarice. Aproveite o dia, aproveite sua nova morada!

BAÚ DE GUARDADO

No bojo de todo o sentimento que cercou-me reviver momentos significantes da história de tia Clarice, acabei por resgatar alguns preciosos guardados no baú de minhas memórias. Talvez tenha sido esse o sentimento ocorrido em Farias de Carvalho ao escrever “Baú Velho”. Nele a memória seria o evocativo de um baú de lembranças onde ferve as reminiscências silenciosas de nossas vidas a partir da infância querida. Vejamos a primeira e a última estrofe, cujos versos dizem: No baú velho do inconsciente / mexendo papeis antigos / achei um mapa de sonhos. / Num balet de simetria / as minhas mãos de menino / foram reconstruindo / em sonho, mapa e distância / a geografia física da infância.

Assim surgem minhas lembranças, quando ainda menino, via vovó Zulmira sentada à beira de sua rede atada no primeiro quarto de dormir. Quando chegávamos por lá, a cadela de tia Clarice fazia uma baderna, latia sem parar. Papai afrontava a coitada até a intervenção severa de tia Clarice: “Maneco meu irmão deixe a cachorra em paz!” Ao entrar, vovó indagava: “Maneco meu filho, é você?”. De imediato papai respondia: “Sim mãezinha, sou eu”. Ao entrar no quarto pedia-lhe a benção ao mesmo tempo em que lhe beijava carinhosamente a testa!

Eu, ao entrar, corria para o quarto de vó Zulmira para também pedir-lhe a benção. Sua mão suave, perfumada e delicada se estendia até mim, logo a segurava e a beijava enquanto ela dizia: “Deus te abençoe meu filho”. Assim vovó nos abençoava, não como neto, mas como filhos! Ela estava sempre bem arrumada, com seus cabelos pranteados presos em uma tiara. Sinto até hoje o cheiro de jasmim que se misturava ao sabonete “alma de flores” que usava. Emplumada em talco fino, ficava se embalando na rede ao tempo em que mascava tabaco. De longe, vez outra, escutávamos o escarrar dos resíduos em uma vasilha que ficava bem próximo aos seus pés. Na sala, o quadro de família com a foto-pintura de vô Belarmino e vó Zulmira já me inquietava o sentimento da busca de minhas raízes. Os quadros de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Sagrado Coração de Jesus e de São Francisco de Assis se juntavam ao ambiente silencioso, que, vez outra, era rompido pelo badalo do relógio de pendão que ficava fixado na parede. Ah, quanta nostalgia tenho do som daquele relógio! Tia Clarice, por sua vez, logo chegava com alguns papagaios de papel (pipas) e a linha com cerol enrolada em pequenas bobinas caseiras que ela mesma produzia. Mas não se engane, não era presente. Ao entregar-me, dizia: diga para o seu pai que é “tantos” cruzeiros! Papai nunca pagava. O almoço era servido às onzes horas, e sempre tinha a mesa um prato com laranjas descascadas, prontas para serem digeridas. Em frente à casa tinha um jardim onde brincávamos enquanto os fuscas amarelos passavam em frente à rua Visconde de Porto Alegre quebrando o silencio. Dormir por lá era tedioso. As cinco e meia era o banho. Às seis da tarde, na hora em que a rádio tocava a música da Santa Maria, sentávamos a mesa para o jantar. Depois, por volta das sete horas da noite tínhamos que ir deitar para dormir. Não adiantava levar livros, por volta de oitos horas às luzes da casa se apagavam e só eram acesas às cinco e meia da matina quando ela acordava. A pequena televisão da sala, enquanto por lá frequentei, nunca vi ser ligada. As badaladas do relógio que não me sai da memória me faziam companhia por toda a noite até a chegada do sono que custava a vir! E ai daquele que fosse pego perambulado à noite pela casa, era carão na certa!

Nas minhas lembranças traquinas de menino não posso deixar de afirmar: tia Clarice foi uma grande figura!

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Eylan Lins
Enviado por Eylan Lins em 09/11/2013
Reeditado em 29/07/2022
Código do texto: T4563454
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