Bolívia: beleza em meio ao caos
Vou compartilhar um pouco das "impressões" que tive nestes dois meses em que vivi nesta terra esquecida, não pelos deuses, mas sim, pelos homens. Descobri que conhecer lugares cuja cultura, idioma, raça e modo de vida tão diferentes do nosso, torna-se por vezes, demasiado assustador. É extremamente difícil aceitar o diferente. Sempre acreditei que era livre de preconceitos, nunca discriminei ninguém por sua crença, cor ou opção sexual. Pelo contrário, sempre procurei me relacionar com pessoas que iam desde os tipos mais normais, segundo nossos padrões de sociedade, até os mais estranhos.
Ao chegar aqui passei a sentir na própria carne o efeito de uma frase do Amyr Klink, que até então não passavam de belas palavras para mim: "um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser; que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver". Infelizmente o mundo não é mesmo como o imaginamos. Tinha consciência de que estava indo para um dos países mais pobres da América Latina, mas foi só aqui que percebi que a pobreza pode ter várias tonalidades de cinza. Em nosso país (Brasil), quando pensamos em pobreza, nos vêm à memória as favelas das grandes cidades ou a vida árida e triste do sertão nordestino. Aqui a pobreza é diferente, ela caminha ao lado da riqueza, esta última alienada por conveniência a ela. Existem praticamente duas classes: a elite, com suas imensas casas cercadas por câmeras e alarmes, pick ups Toyota, colégios bilíngues e condomínios de luxo; e a classe pobre, cujo governo não garante sequer acesso digno a educação, saúde e transporte.
Não conheci o país inteiro, mas apenas Santa Cruz de La Sierra, por isso defino minha experiência como "impressões". A questão é que esta cidade é tida como a mais desenvolvida economicamente e onde se concentra a melhor educação do país, ou seja, em termos de infraestrutura, imagine o restante como deve ser. Algumas diferenças foram gritantes para mim como o trânsito, o lixo, a comunicação precária e principalmente a distinção e segregação raciais.
O trânsito caótico assemelha-se ao que vemos na Índia. Não há faixas de pedestre, uso de cintos ou capacetes, e por vezes semáforos transformam-se em simples adornos. Não há transporte público, apenas micro-ônibus particulares, de modelos iguais e motoristas com leis de trânsito próprias, aliás, estas parecem não existir por aqui.
Lixo há por toda parte. Primeiro porque a coleta pública é ineficiente, e segundo, devido a total falta de consciência e educação voltadas à cidadania. Para que entendam melhor, aqui há cerca de 12 anillos (anéis em espanhol), pois a cidade foi projetada de modo radial, ou seja, as principais vias de acesso irradiam-se do centro para as extremidades de forma concêntrica. O centro e os primeiros anillos são mais limpos e arborizados, há muitas praças com bancos e alguns playgrounds, percebe-se uma concentração maior de bairros mais nobres, entretanto, conforme você vai se afastando do centro, o lixo e a pobreza vão se tornando cada vez mais evidentes.
Quanto à comunicação... ainda bem que existe internet, porque carteiros não existem aqui. Há somente um correio no centro e as cartas que chegam devem ser recolhidas no local pelo próprio destinatário. Os telefones públicos não são tão comuns pelas ruas, existem os pontos de chamadas nacional e internacional, mas, às vezes, é complicado conseguir completar uma ligação, ligar pra mim é sempre um transtorno.
E por fim a segregação que existe dentro do próprio país. Há dois tipos: entre branco (minoria) e índio (esmagadora maioria); e entre cambas e collas (uma divisão secular). O país é dividido entre nove departamentos: Cochabamba, La Paz, Potosí, Chiquisaca, Oruro e Tarija (Collas – habitantes do altiplano); e Santa Cruz, Beni e Pando (Cambas – habitantes da planície, ocupam regiões orientais da Bolívia). A rivalidade regional é muito grande, fato agravado após o mandato de Evo Morales. Este ódio tem aumentado paulatinamente, podendo inclusive, culminar em uma guerra civil, tão sangrenta quanto foi a do final do século XIX. É triste ver um país se dividindo, isto enfraquece uma nação e impede que o povo (unido) reivindique, sob todos os aspectos, melhorias ao Estado.
Há ainda outros problemas sérios que o país enfrenta como o narcotráfico, saúde (no momento os hospitais estão em greve), educação precária... Diante de tais dificuldades nosso país transforma-se em primeiro mundo aos olhos bolivianos.
Porém sempre é possível encontrar beleza em meio ao caos. Precisei me afastar da civilização aparentemente "incivilizada" para conseguir enxergar o belo. Acontece que no carnaval viajei para Comarapa, uma cidade, ou melhor, um povoado do vale a 4 ou 5 horas distantes de Santa Cruz de La Sierra. A estrada, ora de asfalto, ora de terra é boa e a paisagem é bela, em boa parte avista-se uma vegetação denominada "charque", lembra muito o nosso sertão nordestino. Terra seca e poeirenta, árvores retorcidas e de pequeno porte, além de inúmeras cactáceas.
Comarapa é a capital da Província Manuel María Caballero, que ocupa a parte mais ocidental dos vales mesotérmicos do Departamento de Santa Cruz. Foi fundada em 11 de junho de 1615 e nomeada como Santa Maria de La Guardia y Mendoza. O nome atual da cidade conjuga as palavras quechuas (uma das três principais línguas faladas na Bolívia: quechua, aimará e espanhol) "con - wara" que significam verde e campo; com o decorrer do tempo foi adicionada a sílaba "pa" - Conwarapa, transformando-se mais tarde em Comarapa, ou seja, Campo Verde. Possui alguns pontos turísticos bem conhecidos como a Laguna Verde, que fica a 2419 m.s.n.m., sua cor varia de acordo com a época do ano entre verde e amarelo, o curioso fato se deve a presença de uma alga específica; e a Represa Cañada, que permite o desenvolvimento da horticultura de baixa irrigação dos povos da região, transformando-a em um dos centros mais produtivos na atualidade.
O comarapenho é simples e acolhedor, é um povo que vive da terra e para ela. Daqui leva-se o cheiro doce dos duraznos (pêssegos), o sabor inigualável do Kacha (queijo feito para consumo próprio apenas) e da inebriante ambrosia, não aquela dos deuses, mas sim a dos mortais de Comarapa. A bebida consiste na mistura alcoólica de singani (aguardente de uvas), anisado (aguardente de anis), whisky e conhaque com o primeiro leite ordenhado, logo pela manhã . O ritual da ambrosia serve para reforçar os laços de amizade e é costume, sobretudo nos povoados rurais.
A tarde caminhava pela cidade em busca de registros eternos: fotografias. A cada passo a cidade ia revelando-se diante de mim. As ruas pavimentadas e as casas construídas com tijolos e cimento, bem ao molde contemporâneo dos inúmeros centros urbanos, misturam-se às casas feitas de adobe, onde o barro das paredes e as pedras mescladas à terra do chão nos remetem a rusticidade simples dos campos e do povo rural. A sensação era como caminhar no presente, mas olhando para o passado. Até que certo dia, após já ter caminhado por quase toda parte explorando com os olhos curiosos de uma criança cada lugar, cada sorriso desconhecido ou semblante desconfiado dos transeuntes que passavam por mim, minhas pernas, movidas pela curiosidade que ainda me instigava, levaram-me até o ponto urbano mais alto da cidade. Ao olhá-la de cima, de repente todos me pareceram iguais, não existia mais branco ou índio, colla ou camba, rico ou pobre, não existiam mais rostos rejuvenescidos artificialmente ou pés descalços . Ao olhar para o céu lembrei-me do meu pequeno paraíso Tamoio que havia deixado para trás. A cor do céu era a mesma do de Santa Cruz, São Paulo, Ubatuba, só era observado de um ponto diferente, ou seja, tudo é sempre uma questão de ponto de vista. Não existe pior ou melhor, mais atrasado ou desenvolvido, existe apenas o diferente. Cada povo tem a sua cultura e a sua forma de se desenvolver e progredir, cada um tem o seu tempo, e este tempo varia de acordo com as condições do lugar e do seu processo de construção sócio-histórica. E o que era apenas um conceito teórico pra mim, tornou-se real e mais palpável, de repente aceitar o diferente tornou-se bem menos difícil e assustador, bem mais interessante e motivador.
O tempo passou, a saudade apertou, e assim sem mais nem menos, permanecer aqui me pareceu sem sentido. Em meio ao caos encontrei a paz e a certeza do lugar e das pessoas com as quais quero estar. Enfim é chegada a hora de voltar. Quiçá, quando o tempo for propício, não retorno impelida pela minha eterna curiosidade, a fim de explorar outras cores, outros sons, outras faces, outros risos...sejam eles cambas ou collas.