História de São Boaventura

“Ne... credat, quod sibi sufficiat lectio sine unctione, speculatio sine devotione, investigatio sine admiratione, circunspectio sine exultatione, industria sine pietate, scientia sine caritate, intelligentia sine humilitate, studium absque divina gratia, speculum absque sapientia divinitus inspirata." [1]

Em 1217[2] – nove anos antes da morte de São Francisco de Assis - nasceu, em Bagnorégio (cidade próxima à Viterbo – Itália), João de Fidanza. Filho de João de Fidanza, nobre médico de quem herdou o nome, e de dona Maria, também pertencente à nobreza italiana. Desde cedo este jovem rapaz estava destinado a uma vida promissora, não apenas pela sua origem, antes (principalmente), pela sua vocação.

Existem poucos dados acerca da infância e juventude deste santo franciscano. Sabe-se, no entanto, que durante a infância ele foi acometido de uma grave enfermidade e curado após as orações de sua mãe pedindo a intercessão de São Francisco, como o próprio santo hagiógrafo, mais tarde, escreverá no prólogo da "Legenda Maior de São Francisco". João de Fidanza aprendeu as primeiras letras com os frades franciscanos de sua cidade e desde cedo demonstrava uma grande aptidão para os estudos.

Ainda jovem (1235) João foi enviado à Paris para, na universidade desta cidade, aprender artes (o que equivaleria à filosofia nos dias de hoje). Este lugar marcou a vida deste santo. Dessa universidade ele só saiu após a sua eleição para ministro geral da ordem dos menores, mesmo assim ele não abandonou a cidade de Paris que passou a ser a sede de seu generalato. Na Soborna, de 1235 até 1242 estudou artes. Em 1238 o jovem estudante aproximou-se mais da Ordem dos Frades Menores e em 1243 recebeu o hábito franciscano professando seus votos com o nome de frei Boaventura. Entre os anos de 1243 e 1248, Boaventura estudou teologia, juntamente com o dominicano Tomás de Aquino, tendo como mestre o então frei Alexandre de Hales, que recebera o hábito minórico em 1235 (já com cinqüenta anos). Este mestre de teologia foi tão importante na vida de São Boaventura que mais tarde será chamado de pai e mestre pelo Doutor Seráfico. Em 1248 frei Boaventura recebeu a licenciatura de bacharel em estudos bíblicos (primeiro grau da vida docente de então). Neste período teve início a intensa atividade acadêmica do mestre defensor da pobreza. No ano de 1250, o santo doutor recebeu o título de bacharel sentenciário, ou seja, recebeu o direito de comentar as sentenças de Pedro Lombardo. É durante este tempo (1250 -1254) que ele escreveu seu livro: "Comentários às Sentenças", sua mais extensa obra, onde explica o sentido das sentenças teológicas e filosóficas de Pedro Lombardo. No ano de 1254, frei Boaventura obteve o título de “magister” (mestre), o equivalente, nos nossos dias, ao grau de professor titular. Nesta fase da vida o doutor seráfico passou a ocupar a cátedra da Soborna reservada aos franciscanos desde Alexandre de Hales.

Porém, em 1255 Boaventura foi obrigado a interromper a sua atividade docente devido a uma querela entre os mestres seculares e os mestres regulares da universidade de Paris. Neste período, Guilherme do Santo Amor empreendeu na referida universidade uma campanha para questionar o direito de lecionar e de existir das ordens mendicantes, que já ocupavam três cátedras na Soborna (duas delas pertenciam aos dominicanos e uma aos franciscanos). Neste contexto de disputa frei Tomás de Aquino e frei Boaventura uniram-se para defender a razão de existência e o direito de ensinar dos membros de suas ordens. Em 23 de outubro de 1256 o papa Alexandre IV designa nominalmente a frei Boaventura da Ordem dos Menores e a frei Tomás de Aquino da Ordem dos Pregadores o direito de ocuparem as suas cadeiras na universidade de Paris. Contudo, o santo franciscano só recebeu o grau de doutor e foi acolhido entres os mestres da Soborna em outubro de 1257, juntamente com Santo Tomás. Este título chegou tarde demais para frei Boaventura, pois no dia dois de fevereiro deste mesmo ano ele fora eleito Ministro Geral da Ordem dos Frades Menores (o sétimo sucessor de São Francisco) e, por isso, teve que abandonar a atividade docente - acadêmica - para sempre.

A eleição do Doutor Seráfico para o generalato da ordem franciscana deu-se de modo interessante. Os ministros provinciais e o ministro geral da ordem, João de Parma, reuniram-se em capítulo geral (reunião em que são tomadas as principais decisões a respeito do futuro da Ordem e dos frades) para a eleição do próximo sucessor de São Francisco. Neste capítulo, o padre geral que estava deixando o cargo propôs como pessoa apta para sucedê-lo o jovem frei Boaventura, que sequer estava presente no capítulo. Para a surpresa de todos que não estavam no capítulo, inclusive do próprio Boaventura, o santo de Bagnorégio foi eleito Geral por unanimidade. Sendo assim, aos quarenta anos, o Doutor Seráfico assumiu a direção dos menores, cargo este que só deixou poucos meses antes de morrer.

O governo do Doutor Seráfico foi tão importante para a consolidação da Ordem Franciscana - enquanto instituição - que Paul Sabatier chega a considerar São Boaventura como o "segundo fundador" da ordem minórica. Desconsiderando os exageros, não se pode deixar de afirmar que este santo ministro foi importantíssimo para a Ordem Seráfica e deixou traços que perduram nela até os dias de Hoje. Poucos meses após a sua eleição, no dia vinte e três de abril de 1257, o padre geral Boaventura escreveu a sua primeira carta encíclica denunciando os abusos que estavam acontecendo dentro da ordem seráfica. Para reprimir tais abusos, este padre geral estimulou a construção de casas de estudos para aqueles que ingressavam na ordem, a fim de que estes frades tivessem uma formação mais sólida. Estas "Studia Generalia Ordinis" foram construídas em cidades que abrigavam os grandes centros universitários da época. Boaventura também favoreceu a construção de conventos ligados a igrejas nas áreas urbanas com o intuito de que os frades estivessem, cada vez mais, em contato com o povo para a "aedificatio fidelium in fide et in moribus"[3] (a edificação dos fiéis na fé e nos costumes). Outro grande legado deste padre geral foi a prescrição da oração do "Ângelus" para os frades, constituindo, de modo oficial, esta oração como uma devoção franciscana.

Entre o final de setembro e o início de outubro de 1259, São Boaventura retira-se no monte Alverne (o mesmo monte onde São Francisco recebeu seus estigmas) para escrever o "Itinerarium Mentis in Deum"[4] (Itinerário da mente para Deus). Esta obra é um tratado de espiritualidade, onde o doutor seráfico expõe a sua ascese mística, um caminho que eleva o homem até Deus. Neste livro o doutor do amor deixa impresso no papel uma linda síntese do seu pensamento místico, teológico e filosófico. Pensamento este que tem como meta a união extática do homem com Deus, algo que o Serafim de Assis conseguiu realizar e trouxe no próprio corpo.

O ano de 1260 foi intenso para o ministro Boaventura, pois neste ano, em capítulo realizado na cidade de Naborna, ele aprovou as "Constituições Nabornenses" e foi reeleito ministro geral. Neste mesmo ano a pedido do referido capítulo ele começou a redigir a Legenda Maior, uma nova biografia de São Francisco. Também em outubro deste mesmo ano o doutor seráfico acompanhou a transladação do corpo de Santa Clara da igreja de São Damião (restaurada por São Francisco) para a Basílica de Santa Clara construída dentro dos muros de Assis, onde outrora fora a igreja de São Jorge.

No capítulo de1263 São Boaventura apresentou a Legenda Maior, que foi aprovada pelos frades que lá se encontravam. Neste mesmo ano, no dia oito de abril, Ele participou da transladação do corpo de Santo Antônio na cidade de Pádua. No momento da exumação do corpo do santo paduano o padre geral percebeu que a língua do santo estava incorrupta e disse: "Ó língua bendita de Santo Antônio que sempre louvaste a Deus e convidaste outros a louvá-Lo, nós também admiramos quanto foste valiosa na presença Dele!" Antífona ainda rezada hoje nos conventos franciscanos.

Em 1266 houve um outro capítulo no qual frei Boaventura foi reeleito geral da ordem franciscana. Neste mesmo capítulo, devido a grande aceitação dos frades a Legenda Maior de são Francisco escrita pelo padre geral, foi decidido que todas as demais biografias do patriarca da Ordem Seráfica fossem queimadas. Até hoje não se pode afirmar com certeza se o doutor seráfico comungava da referida decisão.

No ano de 1271, os cardeais, que há mais de dois anos estavam reunidos em conclave para escolher o sucessor do papa Celestino IV e não conseguiam entrar em acordo sobre a indicação de um novo papa, pediram ao frei Boaventura que sugerisse um nome. Ele sugeriu o nome de Teobaldo Visconti (que sequer era bispo) o qual acabou sendo eleito papa assumindo o nome de Gregório X.

Esse papa - sabendo que seu antecessor tentara nomear São Boaventura bispo de York (1265), mas o santo declinara a honra - em maio de 1273 fez o Doutor Seráfico bispo cardeal de Albano e para impedir o santo de mais uma vez esquivar-se da honra enviou-lhe uma carta ordenando-lhe "que obedecesse humildemente sem alguma dificuldade a nomeação e que fosse logo se juntar a ele [o papa]"[5].

Ainda a respeito da eleição para cardeal do humilde doutor, "conta-se que os legados pontifícios, encarregados de entregar-lhe o chapéu e as insígnias cardinalícias, encontraram-no no convento de Mugello, perto de Florença, lavando pratos"[6].

Em fevereiro de 1274, após as primeiras reuniões do II Concílio de Lião (que o cardeal de Albano fora chamado para dirigir os trabalhos juntamente com frei Tomás de Aquino), São Boaventura convocou um capítulo extraordinário e pediu renúncia de seu generalato, permanecendo, porém, no governo da ordem até o mês de maio.

Poucos meses após renunciar ao generalato, morreu o cardeal frei Boaventura de Bagnorégio, no dia 15 de julho de1274, devido ao excesso de trabalho durante o concílio de Lião. Seu corpo foi sepultado num túmulo da igreja franciscana de Lião. Porém, em maio de 1562, o corpo do sétimo sucessor de São Francisco foi queimado pelos huguenotes e as cinzas foram jogadas no rio da cidade.

No dia 14 de abril de 1482 o papa Sixto IV canonizou São Boaventura conferindo-lhe também o título de Doutor da Igreja, após uma campanha pela canonização do "Doctor Seraphicus" promovida por São Bernardino de Sena.

O Doutor Seráfico durante a sua vida escreveu 65 obras das quais as mais conhecidas são: Itinerarium Mentis in Deum (1259) Comentários às sentenças (1250 -1255) Breviloquium (1257) De reductione artium ad theologiam (1257) Apologia dos pobres (1269). Embora este santo franciscano tenha aceitado muitos elementos da filosofia aristotélica, não se pode negar que a sua filosofia aproxima-se mais do pensamento de santo Agostinho. O pensamento boaventuriano parte da firmeza da fé, por isso ele subordina a filosofia à teologia. Sendo Boaventura o doutor do amor, para ele, a "meta final de toda aspiração terrena é o amor de Deus na sabedoria"[7]. "Por essa razão Boaventura deseja que todas as ciências sejam postas a serviço do amor"[8]. Até porque, segundo ele, sem amor todo conhecimento é inútil e o fiel que crê está mais seguro, acerca do que sabe, do que o filósofo.

Teologicamente, o pensamento desse santo franciscano "é totalmente trinitário. Em toda parte vê reluzir vestígios e imagens da Santíssima Trindade, graças à estrutura trinitária que Deus imprimiu no mundo" [9].

Em relação ao pensamento franciscano, o “Doutor de Paris” esquematizou intelectualmente os passos do santo Patriarca de sua Ordem. Esta sistematização foi realizada de maneira tão intensa e sublime que o próprio São Boaventura veio também a inflamar-se de amor, tal como um Serafim (daí o seu título de "Doutor Seráfico"). A obra mística deste santo indica a todos aqueles que desejam conhecer a Deus o caminho do amor, que se consome diante de Deus, a mesma via trilhada pelo "pobrezinho de Assis" e pelo "humilde de Paris".

Ao propor uma ascese mística, o santo de Bagnorégio percebe a imanência de Deus no mundo sensível. Por isso, para ele, o itinerário que a mente humana deve percorrer para repousar em Deus começa pela contemplação da beleza do criador presente no mundo sensível. Sendo assim, a obra da criação é uma "estrada-real" que leva o homem a Deus e o mundo é um livro que grita aos homens o amor que Deus tem por eles. Daí, para o referido santo, nasce à necessidade do homem (que quer encontrar a "paz extática" em Deus) de contemplar atentamente os sinais da obra criada que apontam para o alto. Sendo o "Itinerarium mentis in Deum" um caminho de subida para o céu, a oração ocupa o primeiro lugar neste itinerário, pois os passos dados nesta estrada dependem muito mais da graça de Deus que do esforço humano. Portanto, para São Boaventura, devemos primeiro rezar, depois viver santamente e, a partir daí, estarmos atentos às verdades que se hão de descobrir. Pois, somente assim, ao contemplar os vestígios de Deus imanentes no mundo, seremos elevados progressivamente ao cume do monte no qual Deus se revela (Sião / Alverne).

Num mundo à beira de um caos climático-ecológico, o "Doutor Seráfico", com sua reflexão filosófico-teológica, indica ao homem hodierno o caminho para uma relação harmônica entre os seres humanos e as demais criaturas, onde estas adquirem a dignidade de "vias" que conduzem o homem até Deus, fonte de toda Beleza e Bondade presente na obra da criação.

São Boaventura de Bagnorégio, rogai por nós!

Referências Bibliográficas:

[1] BOAVENTURA DE BAGNORÉGIO. Itinerarium Mentis in Deum. In: BOEHNER, Philotheus & ETIÉNE, Gilson. História da Filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. [Tradução e nota introdutória de Raimundo Vier, O.F.M.]. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 1995. Pág. 443.

Uma possível tradução seria esta: “Não creia que seja bastante a si a leitura sem a unção, a investigação teórica sem a devoção, a pesquisa sem a admiração, a ponderação sem a exultação, o esforço sem a piedade, o conhecimento sem o amor, a inteligência sem a humildade, o estudo sem a graça divina, a imagem sem a sabedoria inspirada por Deus” (tradução própria).

[2] Embora alguns dos autores citados na bibliografia consultada discordem desta data e apontem o natalício de Boaventura sendo 1221, hoje se sabe que este santo nasceu em 1217. Vide: BOAVENTURA DE BAGNORÉGIO. Escritos Filosófico-Teológicos. [Tradução: Luís Alberto de Boni; Jerônimo Jerkovic]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. (Coleção Pensamento Franciscano). Pág. 17.

[3] FONZO, Lourenço Di; ODOARDI, João; POMPEI, Afonso. Frades Menores Conventuais: história e vida (1209 - 1995). Brasília: Edições Kolbe, 1997. Pág.: 10.

[4] Este livro já se encontra traduzido para a língua portuguesa em: BOAVENTURA DE BAGNORÉGIO. Escritos Filosófico-Teológicos. [Tradução: Luís Alberto de Boni; Jerônimo Jerkovic]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. (Coleção Pensamento Franciscano)

[5] MASON, Fernando. Compilação de História Franciscana. Caçapava: pro Manuscripto, 1991. pág.:79.

[6] BOAVENTURA DE BAGNORÉGIO. Escritos Filosófico-Teológicos. [Tradução: Luís Alberto de Boni; Jerônimo Jerkovic]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. (Coleção Pensamento Franciscano). Pág.: 18

[7] BOEHNER, Philotheus & ETIÉNE, Gilson. História da Filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. [Tradução e nota introdutória de Raimundo Vier, O.F.M.]. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 1995. Pág. 404

[8] Ibid.

[9] BOEHNER, Philotheus & ETIÉNE, Gilson. História da Filosofia Cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa. [Tradução e nota introdutória de Raimundo Vier, O.F.M.]. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 1995. Pág. 434