Hypatia de Alexandria

- a mulher cientista do mundo antigo -

Fala-se constantemente da tradicional, difícil e até mesmo hostil relação entre ciência e religião, o que a priori leva-nos ao período da Inquisição. Não obstante, a intolerância religiosa é uma das mais escabrosas violências praticadas contra o ser humano, marcadamente, desde o alvorecer do Cristianismo. Uma das ocorrências mais estarrecedoras é o assassinato de Hypatia de Alexandria. Segue o que se tem a dizer dessa mulher de inteligência e cultura únicas no mundo antigo.

A cidade de Alexandria, fundada por Alexandre, o Grande, no ano de 332 a.C, logo se tornou o principal porto do norte do Egito. A sua localização privilegiada, na encruzilhada das rotas da Ásia, da África e da Europa, transformou a cidade num lugar ideal para centralizar e concentrar a arte, a ciência e a filosofia do Oriente e do Ocidente.

Hypatia nasceu no Egito, cerca de 370 d.C., filha de Theon A. Stockl, renomado filósofo, astrônomo, matemático e autor de diversas obras, professor da Universidade de Alexandria. Theon desenvolveu forte ligação com a filha, transmitindo-lhe seu próprio conhecimento e sua paixão na busca de respostas sobre o desconhecido. Alguns historiadores acreditam que Theon tentou educá-la para que fosse um ser humano perfeito.

Desde a infância, Hypatia cercou-se por livros, rolos de papiro e pergaminho de códigos. A abrangente cultura se espalhava pela casa, desde as prateleiras até a mesa de trabalho do seu pai. E o mais importante, viviam em Museyon, centro de pesquisa e ensino superior, do qual se orgulhava o Egito. Ao lado dos seus quartos, abrigavam-se os maiores arquivos do mundo - a Bibliotheca Alexandria, que fundada e recolhida pelos herdeiros de Alexandre da Macedônia, no tempo de César, sofreu danos irreparáveis quando a cidade foi saqueada. De acordo com o testemunho de antigos escritores, queimaram-se setecentos mil volumes desse monumento da Antiguidade - tão belo, que até mesmo o historiador Amiano Marcelino, conhecido por sua eloquência, assegurou-se impotente para descrevê-lo.

Ainda sob a assistência e orientação do pai, Hypatia ingressou numa disciplinada rotina física para assegurar um corpo saudável capaz de sustentar o desenvolvimento de um intelecto poderosamente funcional. Sua beleza física era, também, exuberante.

A jovem Hypatia estudou matemática e astronomia na Academia de Alexandria. Ávida pelo saber, dominou diversas áreas do conhecimento, entre essas a filosofia, a matemática, a astronomia, a religião, a poesia e as artes. Apreciava o céu estrelado. Apaixonada pela geometria, usou uma ruma de comprimidos para demonstrar teoremas. Por todo seu esforço e inteligência, Hypatia foi um marco na História da Matemática, sendo equiparada a Ptolomeu (85 – 165), Euclides (c. 330 a. C. – 260 a. C.), Apolônio (262 a. C. – 190 a. C), Diofanto (século III a. C.) e Hiparco (190 a. C. – 125 a. C.).

A amplitude dos interesses que lhe inquietavam o espírito, um desempenho surpreendente, a nitidez da mente e um profundo conhecimento a respeito de Platão e Aristóteles, renderam-lhe o respeito dos professores Museyon. Muito jovem, teve seus primeiros alunos. Em vez do habitual vestido de menina jovem, Hypatia vestia o manto branco do filósofo. Seu talento para ensinar geometria, astronomia, filosofia e matemática atraia estudantes admiradores de todo o império romano. Não acumulava riquezas e foi celibatária até o fim da vida. Um episódio ilustra sua rigidez moral: um aluno (eram todos homens), apaixonado, insistiu em cortejá-la. Hipácia, então, mostrou-lhe um dos seus panos higiênicos (usados na menstruação): "É isto que tu amas na verdade e não a beleza por si mesma". Rumores sobre o seu conhecimento extraordinário espalhavam-se mais e mais. Alexandria, a pérola do Egito, famosa por seus estudiosos, possuía Hypatia.

A Escola de Atenas: famoso fresco do pintor renascentista Rafael.
A cena pode ser vista numa das bibliotecas do Vaticano e nela encontra-se Hypatia,
de pé e vestida de branco, a olhar diretamente, com altivez, para quem a visiona.
Mais acima, Sócrates e Platão “entram” em cena.

Não obstante, conta-se que nenhuma das obras escritas por Hypatia chegou até nós, porque a destruição da grande Biblioteca de Alexandria, por ordem de Amr ibn al-As, governador provincial do Egito em nome do califa Rashidun Omar ibn al-Khattab, também destruiu o seu legado intelectual. Mas, desde o século XVIII, diversos estudiosos questionam a veracidade dessa versão histórica. Sendo assim, parece ser realmente a verdade, que, grande parte do que se conhece a respeito de Hypatia, vem de correspondências próprias e das obras de historiadores, os seus contemporâneos.

Sinesius de Cirene (370 – 413), seu aluno e destacado filósofo, escrevia-lhe a miúdo pedindo-lhe pareceres sobre o seu trabalho. Por meio dessas cartas, sabe-se que Hypatia é a inventora de instrumentos para a astronomia (astrolábio e planisfério) e aparelhos usados na física, entre os quais, um higrômetro. Também, ampliou estudos sobre a Álgebra de Diofanto (“Sobre o Canon Astronómico de Diofanto”), que escreveu um tratado sobre as seções cônicas de Polônio (“Sobre as Cônicas de Polônio”) e alguns comentários sobre os matemáticos clássicos, entre esses Ptolomeu. Em coautoria com o seu pai, escreveu um tratado sobre Euclides e ganhou fama por ser uma grande solucionadora de problemas concernentes à matemática e ao processo de demonstração lógica.

Hypatia era pagã, situação considerada normal para um estudioso de tanto porte, porque nessa Era o saber se relacionava com o chamado paganismo - alicerçado nas tradições de liberdade de pensamento.

Foi então, que o império romano entrou em colapso. As pessoas eram fiéis aos antigos deuses e todos os males foram atribuídos à nova religião; da igreja cristã vozes cada vez mais altas exigiam a destruição completa do paganismo. Bispo Teófilo de Alexandria era um dos mais impacientes, insistente sobre o decreto do imperador para destruir qualquer e todos os templos pagãos no Egito. A proibição da adoração de ídolos e de realizar sacrifícios, não foi suficiente. Ansiava a demolição dos templos pagãos. O vencedor do cristianismo não mostrou qualquer respeito pela cultura pagã e nem pela sua arte ou herança científica.

Em agosto de 410, a Cidade Eterna caiu - findava a personificação do poder, um símbolo de invencibilidade. Caiu sob os golpes dos bárbaros contra Roma.

Todos os anos de guerras e perseguições, Hypatia continuou a ensinar, sem interferir nas discussões mantidas à distância da boca e do coração. Aprendeu a manter silêncio. Mas, era cada vez mais atormentada pelo pensamento de que o silêncio também ajuda e apoia o crime. Buscava então justificativas – o que poderia uma mulher fazer em época de grande agitação, quando o império desmoronava, quando o movimento chegava às nações inteiras, quando dezenas de milhares de bárbaros se misturavam - as tribos, a religião, costumes e ideias?

Hypatia viveu para a ciência: aos jovens abriu as profundezas da filosofia e dedicou-lhes os mistérios da matemática. Resistiu à barbárie, ao avançar, preservar e divulgar o conhecimento.

Foi nesse contexto, que Cirilo investiu contra Hypatia. Em 413, o bispo já expulsara os novacianos e os judeus de Alexandria. Em seguida, incitou alguns monges, que atacaram Orestes - governador da cidade e antigo aluno de Hypatia, que continuava sob a sua influência - com quem travava uma violenta disputa por poder e influência nos rumos da capital do Egito. Convencido de que Hypatia representava a grande força que atuava sobre o prefeito, Cirilo instigou os seus seguidores a espalharem pela cidade o espalhafato de que a filósofa era uma bruxa, que usava magia negra para controlar Orestes. A calúnia visava apavorar a população, o que ocorreu.

A perseguição alcançou o clímax, quando, numa tarde de março de 415 d.C, a ira abateu-se sobre Hypatia, quando regressava do Museyon. Atacada em plena rua por uma turba de cristãos enfurecidos, conta-se que incitados e comandados pelo bispo Cirilo, foi arrastada para dentro de uma igreja e cruelmente torturada até a morte com pedras, paus, pedaços de telha e ostras afiadas (ou fragmentos de cerâmica ou azulejo, segundo outra versão). Hypatia foi morta e lançada ao fogo. Assassinato impune. Era o fim da excepcional trajetória da primeira mulher matemática da História e uma das principais filósofas da Antiguidade.

Nada se sabe do que aconteceu com Orestes após a morte da sua mestra. Presume-se que fugiu, deixando a cidade à mercê de Cirilo, que fechou templos e proibiu a prática de qualquer religião ou seita alheios ao cristianismo tradicional. O algoz permaneceu à frente da igreja local por mais 20 anos, e, canonizado pela igreja católica, é conhecido como São Cirilo de Alexandria.

Os fatos aqui expostos, são contados por diversos historiadores. Ora transformada em mártir dos cristãos, ora sob as vestes de menina “com o corpo de Afrodite”, que matou monges sábios. A verdade é que a vida de Hypatia merece os cuidados de um excelente romancista, que seja capaz de mostrar a sua idade, a época de grandes conflitos sociais e a luta amarga das ideias.

Frases proferidas por Hypatia

"Governar acorrentando a mente através do medo de punição em outro mundo é tão baixo quanto usar a força."

"Todas as religiões dogmáticas formais são falaciosas e nunca devem ser aceitas como palavra final por pessoas que respeitem a si mesmas."

"Ensinar superstições como uma verdade absoluta é uma das coisas mais terríveis."

Citações sobre Hypatia

Sócrates, o Escolástico (em ' História Eclesiástica')

"Havia em Alexandria uma mulher chamada Hypatia, filha do filósofo Theon, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos de seu tempo. Tendo progredido na escola de Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe receber seus ensinamentos."

Carl Sagan:

“Há cerca de 2000 anos, emergiu uma civilização científica esplêndida na nossa história, e sua base era em Alexandria. Apesar das grandes condições de florescer, ela decaiu. Sua última cientista foi uma mulher, considerada pagã. Seu nome era Hypatia. Com uma sociedade conservadora à respeito do trabalho da mulher e do seu papel, com o aumento progressivo do poder da Igreja, formadora de opiniões e conservadora quanto à ciência, e devido à Alexandria estar sob domínio romano, após o assassinato de Hypatia, em 415, essa biblioteca foi destruída. Milhares dos preciosos documentos dessa biblioteca foram em grande parte queimados e perdidos para sempre, e com ela todo o progresso científico e filosófico da época.”

Enrico Riboni:

“[...] a brilhante professora de matemática representava uma ameaça para a difusão do cristianismo, pela sua defesa da Ciência e do Neoplatonismo. O fato de ela ser mulher, muito bela e carismática, fazia a sua existência ainda mais intolerável aos olhos dos cristãos. A sua morte marcou uma reviravolta: após o seu assassinato, numerosos pesquisadores e filósofos trocaram Alexandria pela Índia e pela Pérsia, e Alexandria deixou de ser o grande centro de ensino das ciências do mundo antigo. Além do mais, a Ciência retrocederá no Ocidente e não atingirá de novo um nível comparável ao da Alexandria antiga senão no início da Revolução Industrial. Os trabalhos da Escola de Alexandria sobre matemática, física e astronomia serão preservados, em parte, pelos árabes, persas, indianos e também chineses. O Ocidente, pelo seu lado, mergulhará no obscurantismo da Idade Média, do qual começará a sair somente mais de um mil anos depois. Em reconhecimento pelos seus méritos de perseguidor da comunidade científica e dos judeus de Alexandria, Cirilo será canonizado e promovido a Doutor da Igreja, em 1882.”

Edward Gibbon, sobre a morte de Hypatia:

“Num dia fatal, na estação sagrada de Lent, Hypatia foi arrancada de sua carruagem, teve suas roupas rasgadas e foi arrastada nua para a igreja. Lá foi desumanamente massacrada pelas mãos de Pedro, o Leitor, e sua horda de fanáticos selvagens. A carne foi esfolada de seus ossos com ostras afiadas e seus membros, ainda palpitantes, foram atirados às chamas.”

Hesíquio, o hebreu, aluno de Hypatia:

“Vestida com o manto dos filósofos, abrindo caminho no meio da cidade, explicava publicamente os escritos de Platão e de Aristóteles, ou de qualquer filósofo a todos os que quisessem ouvi-la... Os magistrados costumavam consultá-la em primeiro lugar para administração dos assuntos da cidade”.

Trecho de uma carta de Senésio de Cirene , aluno de Hypatia:

“Meu coração deseja a presença de vosso divino espírito que mais do que tudo poderia adoçar minha amarga sorte. Oh minha mãe, minha irmã, mestre e benfeitora minha! Minha alma está triste. Mata-me a lembrança de meus filhos perdidos... Quando receber notícias vossas e souber, como espero, que estás mais feliz do que eu, aliviar-se-ão pelo menos a metade de minhas dores”.

Este texto resulta de pesquisas realizadas pela autora.
Mostra-nos que as perseguições religiosas,
a violência e a falta de respeito praticada contra as mulheres acompanha o ser humano desde prístinas eras.

REFERÊNCIAS

A MAIS sábia dos sábios. Ciência e Religião. Disponível em: http://novznania.ru/?p=2247. Acesso em: 8 mar. 2012

DESTRUIÇÃO da Biblioteca de Alexandria. Wikipédia: a enciclopédia livre, [s. l.]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Destruicao_da_Biblioteca_de_Alexandria. Acesso em: 5 maio 2016.

HIPÁTIA. Verbete. Wikipédia: a enciclopédia livre, [s. l.]. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Hipatia. Acesso em: 8 jun. 2016.

IMAGENS: capturadas através do Google.

MAZZON, Tiago. Hipácia de Alexandria, vítima do fanatismo cristão. Labirinto da Mente, [s. l.]. Disponível em: http://www.labirintodamente.com.br/blog/2011/08/24/hipacia-de-alexa.... Acesso em: 8 mar. 2012.

MENTORA. A História de Hipátia de Alexandria: uma mulher além de seu tempo. Labirinto da Mente, [s. l.]. Disponível em: http://www.labirintodamente.com.br/blog/2011/08/24/hipacia-de-alexa.... Acesso em: 8 jul. 2016.

RIBEIRO, Flávia. Quem foi Hipácia, matemática, astrônoma e uma das mais importantes pensadoras da Antiguidade, morta por cristãos. Pxhistoria, [s. l.]. Disponível em: http://pxhistoria.blogspot.com.br. Acesso em: 8 jul. 2016.

Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz
Enviado por Sílvia Mota a Poeta e Escritora do Amor e da Paz em 09/03/2012
Reeditado em 27/06/2021
Código do texto: T3543836
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