ALCOOLISMO - RECUPERAÇÃO E INTERNET
Um companheiro conta sua experiência na Internet
e como funcionam as reuniões virtuais
Meu alcoolismo me levou a viajar e morar em vários países, e foi essa vida de fugas geográficas que me levaram a aterrissar desta longa viagem aqui, no Brasil.
Durante meus 31 anos de alcoolismo ativo sempre achei que eu sabia tudo, muita conversa da boca para fora, sempre tinha razão. Na terceira e última fase tive como responsabilidades a gerência da filial Rio de Janeiro de uma multinacional, e posteriormente fui sócio proprietário de duas empresas. Apesar de saber que a informática era o futuro, não admitia nem concordava com a implantação de computadores na empresa onde trabalhei no Rio, simplesmente porque eu não entendia nada a respeito e achei que nunca seria capaz de mexer num computador. O ciúme e a ignorância provocaram minha rejeição. Não adiantou, a empresa comprou computadores e contratou funcionários para sentar na frente daquelas “telinhas”, mas eu continuava com o preconceito da informática e daqueles funcionários. Costumava dizer que aqueles rapazes de óculos e carecas d tanto pensar pareciam gênios, podiam entender de computador, mas não eram gente normal, não sentavam com os outros para se divertir e ainda menos para tomar umas caipirinhas após o serviço.
Após meu ingresso na Irmandade, minha vida com a prática do Programa sugerido dos Doze Passos foi mudando devagar para uma reforma íntima, mudando radicalmente minha forma de ser e de pensar da noite para o dia. Passaram alguns tempos e não conseguia minha reinserção na vida profissional, partindo do zero e dividindo minhas 24 horas entre A.A. e minha casa. Pensei então que um computador poderia me completar, me ajudar a fazer alguns bicos e organizar meu tempo com toda liberdade. Tomei a decisão e não pensei duas vezes: comprei um computador usado (modelo PC-XT) sem saber sequer como faria para ligá-lo e menos ainda para utilizá-lo. O moço que me vendeu o computador veio instalá-lo em casa e me mostrou as funções básicas. Andei errando muito e aos poucos fui aprendendo. Dois anos mais tarde comprei outro melhor, fui treinando, errando e aprendendo.
Em 1996, ainda na procura de acertar uma direção no sentido profissional, soube que a Internet já era uma realidade no Brasil. Como sonhador e alcoólico, achei que poderia estar bem mais próximo do “mundo” se tivesse a oportunidade de me conectar à rede mundial de computadores, precisando somente de um modem e de uma linha telefônica.
Basicamente meu desejo era refazer o Quarto Passo através da internet, poderia navegar pelo mundo virtual em lugares, cidades e países onde tinha estado e sobre os quais minhas lembranças não eram muito precisas por causa de apagamentos no passado. Posteriormente, pensei que pela Internet poderia me comunicar com companheiros membros de A.A. de outros países.
Não deu outra: muito emocionado, navegava pela cidade onde nasci, a 12.000 km daqui e consegui rever e lembrar de muitas coisas que aconteceram durante minha carreira de alcoólico ativo. Também a Internet me ajudou a localizar pessoas, consegui entrar em contato com amigos de infância, ou seja de 40 anos atrás, na escola primária. Vi e apreciei o quanto é grande nossa Irmandade, presente no mundo inteiro, visitando sites de muitos países, imaginando como as pessoas podiam estar se recuperando por lá, morando naqueles países com aquele frio, embaixo da neve e do gelo, e eu aqui no Brasil com este magnífico sol tropical. Minhas emoções andavam a mil.
Entusiasmado com esses fatos, aproveitava para falar do assunto nas reuniões do meu grupo “cara a cara”, em ciclos, palestras e outros eventos locais. Estava e ainda estou muito grato a A.A. cibernético, por ter mais essa ferramenta à disposição.
Ingressei no grupo aa_francais que funcionava com reuniões virtuais em tempo real para membros de A.A. de língua francesa. Participei durante muito tempo dessas reuniões, com companheiros e companheiras do Canadá e da França principalmente, porém havia membros de outros países e, mesmo com as diferenças de horário, todos faziam um esforço para participar das reuniões. Não acreditava – eu, aqui no Brasil, e simultaneamente na sala estavam companheiros da França, Canadá, Austrália e de outros países.
Alguns meses depois, verifiquei que havia outra lista de correspondência para membros de A.A. de língua hispânica. Era o AAamigosAA. Esse grupo não possuía reuniões virtuais como no aa_francais, mas também me inscrevi. Era fantástico, porque havia na lista umas 60 pessoas de vários países. Logo que entrei na lista propus a idéia de fazermos reuniões ao vivo, pois estava empolgado pela experiência ao vivo com o aa_francais. Eles acharam que, como recém-chegado nessa lista de fala hispânica, já iria tirar o sossego do grupo, que estava indo muito bem. Expliquei como funcionava na outra lista e fui informado de que não era para misturar as duas coisas, mas se eu quisesse poderia conversar por correspondência particular (e-mail), e se os companheiros quisessem poderíamos abrir este novo grupo para reuniões virtuais, porém sem vínculo com a lista. Foi o que fiz, vários membros se prontificaram e gostaram da idéia e fizemos algumas reuniões.
Posso dizer que conheci, através da Internet, dezenas de membros de A.A. Muitos se correspondem comigo até hoje. Em 1977 viajei para a França e a Espanha, e lá estavam os companheiros que conheci pela Internet aguardando para me abraçar e me conhecer pessoalmente. Logo me levaram a um grupo local para assistir a uma reunião.
Através do grupo AAamigosAA, conheci um membro que participava da lista e era brasileiro. Ele viu meu endereço eletrônico e constatou que eu enviava as mensagens do Brasil. Então entrou em contato comigo se identificando e me dando os seus dados pessoais. Ele morava a menos de cem quilômetros de minha residência e me convidou a passar um domingo na casa dele com minha esposa. A emoção também foi muito grande ao nos abraçarmos pessoalmente e nos vermos “olho no olho”. Até hoje estamos juntos, servindo A.A. na Internet. Ele é mais experiente e o considero meu “padrinho na Internet”.
No último trimestre de 1996, na procura constante de outros membros de A.A. na Internet, consegui entrar em contato com o recém-formado Grupo AAbr. Lá participei das primeiras reuniões virtuais em tempo real, pois não havia lista de correspondência por e-mail. Convidei meu padrinho na Internet para fazer parte deste grupo e ele também ficou emocionado e contente por participar das reuniões aos domingos à noite. Assim foi indo, até que foi aberta a lista de correspondência AAbr em setembro de 1998 na forma de teste ou experiência, e que não parou de crescer até hoje, ao ponto de abrir uma segunda lista: a AAbr2. Fazem parte das listas, na sua maioria, membros do Brasil, EUA, Uruguai, Portugal e Espanha. Alguns meses depois, AAbr tornou-se mais forte e estruturado, com nosso próprio site: http://www.aabr.com. Em setembro foi realizado o primeiro encontro regional em São Paulo, e em outubro, o primeiro encontro regional no Rio de Janeiro.
Pelo fato de estar com três anos de participação ativa nos grupos, A.A. na Internet tem muito me ajudado e ensinado. Tenho vivido algumas experiências e reconsiderado algumas idéias que tinha no início, quando, com muita euforia, achava que o mundo inteiro tinha que saber da nossa existência e que poderíamos “abordar” a humanidade divulgando quem éramos. As experiências vividas durante todo esse tempo nos grupos me ajudaram bastante a refletir sobre o assunto, a reler nossas Doze Tradições e interpretá-las à luz da realidade virtual da Internet.
Como acontece nos grupos de A.A., é a consciência coletiva que decide. Hoje, pelo grande numero de participantes no AAbr, o grupo ou listas estão presentes para ajudar aqueles que têm o desejo de abandonar a bebida. Oferecemos ajuda, porém ninguém é inscrito sem antes ser membro de A.A. e ter ingressado num grupo “cara a cara”, pelo fato de sermos um grupo fechado. Já aconteceu e ainda acontecerá: sabemos que a qualquer momento, em algum lugar, alguém solicitará ajuda e será encaminhado até uma sala de Alcoólicos Anônimos.
Este novo recurso de A.A. está disponível 24 horas por dia. Já me aconteceu de estar com insônia ou de não estar passando bem; então liguei meu computador, escrevi tudo aquilo que estava me incomodando e enviei às listas. Poucos instantes depois chegavam respostas de companheiros(as) me falando a respeito do que estava me incomodando, me dando apoio e força. Era o que eu precisava realmente ouvir (ler).
Nossas reuniões virtuais em tempo real são bastante parecidas com as dos grupos “cara a cara”, com um coordenador, um suplente ou adjunto que dá as boas-vindas aos recém-chegados e conversa com eles separadamente, sem interferir no andamento da reunião. Temos o roteiro da reunião, leitura dos Passos e das Tradições, Oração da Serenidade, até sai um cafezinho virtual para os participantes. Não posso negar a emoção que sinto quando sou convidado a fazer meu depoimento: começo a escrever meu texto no teclado e sei que outros membros estão na frente de seus monitores lendo tudo o que tenho para contar. Parece que a espiritualidade sai pela ponta dos meus dedos, é ao vivo.
Mesmo sem ver os rostos dos(as) companheiros(as), há aquele sentimento de escrever a verdade para que todos saibam como estou me sentindo. Surge o mesmo efeito que na cadeira da verdade. Essas reuniões não podem de forma alguma substituir as reuniões do grupo base ou “cara a cara” pois não temos na Internet aquelas palmadas nas costas, aquele sorriso, ou aquela mão no ombro do companheiro, seu olhar vivo, as “ondas diretas”. Eu acho que a Internet se assemelha mais a uma conversa por telefone, mas com a participação de dezenas de companheiros(as) simultaneamente.
Para mim é muito bom participar das listas de reuniões do AAbr, funciona para mim e posso testemunhar que funciona para muitos outros. Há aqueles que, por sua timidez, acham espaço para s expressar à vontade, aqueles que moram em lugares onde não há uma sala de A.A. próxima à sua residência, aqueles que por motivos profissionais precisam viajar e permanecem em contato com as listas em qualquer lugar aonde estejam e aqueles que por deficiência física não podem se locomover até o grupo. Outros, com problemas de visão, conseguem instalar programas que transformam o conteúdo das mensagens em “viva voz” e vice-versa, e também existe a alternativa de enviar uma mensagem falada de altíssima qualidade no próprio e-mail. Já tive a experiência de compartilhar com um companheiro que, sentado na frente de seu computador, comentava que estava escutando o fogo cruzado das bombas, durante a guerra do Golfo Pérsico – ele estava num navio de guerra dos Estados Unidos.
Por outro lado, estão sendo criados sites de entidades que procuram o bem-estar social, saúde, profissões médicas e outros. Muitos deles são conhecedores e amigos de Alcoólicos Anônimos e, nas suas respectivas home pages (sites), aproveitam para encaminhar ou indicar as nossas páginas de A.A. de modo geral, propondo nossa Irmandade como solução para aqueles que tem problemas com seu modo de beber.
Eu gostaria ainda de acrescentar que me parece muito provável que aqueles que irão freqüentar as salas de A.A. nas próximas décadas, possivelmente estarão todos familiarizados com computadores. Se A.A. estiver presente e estruturada na rede mundial de computadores, com certeza estará cumprindo seu objetivo primordial... “Quando qualquer um, seja onde for, estender a mão pedindo ajuda, quero que a mão de A.A. esteja sempre ali. E por isso: “EU SOU RESPONSÁVEL.”
XavierT – SP- Brazil
Revista Vivência de A.A. – Janeiro/Fevereiro 2000