JOÃO LEDA, UM GUARDIÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA
JOÃO LEDA, UM GUARDIÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA
*MOURA LIMA
“O exílio paterno para Manaus, mercê da politicagem caolha e nefanda, que obrigou um quase ancião a remover-se com a prole para paragens distantes e desconhecidas.” (João Leda)
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Nasceu João Leda em São Luís, a 19 de setembro de 1876 ( não em 1879, ou 1889, como aparecem em algumas publicações). Faleceu em Manaus, a 1º de março de 1955, com a idade de 79 anos incompletos, sendo os seus pais Mariano César Rodrigues de Miranda Leda e D. Leda. Ainda jovem, no verdor dos anos, casou-se com Albina Veiga Leda, teve um único filho, Artur Leda, que, para a sua alegria, deu-lhe uma neta querida, Maria Augusta.
Fez os seus estudos primários e secundários em São Luís, não cursou uma Universidade, mas, por esforço próprio, conquistou uma cultura invejável, e tornou-se autodidata, como o foram Machado de Assis, Humberto de Campos, João Lisboa, Parsonda de Carvalho e a nossa gloriosa Cora Coralina. Aos 18 anos, isto é, em 1894 ingressou no jornalismo ainda em São Luís, período em que a vida lhe sorria com todo o esplendor da mocidade, mas era-lhe apenas e tão-somente um prelúdio de dias difíceis que viriam pela frente.
Contudo, foi no lar, no recôndito da família, onde se respirava cultura, do amanhecer ao anoitecer, que se lhe formou a personalidade de polemista e vernaculista. Dava gosto ver, segundo a vizinhança, a cantoria da meninada na conjugação dos verbos, na casa do mestre Mariano.
Portanto, vê-se logo que vem da linhagem do avô paterno, o patriarca dos Ledas - Antonio Rodrigues de Miranda Leda - um português da freguesia de Castelo Branco, ribeira do Tejo, Portugal, o seu amor aos livros e a devoção sacrossanta aos clássicos do vernáculo,bem como a rigidez de caráter, a inteligência superior da cultura, uma marca dos Ledas. Já do lado materno, do avô Bento José Moreira, um paulista criador de gado, que fixou residência na Chapada, dando início ao clã dos Moreiras, recebeu dele, ainda que remotos, os traços atávicos da esperteza, caturrice, orgulho soberbo e o rompante das atitudes.
A sua ampla e sólida formação intelectual, de maneira geral, fora marcada pela influência de seu pai, o velho e erudito mestre-escola, Mariano Leda, que também era autodidata. Um apreciador dos clássicos e latinista respeitado. Como professor particular lecionou na rua da Paz, no antigo casarão onde residiu o escritor Godofredo Viana, que depois passou a pertencer ao notável jurista Tácito Caldas. Da sua cátedra de leitura e escrita, era um grão-senhor, impunha-se pelo rigor pedagógico, austeridade e, é lógico, pela palmatória, como testemunha o seu ex-aluno, o intendente de São Luís, jornalista e escritor, coronel Luso Tôrres:
- Mas dele só guardo gratas recordações!
Mariano Leda foi secretário do Liceu Maranhense, jornalista de sangue quente, republicano exaltado e candidato a deputado constituinte em 1891; mas não foi eleito, apesar do apoio de seus irmãos, o poderoso coronel Leão Leda e major Luís Leda, ambos de Grajaú. Por ter-se aventurado na truculenta política de seu tempo, pagou um preço muito alto, pois bateu de frente com a grei governamental, comandada pelo Senador Benedito Leite, que, à testa do Partido Federalista, ditava com mão de ferro a política do Estado.
Todavia, pode-se dizer que o governo procurava, à socapa, um motivo para incriminar o clã oposicionista dos Ledas, e o plano sinistro estava a caminho, com o assassinato do promotor Estolano Estáquio Polary, ocorrido em 1898, morto a tiro de clavinote e, no final, picado a facão. O promotor não era bacharel em direito, mas sim, um leigo, conforme permitia o regimento da época. Era propenso à corrupção e à prática de atos ilícitos, locupletando-se com os bens alheios. A sociedade se viu livre da autoridade indesejável.
Ao coronel Leão Leda foi atribuído o crime de mandante do horrível assassinato e, sem provas materiais do delito; o juiz, promotor e delegado em conluio, na cabala, como capachos dos mandões da terra, com um processo inconcluso, montado no afogadilho dos interesses das paixões partidárias e, ao arrepio da lei, ordenam de malhão e decretam de oitiva à prisão do chefe sertanejo. Como medida preventiva da arbitrariedade sofrida, o coronel recorre, impetrando um habeas corpus. Mas o juiz da comarca, num ato vil, se esconde,maculando a toga, e nega-lhe o remédio jurídico pleiteado. O conflito político se estabeleceu, e a trombeta da guerra sertaneja, odiosa e brutal, anunciava a luta sangrenta.
Entretanto, vozes se erguiam das tumbas do passado, numa cosmovisão fantasmagóricas, ao alarido das trombetas da guerra sertaneja. Eram os brados eternos da rebelião de massa dos balaios; das lutas dos bem-te-vis; da tropelia do velho guerreiro Militão Bandeira de Barros, ao proclamar a República de Pastos Bons; da passagem de Parsonda de Carvalho, no registro histórico das ações sangrentas do governo; do Negro Cosmo caindo de pé, no patíbulo, mas clamando por liberdade! Eram vozes libertárias!...Ecoando, clamando contra a opressão e a tirania dos governos. Era a Guerra do Leda, o grito dos sertões, clamando por emancipação. Era a ressurreição dos ódios brutais, que se aflorava outra vez pela chapada afora...
Há dentro do homem um fadário que ele ignora, em razão da agitação da vida, e uma comédia que ele a bel-prazer representa no viver. Assim foi o viver de Leão Leda, uma hora no poder, outra na trincheira da resistência, sempre de arma à mão, no perigo, quer no império como liberal, quer na república como republicano fracassado. A vida valia meia-pataca, naqueles tempos de brutalidade e de ganância pelo poder.
O grande líder sertanejo - Leão Rodrigues de Miranda Leda - era um homem rico, forte, valente, sagaz, intransigente e destemido, que fazia tremer o governo. Era preciso, na visão governamental, quebrar-lhe a espinha dorsal, e fazer a submissão do sul maranhense.
O senador Benedito Leite era uma espécie de Czar, senhor de baraço e cutelo, que usando e abusando de seu poder ditatorial, mandou, através de seu preposto Jefferson Nunes, em Grajaú, que se dispersasse à bala o clã dos Ledas e Moreiras. A guerra sertaneja, ato contínuo, se desencadeou feroz, no baixão, adjacência da Serra da Cinta e no alto sertão. Os jagunços fardados do comandante-em-chefe - o maioral -, como demônios, sob o comando do tenente João de Deus Moreira de Carvalho, que, na orgia canibalesca do morticínio, com um furor bárbaro das trevas, sem piedade ensangüentou o sertão, e os urubus se fartaram no banquete macabro dos cadáveres. O pelotão da morte de armas em punho, à bandoleira, andando sempre, numa fúria infernal, continuou a varredura nos fundões e ermos distantes. A operação militar, à bruta, sem trégua, prorrompeu-se, na caça implacável ao coronel Leão Leda e seus correligionários. Era preciso a ferro e fogo garrotear o reduto sulista, e fazê-lo curvar-se todo genuflexo, como um humilde servo de gleba, aos pés do governo. A ordem tática que foi dada à soldadesca sanguinária era de execução sumária de todos os opositores do governo, não poupando velhos, crianças, mulheres grávidas, vaqueiros, e humildes camponeses. Por onde passava a horda criminosa, a terra ficava arrasada, as donzelas eram estupradas, as propriedades incendiadas, roubadas e saqueadas.
E naqueles tempos de brutalidade e carrancismo, o governo era useiro e vezeiro, na prática da violência, não só derrotar o adversário politicamente, mas, na verdade, tinha que deixá-lo na miséria, despojado dos bens, ao rés - da - terra, a esmolar clemência, para nunca mais poder levantar-se, ainda que cristão, o semblante ao sol. Era uma morte civil e moral em vida. O condenado não tinha escapatória, ou desterrava-se, ou morria.
Leão Leda lutou bravamente com seus homens, fez várias escaramuças à tropa, não tendo como resistir à força do governo, fugiu para os gerais do Norte de Goiás, hoje, Tocantins. E o destemido líder sertanejo, como um templário medieval embrenhou-se pelo sertão, com a alma cheia de esperança, de um dia poder libertar o Sul do Maranhão e transformá-lo em um novo Estado, livre das injunções cavilosas dos oligarcas de São Luís. Porém, altaneiro, seguiu o seu desiderato até a morte, e foi assassinado a 9 de março de 1909, em combate no histórico cerco de Conceição do Araguaia, na época, território goiano.
Os Ledas, por pressão do governo, foram desterrados pelo país afora. Uns foram para o Pará, Amazonas, Goiás, outros para o Nordeste e São Paulo. A memória e o histórico familiar extinguiram-se. O silêncio se fez sepulcral.
Porém, o único que ficou na região conflagrada, foi Luís Rodrigues de Miranda Leda - o mais sábio dos Ledas. Um homem culto, ponderado, flexível politicamente, que sabia avançar e recuar na hora certa. Exerceu por várias vezes o cargo de promotor, em Grajaú, e contou, no momento difícil, com o apoio do sogro Frederico Figueira, redator do jornal O Norte, prestigioso chefe sertanejo de Barra do Corda; mais tarde, governador interino do Maranhão e presidente da Assembléia Legislativa do Estado.
Por conseqüência, o velho mestre-escola, Mariano Leda, um quase ancião, de 68 anos, foi obrigado, por pertencer ao clã condenado que fora desterrado, e em razão de sobrevivência da família, num alvitramento desrespeitoso e persecutório, a aceitar um cargo de postalista dos correios, com a condição impositiva de transferir-se de imediato, de São Luís para Manaus. Era o tempo do terror e do mandonismo arrogante do quero,posso,mando e arrebento!
O nosso biografado, João Leda, na época um jovem de 23 anos, condoído com o destino do pai, por ser o filho mais velho entre cinco, resolveu acompanhá-lo no desterro, para garantir a subsistência da família, uma vez que o salário de postalista mal dava para comer. E lá se foi para um mundo desconhecido, livrando-se da ameaça de morte, o velho professor, que ensinara tantas gerações. A imprensa silenciou diante do ato torpe, talvez, quem sabe, com medo de represália do governo enraivecido e vingativo. A nostálgica Atena Brasileira, alheia ao fato, como uma noiva assanhada, recebia festiva a chegada do glorificado escritor Coelho Neto. O calendário assinalava o ano de 1899.
Os governos discricionários e corruptos de todos os tempos, sempre temeram os homens que sabiam escrever - com medo apavorante do testemunho histórico - e, sem compaixão, procuravam metê-los em cárceres infectos, para abalar-lhes a saúde, ou torturá-los psicologicamente, e, até mesmo, na explosão do ódio, dar-lhes um fim, ou matá-los lentamente. Um dos exemplos mundiais de perseguição política foi Dostoievsky, que contrariando o governo, foi exilado em prisão na gélida Sibéria, onde escreveu o monumental livro, Recordações da Casa dos Mortos. E no Brasil temos o exemplo da prisão de Graciliano Ramos, na ilha Grande, que legou às gerações futura o livro, Memórias de Cárcere.
Já no Maranhão, além de Mariano Leda, tivemos dois causos graves de intolerância política. Um ocorreu no Império, com o notável Celso de Magalhães, hoje patrono do Ministério Público do Maranhão. O jovem promotor, no estrito cumprimento do dever funcional, sem tergiversar, manteve a denúncia contra Ana Rosa Viana Ribeiro, a baronesa de Grajaú, por ter seviciado e matado o seu escravinho, Inocêncio, um menino de oito anos. O clamor público foi enorme naquele tempo distante, e o promotor, diante do horrível crime,não titubeou,requereu a prisão da baronesa e, para o espanto da sociedade aristocrática, foi trancafiada no xadrez. O seu marido, o médico Carlos Fernando Ribeiro, o barão de Grajaú, por sinal, Chefe do Partido Liberal na província, em razão de sua fortuna e projeção social, no meio da aristocracia local, conseguiu a absolvição da Baronesa.
Por conseguinte, tempo depois do ocorrido, o barão de Grajaú, foi elevado ao cargo de presidente da Província do Maranhão. O seu primeiro ato governamental foi exonerar a bem do serviço público, o promotor Celso Magalhães. O destemido e corajoso promotor, uma das mais luminosas inteligências da época, não suportou o rude golpe, entrou em depressão profunda, e veio a falecer.
Portanto, o outro fato horripilante de perseguição política foi do professor, jornalista e escritor Antônio Lôbo, um dos fundadores da Academia Maranhense de Letras, ao lado de Fran Pacheco. O festejado jornalista, no cumprimento de sua missão jornalística, como defensor da sociedade, vinha denunciando as falcatruas do governo, e o mandatário-mor, para puni-lo, suspendeu-lhe o pagamento de professor do Liceu Maranhense. Não satisfeito, coagiu o proprietário do jornal, “A Tarde”, a reduzir-lhe o salário de diretor. Mas Antônio Lôbo resistiu, e o governo, de sua trincheira maquiavélica, deu a bordoada final, mandou os seus alfojados comprar o jornal e fechá-lo. Para Antônio Lôbo, foi um baque medonho, já vinha com a saúde combalida, de tanta pressão, caiu em crise nervosa, entrou em desespero e teve morte agônica, suicidou-se.
Voltando ao ponto desta síntese biográfica.
João Leda, ao chegar a Manaus, praticamente no começo, ou seja, no dealbar das luzes do século XX, acompanhado dos pais e quatro irmãos - viu a sua estrela-guia brilhar -, e a providência que não desampara as almas peregrinas, num ato de justiça celestial, procurou devolver-lhe tudo que foi negado na sua terra. Foi bem recebido e acolhido, tanto no magistério, como no meio jornalístico. Por onde passava, deixava a marca da competência e de alto saber, pontilhado pela retidão de caráter. Com o fulgor de sua inteligência conquistou o seu lugar na administração pública. Foi redator de debates e Diretor da Secretaria da Assembléia Legislativa do Estado, cargo em que se aposentou. Dirigiu com zelo e competência o Diário Oficial, e também, a provedoria da Santa Casa de Misericórdia. Presidiu, por longo tempo, a Assembléia Geral da Associação Amazonense de Imprensa; foi vice-presidente, membro fundador da Academia Amazonense de Letras e titular da cadeira 16.
Professor, jornalista, ensaísta, e filólogo de longos recursos. O mestre João Leda possuía uma formação cultural fecunda, prezava a pureza da língua, dedicou longos anos ao estudo do vernáculo e da obra de Rui Barbosa. Era também um entusiástico estudioso da obra camiliana e de outros clássicos portugueses. Amou e foi um guardião da língua portuguesa, identificou-se com ela, viveu-a em toda a sua plenitude, conforme os livros de sua autoria, dentre os quais, o VOCABULÁRIO DE RUI BARBOSA – 1924 – São Paulo; OS ÁUREOS FILÕES DE CAMILO -1923-Manaus; NOSSA LÍNGUA E SEUS SOBERANOS – 1928 – Manaus; A QUIMERA DA LÍNGUA BRASILEIRA – 1939 – Manaus.
O mestre filólogo tinha uma mente crítica ferina, especialmente em assunto de lingüística, onde entremeava, sempre, a conversação com palavras de fogo e contundentes, tinha o pavio curto, não tolerava os apedeutas. A sua formação moral era rígida, inamolgável, e inatacável, foi uma das figuras mais expressivas do mundo cultural amazonense, merecendo sempre o acolhimento, o respeito e a admiração de seus contemporâneos. Na época do lançamento do Vocabulário de Rui Barbosa,em 1923,chamou a si a atenção do mundo acadêmico brasileiro, e tornou-se conhecido além - Atlântico, chegando a manter polêmica com Cândido Figueiredo. Era uma pessoa infensa à glória e aos alaridos das vaidades literárias. Militou por mais de cinqüenta anos na imprensa em Manaus; e, na cidade que o acolheu como a um filho, entregou sua alma ao Criador, e seu nome ficou gravado no Panteão da glória e dos vencedores.
**Texto extraído do livro do escritor Moura Lima – Zênite-A linguagem dos Trópicos - ed. Cometa, 2° edição, Gurupi-to-2007
*Moura Lima é advogado, pós-graduado em língua portuguesa, escritor, romancista, contista e ensaísta. Membro fundador da Academia Tocantinense de Letras, cadeira nº 15, pertence também à Academia Piauiense de Letras, como membro correspondente.
E-mail: j.mouralima@zipmail.com.br