Alcoolismo "Uma luz no fim do túnel" 2 - Da infância

Da infância

Nas discussões e brigas familiares os adultos tornam-se crianças e, as crianças sofrem como se fossem adultas. Uma criança frágil e sensível vive num ambiente caótico que o marcará para toda a vida.

Sitges é a cidadezinha onde nasci, parece um cartão postal, fica a uns 35 km. no litoral sul de Barcelona, até hoje é uma cidade turística, na pós guerra muitos estrangeiros descobriram esse lugar maravilhoso e o tornaram famoso. Na “costa dorada” com o mar azul e ainda com pequenas embarcações dos pescadores tinha todas as características adequadas para passar férias e descansar, dava para perceber que era uma cidade artística aonde muitos artistas vinham de longe para pintar seus quadros a beira mar. Era um ambiente boêmio que evidentemente estava ligado aos artistas de modo geral, escultores, escritores, poetas e por ai afora. Os turistas (nacionais ou estrangeiros) tinham alto poder aquisitivo, alguns deles eram proprietários das mansões construídas frente à praia na parte mais nobre da cidade. Todo ano durante as férias o numero de habitantes duplicava, eles curtiam alem das belas praias as diversas opções de lazer, como o golfe, tênis equitação entre outras. Recordo-me perfeitamente do ambiente no verão, sentia-me um privilegiado pelo fato de morar lá o ano inteiro.

Meu pai também nasceu ali, sua família era totalmente catalã, tinha duas irmãs, a mais velha “Josefina” era viúva e seu marido tinha feito fortuna em Cuba, infelizmente nunca tiveram filhos. A outra irmã “Eulália” era a caçula e minha madrinha, demorou em se casar, casou-se já coroa com aproximadamente uns quarenta e cinco anos de idade, tentaram fazer um filho mas infelizmente nasceu morto. Portanto, uma família cuja sucessão somente poderia ser feita por parte da linhagem do meu pai. Três anos mais tarde Eulália e seu marido adotavam uma menina e a registraram como legitima filha deles. Obviamente que por trás disso tudo tinham em mente o que iria acontecer depois quando fossem tratar dos assuntos de herança, pois entre as posses dos meus avos e da Josefina somados valeria seguramente a pena brigar.

Minha mãe é francesa, nasceu em Denain ao norte da França, ela completou noventa e cinco anos de idade em fevereiro de 2001, ainda moça trabalhou alguns anos como secretaria de diretoria numa firma em Paris, tinha uma irmã, a Jane mas seu apelido era “Nonô”, meu avo foi transferido para Sitges com a responsabilidade de construir uma usina de cimento a seis quilômetros da cidade num vilarejo chamado Vallcarca. Quando minha avó, minha tia Nonô e minha mãe foram pela primeira vez de férias e visitar meu avô a Sitges, ficaram impressionadas. Foi la que meus pais se conheceram, namoraram e casaram. Minha mãe, mulher bonita elegante e de forte personalidade se adaptou sem maiores problemas no país, ela gostava muito do meu pai.

Eu era o caçula da família com cinco filhos, quatro homens e uma mulher (éramos seis, mas o Gustavo que morreu com dois anos de idade por causa de um tumor na cabeça, nunca o conheci), e como costuma acontecer sempre nas famílias com mais de um filho tive mais mimo e proteção que meus irmãos mais velhos pelo simples fato ser o caçula.

Tinha cinco anos de idade quando meu pai, por causa de um derrame ficou deficiente em uma cadeira de rodas para o resto de sua vida e foi aí que começaram a complicar as coisas no seio de minha família. Ele era alfaiate de renome e conhecido, com muito boa freguesia após longos anos de exercício da profissão, sempre no verão tinha mais serviço, trabalhava em casa e as vezes até virava a noite para cumprir o prazo prometido aos clientes, morávamos numa casa no centro da cidade com três andares e haviam umas três ou quatro costureiras que ajudavam o meu pai durante o verão.

Nos anos cinqüenta as esposas estavam restritas a criar os filhos e se manter às tarefas rotineiras do lar, diante o novo quadro que se apresentava, como levar adiante uma família de cinco filhos com idades entre cinco e dezessete anos?

Havia mais um ingrediente para temperar tal situação, o relacionamento entre a família do meu pai e minha mãe não era dos melhores. Talvez por causa da nacionalidade de minha mãe, simpatia e relacionamento fácil que ela tinha com os que a rodeavam, ou talvez por ciúme sabendo que éramos nós os sucessores para efeitos de herança. Dez anos mais tarde minhas tias forjariam um testamento assinado pelos meus avos deixando somente uma legitima parte dos bens (correspondente a um dozeavo do total) ao meu pai e ainda com valores sub estimados, em outras palavras ficou praticamente sem nada.

Nos primeiros tempos minha mãe conseguiu com algumas reservas financeiras levar a família adiante, mas depois todos meus irmãos e irmã sem alternativa tiveram que partir a fim de tratar de suas próprias vidas, cada um por si mesmo para sobreviver.

O Santiago que já tinha se formado em engenharia iria à França para começar sua vida profissional, chegando lá e estando em idade de servir o exército foi enviado à guerra da Argélia, voltando a Paris três anos mais tarde. Desde aquela época até os dias de hoje mora na França a 80 km. de Paris no estado de Seine et Marne. Recém aposentado, casou-se três vezes e tem quatro filhos homem e duas filhas.

A Odette, minha única irmã foi para Inglaterra onde trabalharia como baby sitter pois não tinha nenhuma profissão. Faleceu em 1987 de causa desconhecida, morava perto de Paris, sei que doente tomava sedativos antidepressivos e que também gostava e bebia bastante álcool. Teve quatro filhas e um filho em dois casamentos e um amante.

O José Maria, optou pela vida religiosa e ingressou nos Padres Escolapios, dez anos depois era ordenado sacerdote naquela igreja, dez anos mais tarde eu o influenciaria a abandonar a batina. Hoje, é o único que mora perto de Barcelona numa cidade chamada La Garriga, tem quatro filhas, duas já casadas.

O Daniel demorou ainda algum tempo antes de ir à França, pela idade e porque estava apaixonado pela “Maribel”, uma garota de Sitges. Ele tinha 9 anos quando meu pai teve o derrame, continuou uns dois anos ainda na escola, mas precisou começar logo a aprender uma profissão manual para ajudar minha mãe porque as reservas financeiras estavam terminando. Diante da situação, o Daniel ajudava em casa com seu pequeno ordenado e as gorjetas que ganhava trabalhando na portaria do grande hotel Terramar em Sitges abrindo as portas dos automóveis para os clientes descerem dos luxuosos carros, mas como somente ganhava no verão começou em outra profissão numa oficina mecânica como ajudante, ele sempre foi apaixonado por motores e velocidade. Alguns anos depois também iria morar na França e trabalhar no inicio com o Santiago que o acolheu na sua casa. Ele tem uma única filha e mora a 130 km. ao Norte de Paris no estado de l’Oise.

Minha mãe montou uma loja do tipo armarinho, mas não deu certo, as despesas eram maiores que as receitas, pois o maior movimento como de costume era durante os três meses de verão, lembro-me que num Natal não tínhamos a mínima possibilidade nem sequer de comer um frango assado, na véspera enquanto estávamos nos fundos da loja tocou a campainha (ela tocava automaticamente quando alguém abria a porta da loja), minha mãe for ver se era algum cliente e, surpresa, alguém tinha deixado umas sacolas com todos os produtos típicos para poder festejar com fartura as festas de Natal e Ano Novo e ter uma boa mesa nestas datas, nunca soubemos quem foi que deixou as sacolas, acredito eu que seria alguém que conhecia nossa situação e que realizou este ato de modo totalmente anônimo.

Eu, criança com cinco anos presenciei a pulverização da família, quase sem mais irmãos para brincar e em particular minha irmã que estava sempre perto de mim, o lar de repente ficou vazio e reinava um ambiente depressivo, minha mãe e minhas tias brigando sempre até por qualquer coisa sem importância, era uma situação muito triste.

Continuei indo a escola das freiras até os sete anos, sei que pela situação econômica em casa não cobravam quase nada. Fiz minha primeira comunhão, minha educação e os colégios sempre foram voltados à religião católica, aos oito anos comecei a estudar em outra escola, desta vez eram os Padres Escolapios, ali estudei até os doze anos, conseguia passar de ano raspando, minhas notas não eram muito boas, acredito que por falta de concentração minha mente sempre esteve muito dispersa.

Aos oito anos de idade fizemos uma viagem minha mãe e eu à Paris, possivelmente ela tivesse brigado mais uma vez com minhas tias, ficamos lá três meses de outubro a dezembro e, era a primeira vez que ia à França, conheci la uma amiguinha em Versailles se chamava Dominique e era meu primeiro amor com oito anos de idade, aprendi durante nossa permanência também nessa ocasião a andar de patins, e andava razoavelmente bem, quase que perdi meu ano escolar dessa vez, mas minha mãe conversou com o diretor da escola e não tive maiores problemas.

Mais tarde, aos dez anos continuava estudando no colégio dos “Padres Escolapios” e um dia a professora quase no fim do período da tarde (ia ao colégio a manhã e a tarde) foi chamada pelo diretor e saiu da classe, na volta me disse na frente de todos; Javier, sua mãe chamou pelo telefone e esta pedindo para você ir rapidamente para sua casa pois sua irmã acabou de chegar da Inglaterra, saí correndo sem me entreter no caminho para chegar logo em casa, minha irmã Odette estava lá, com o marido inglês e a primeira filha, Ana Maria que em inglês a chamavam “Annette”. Era minha irmã, que saudades !!! aquela que sempre cuidava de mim poucos anos antes, fiquei muito feliz pois ela era como minha segunda mãe.

Outra das alternativas pela qual minha mãe optou para tentar sustentar a família foi a de abrir um pequeno hotel na orla marítima de Sitges, o nome era “Residência Odette” justamente com o objetivo de chamar a atenção dos turistas de língua francesa, pois na língua hispânica não era usado este nome. Funcionava somente durante o verão, para mim era formidável pois me dava a impressão de morar num hotel, com a praia a poucos metros o que mais fazia era curtir e me divertir. Ficou aberto por duas temporadas somente, pois acho que o contrato de aluguel não foi renovado porque os donos do “Hotel Terramar” perceberam que muitos de seus clientes deixavam as acomodações do “Palace” para vir à “Residência Odette” de ambiente familiar e com poucos hospedes.

Num daqueles verões tive a experiência do meu primeiro trabalho durante as férias, como que não consegui passar duas matérias na escola trabalhei como entregador de telegramas nos telégrafos, para mim era uma punição muito divertida pois ganhava gorjeta a cada entrega e assim podia comprar e comer bastante sorvete de chocolate, café ou creme. Uma das entregas de telegrama era numa mansão de veraneio, toquei varias vezes a campainha e ninguém abria a porta, mas tinha um cão de guarda que não parava de latir e eu o xingava porque sabia que nada podia me fazer porque a porta estava trancada, de repente um funcionário abriu a porta e não deu outra, o feroz pastor alemão avançou e me mordeu na coxa esquerda, logo foi dominado pelo funcionário, eu chorava apavorado e apertava forte à coxa com as duas mãos pensando que se o cachorro tivesse a raiva (doença comum naquela época para os cães não vacinados), assim poderia evitar que a raiva subisse pelo meu corpo e ficasse contagiado, mero pensamento de uma criança de dez anos de idade.

Dos treze aos quatorze anos estudei como interno em outra escola bastante distante de Sitges, era a primeira vez que me separava dos meus pais, minha tia Josefina era quem pagara esse curso que também consegui passar de ano raspando. A primeira vez que ela me levou até o colégio fomos de trem, lembro que quando ela voltou e eu fiquei lá me deu a impressão de estar numa penitenciaria, tranquei-me no banheiro e chorei soluçando.

Esses anos de minha infância me marcaram muito e, percebi frente aquela situação que caberia a mim (pois não havia nenhuma alternativa) sustentar meus pais como arrimo. Aquilo que estava acontecendo não era justo, não me conformava que meus irmãos progredissem e construíssem suas vidas e que eu por ser o ultimo (caçula) tivesse que ficar de mãos atadas carregando esta responsabilidade para toda minha vida. Achei que Deus tinha me obrigado (na forma religiosa concebia Deus como castigador, pois eu tinha uma formação religiosa e orava o tempo todo para que Ele acertasse a situação) a viver para sempre aquela situação, e inconformado pelo meu destino senti-me punido.

Xavier T
Enviado por Xavier T em 09/06/2009
Código do texto: T1640014
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