Alcoolismo "Uma luz no fim do túnel" 7 - Tinha que aproveitar a ultima oportunidade

Tinha que aproveitar a ultima oportunidade

Estava derrotado, sem mais nenhuma expectativa de vida

Forçado em aceitar a realidade para manter-me vivo

No começo do mês de abril de 1986, levei Augusta às crianças e o Vladi ao aeroporto de Orly, eles voltariam a São Paulo viajando pelas Aerolineas Argentinas, e eu fiquei para preparar a mudança e liquidar as pendências. Pedi demissão do meu serviço junto ao Daniel que não me fez nenhuma pergunta, ele tinha percebido que eu não estava satisfeito. Contratei os serviços de uma transportadora e despachei toda a mudança, somente me restava comprar a passagem de volta ao Brasil, consegui uma passagem para inicio do mês de maio bem mais em conta viajando de Paris a Londres, Lisboa, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. O Guy, marido de uma de minhas sobrinhas e seu irmão me acompanharam até o aeroporto de Orly para pegar o avião que me levaria a Londres, era um vôo noturno econômico, bebemos bastante cerveja em quanto aguardava a chamada para o embarque, estava embriagado quando subi no avião, o problema era que por causa da cerveja tinha muita vontade ir ao banheiro, o avião era de tamanho reduzido e o tempo de vôo muito curto, não dava para ir até o banheiro e quase que fiz xixi em cima de mim no avião.

Em Londres morava outra sobrinha, Ana Maria a filha mais velha de minha irmã Odette, quando cheguei em Londres a chamei pelo telefone desde o aeroporto, ela me explicou como fazer para chegar até a casa dela, eu lhe respondi que não falava nem lia uma palavra de inglês e que por favor viesse me buscar, ela veio e me levou até sua casa. Passei uns dois dias em Londres no aguardo de pegar o outro avião da TAP que me levaria a Lisboa, fiquei fazendo um pouco de turismo e matando saudades com ela porque fazia muito tempo que não a via. Na véspera da partida, fomos num “pub”, bebi ali todo o que tinha direito aproveitando a ocasião para beber a famosa cerveja “guiness” e depois é claro whisky até me derrubar, tinha no pub um conjunto que tocava todo tipo de musicas, de repente tocaram “Brasil”, e eu sai dançando na pista e sem falar o inglês eu gritava “tomorrow me in Brasil”, estava muito eufórico, em primeiro lugar porque tinha bebido muito, em segundo lugar porque sabendo que Augusta e os filhos estavam já em São Paulo me dava uma certa tranqüilidade, e finalmente porque nessa nova guinada em minha vida tudo poderia acontecer, esta poderia ser a ultima cartada e devia aproveitar para me sair bem de uma vez por todas, poderia ser o fim do meu sofrimento. Durante o período que fiquei sozinho tratando da mudança Augusta me ligou desde São Paulo para me dizer que tinha encontrado o Plínio e que havia uma pequena mudança nos planos para meu trabalho no Brasil, que não iria mais para Campinas, que a filial que eu iria gerenciar seria a do Rio de Janeiro e o que eu pensava disso, para mim foi uma grande surpresa e ainda para muito melhor, lembrava de minha adolescência e também da primeira vez que cheguei no Brasil do quanto tinha ficado emocionado, sempre tinha sonhado um dia morar no Rio de Janeiro e isso estava para acontecer. Obviamente que disse que estava de acordo em ir trabalhar ao Rio no lugar de Campinas.

Viajei de Londres a Lisboa no horário do almoço, era uma viajem curta mas o avião era bem mais confortável do que tinha tomado de Paris a Londres. Duas horas depois estava aterrissando em Portugal, um primo em segundo grau de Augusta estava me esperando, era o Nito que já o tinha conhecido durante nossas férias, ele não morava muito longe de Lisboa numa cidade pequena no alto de uma colina com vista para o mar, passaria a tarde na casa dele com sua família, jantaria e me levariam ao aeroporto para viajar novamente pela TAP para o Brasil, o vôo era às vinte e três horas, viajei para o Brasil com escalas em Recife e Rio de Janeiro que era o ponto final da TAP, fiz conexão e em outra companhia terminei a viagem até São Paulo no recém construído aeroporto de Guarulhos. Minha saída da alfândega demorou mais tempo que os outros passageiros porque tinha que mostrar toda a documentação já aprovada na França pelo consulado brasileiro, obviamente tinha que provar porque minha passagem era somente de vinda, uma vez que passei por todos os controles finalmente sai no saguão e atrás dos vidros que separavam passageiros e publico vi de longe à Augusta, o Xavier e Alain que estavam colados trás os vidros quase que os lambendo, fiquei feliz, muito feliz. Toda a família de Augusta inclusive amigos da família vieram ao aeroporto para me receber, foi grande a emoção em revê-los abraçamo-nos com Augusta e os filhos um bom tempo. O Dr. Silvio grande amigo da família fez questão de me oferecer um cafezinho brasileiro na lanchonete do aeroporto e aceitei prontamente. Augusta me disse depois que o Plínio não ia poder vir no aeroporto porque tinha compromissos de trabalho, que viria almoçar com a gente no apartamento de propriedade de meu cunhado onde morava minha sogra e provisoriamente Augusta e os filhos. Na verdade estava muito contente por reencontrar à família e pela nova oportunidade que tinha se apresentado, chegamos no apartamento tomei banho para me refrescar e vesti roupas apropriadas ao clima, após o meio dia chegou o Plínio como sempre impecável de terno, gravata e a pasta.

Foi bom vê-lo novamente, eu fazia questão de que revivêssemos os velhos tempos, fui até o quarto procurar na minha bagagem uma garrafa de whisky Walentine’s doze anos, abri e me acompanhou tomando umas doses para comemorar, pensei que poderíamos conviver e trabalhar como antigamente quando tínhamos o mesmo cargo então dissera lhe que ele agora era o gerente nacional de operações e que o diretor geral poderia-me aproveitar para abrir novos mercados em outros paises de América Latina, claro, depois que eu houvesse solucionado os problemas que a firma tinha no Rio de Janeiro e que eu supunha que por este motivo tinham-me convidado para voltar ao Brasil. O Plínio não interpretou minha colocação da mesma maneira que eu, sentiu-se agredido como se eu quisesse passar por cima dele ou ir além de suas funções para conseguir um cargo superior ao que ele tinha naquele momento e respondeu-me que si tal probabilidade surgisse seria ele quem assumiria este cargo na empresa, ele interpretou que eu queria evitar em ficar sob seu comando, acho que houve um mal entendido, ele falava e pensava como um profissional e eu falava e pensava com meu coração e bem intencionado, queria na verdade que fossemos ter um relacionamento de igual para igual e não de chefe para subordinado, e foi isso que me atrapalhou e prejudicou nesta nova fase. Era preciso que fizesse um pequeno estagio de integração e atualização pois tinham-se passado mais de quatro anos desde que tinha partido para Europa, mas o Plínio pediu-me para acelerar e que fosse o mais rápido possível para o Rio, primeiro eu sozinho na frente e depois minha família. Fiz o estagio em apenas duas semanas, entreguei o relatório ao Plínio, comentei o que ali estava escrito. As observações e críticas que escrevi no relatório foram feitas com a melhor das intenções no sentido de ajudar ou colaborar para o crescimento da firma, mas acho que o Plínio não o interpretou desse modo. Transcrevo alguns trechos do meu relatório: “Por razões de mudanças freqüentes de estrutura nesses últimos anos, e a incidência do crescimento rápido da Empresa, o pessoal ao nível de supervisão esta muito desmotivado e desorientado. Na fase atualmente critica, um gerente de Recursos Humanos se torna indispensável. Não é de minha incumbência analisar o estilo ou política adotados em SP, mas é preciso salientar a total falta de comunicação nesta área, falta de motivação, falta de sinceridade (porque fechados neles mesmos e ou incompetência), mas continuando a fazer devidamente o serviço, porque gostam da Empresa. Espero que o problema venha se estabilizar, porque do contrario poderia se tornar crítico . . . . . . A comunicação esta faltando de cima para baixo (importante como se comunicar), e conseqüentemente falta o pique (punch) e o planejamento para ser mais eficientes, sem esses itens não se obtém todo o potencial a ser desenvolvido e deixamos de otimizar a área operacional . . . . . . . A comunicação e a informação interáreas é muito discutível, com a interferência entre os próprios departamentos ou áreas, o que traz como conseqüências fatais, uma completa confusão, e uma total ineficiência”.

Fui logo transferido para o Rio de Janeiro, sozinho tentando me integrar e conhecer a nova realidade, morava no hotel e viajava todo fim de semana para São Paulo. Aluguei um apartamento no bairro do Grajaú comprei o mínimo necessário para que Augusta e os filhos pudessem vir se juntar a mim. Consegui fazer um bom trabalho durante o ano que fiquei no Rio, a responsabilidade era grande havia em torno de quatrocentos e cinqüenta funcionários sob meu comando e o faturamento mensal equivalia a meio milhão de dólares. Fomos passar uns dias de férias no apartamento de Praia Grande no litoral Paulista, estávamos isolados do mundo e curtindo a praia nós quatro e o Vladi quando no horário do almoço fomos chamados pelo zelador porque minha sogra estava chamando pelo telefone de São Paulo (o zelador era o único que tinha telefone no prédio), Augusta atendeu e ficou sabendo que tinha chegado um telegrama de minha sobrinha Ana Maria dizendo para entrar em contato urgente em casa de minha mãe, terminamos de almoçar e fomos logo ao correio para chamar à França, eu tinha-me preparado psicologicamente para escutar a noticia do falecimento de minha mãe, e não foi nada disso, conversei com minha sobrinha e com minha mãe que me comunicaram que minha irmã Odette tinha falecido de repente, não conheciam a causa mas que talvez fosse pelos remédios antidepressivos que estaria tomando em grande quantidade e que talvez poderia ter misturado com bebida alcoólica, foi uma noticia muito desagradável para mim, mas não podia fazer nada, minha irmã tinha falecido com seus cinqüenta e três anos de idade.

Por causa de falta de atividade profissional por parte de Augusta que não gostava de ser chamada “do lar”, pensamos que seria mais fácil em São Paulo arrumar um emprego para ela, porque no Rio não conseguiu, e também porque tínhamos nossa casa que estava alugada mas que poderíamos reaver evitando despesas com aluguel como era o caso no Rio. Durante minha estadia no Rio viajava a São Paulo pelo menos uma vez por mês para apresentar pessoalmente os resultados da filial, uma vez o Xavier filho viajou comigo para São Paulo pela ponte aérea e ficou alguns dias na casa de sua vovó, estava muito feliz por viajar de avião com seu pai. Pedi para ser transferido para São Paulo e consegui, a principio o Plínio não concordava e eu ameacei em sair da firma, a metade de 1987 estaríamos voltando para São Paulo no apartamento de minha sogra enquanto não pegássemos nossa casa de volta para morar. Fizeram uma festa de despedida para nós no Rio, mais uma vez ganhei um cartão de prata com o nome de todo o pessoal do escritório, era o segundo cartão pois em 1982 quando parti da firma para a França tinham-me presenteado também com um cartão de prata.

Em São Paulo ocupava o mesmo cargo que no Rio, gerente regional de uma área geográfica sempre no setor operacional, desta vez estava mais próximo do Plínio. O problema das fobias e crise do pânico me perseguia sem me avisar quando acontecia, um dia indo ao escritório precisei voltar para casa no meio do caminho por causa de uma crise, na firma ficaram preocupados e resolveram me transferir para a área de recursos humanos. Em setembro do mesmo ano recebia uma carta manuscrita pela responsável da área de recursos humanos do Rio, a Teresinha, que após minha saída do Rio não conseguiu se relacionar com meu sucessor e estava saindo da empresa, ela escrevia na carta: “Xaxá (diminutivo de Xavier), como é difícil me despedir de você. Não sei se alguma vez te disse, mas tenho profunda admiração por você, como pessoa e como profissional. Não conta para ninguém, mas tenho muitas saudades do tempo em que trabalhamos juntos. Sem dúvida, foi para mim a fase de maior autonomia, maior criatividade, maior respeito profissional. Acho muito bom você estar trabalhando agora em RH. Eu, melhor que ninguém, sei o quanto você gosta da área e o quanto você pode fazer por ela. Por favor, continue produzindo tudo o que você é capaz; ainda há muito a ser feito para que a empresa tenha um RH EFICAZ (e não apenas eficiente). Desejo lhe muito sucesso dentro e fora da firma. Posso lhe garantir que terás sempre uma grande amiga. Sempre que precisar ou tiver um pouquinho de saudade, me procure. Dê, por mim, um grande abraço na Augusta. Muito, muito obrigada por tudo, abraços . . . Teresinha.

Meus conflitos emocionais provocados pela bebida me causavam novamente sérios transtornos juntamente com o pânico, Augusta estava muito preocupada comigo, meu desempenho no serviço estava caindo. Fui durante algumas semanas mais ou menos uma vez por semana num centro espírita para tomar um passe, para eu ter aceitado faze-lo era porque estava me sentindo muito mal, ainda teimava e continuava bebendo, não acreditava em nada nem em ninguém, estava fechado e isolado mais uma vez no meu mundo, e sofrendo. Mais uma tentativa foi a de consultar uma psicanalista e fazer um tratamento para tentar melhorar, ela me deixava conversar sozinho deitado no sofá enquanto ela colocava o cronômetro a funcionar, quando terminava o tempo me dizia “por hoje é só”, e no fim do mês eu lhe fazia um cheque para pagar as consultas, não dei continuidade porque tinha a impressão de estar sendo roubado. Uma noite na hora de dormir, minha depressão tinha chegado a tal ponto que comecei a chorar na cama, Augusta ficou muito assustada sem saber o que fazer, ela punha sua mão na minha testa para tentar me tranqüilizar, eu estava desesperado.

Durante esse período fizemos o necessário para recuperar nossa casa que estava alugada, não havíamos tido ainda a oportunidade de morar nela, em 1982 quando estava pronta eu tinha preferido voltar à França, o bairro tinha crescido muito, tivemos sorte pois a valorização estava muito além da inflação, era um bairro muito procurado classe “A”, onde somente haviam residências de alto padrão, minha casa ficava de frente à praça. No final de 1989 conseguimos pela justiça despejar os inquilinos para morar finalmente em nossa casa oito anos após sua construção, mandamos fazer uma reforma geral e deixa-la em condições de morar. Alguns meses antes de mudar para nossa casa, ainda no apartamento, o Vladi morreu de velhice com dezessete anos de idade, muita idade para um cachorro pura raça que não deveria ultrapassar os doze anos, ele andava caindo e Augusta o pegou nos seus braços para levá-lo ao veterinário pois eu não tinha coragem, quando saiu com ela, eu sabia que não voltaria mais em casa, foi um triste “adeus”.

Três meses após nossa mudança definitiva expliquei à Augusta o que estava sentindo a respeito do meu trabalho e minha saúde, ela me sugeriu que o principal era que eu me sentisse bem e que havia muitas outras firmas onde seguramente acharia um bom emprego. A sugestão de Augusta me fez sentir aliviado, não teria gostado pedir minha demissão sem conversar com ela, assim foi bem mais fácil para que pedisse a demissão, e foi o que fiz. O Plínio me perguntou o porque estava indo embora, disfarçou muito bem sua posição como “chefe”, eu não lhe dei nenhuma satisfação, devolvi lhe as chaves do carro da firma e os respectivos documentos, a calculadora financeira HP, uma gravata e um botton da empresa, agi de um modo muito duro e seco com ele, dissera-me que a gente falaria mais tarde, eu respondi lhe que isto não iria ser possível porque estava indo embora do escritório e que não ia voltar mais.

Estava começando outra etapa em minha vida, aliviado por sair da firma que tanto gostava parecia que tinha conseguido tirar uma espinha que estava me incomodando, mas angustiado por ter problemas de relacionamento com os outros. Era uma incógnita, estava sem emprego morando em nossa casa sem planos futuros mas tinha recebido uma boa quantia na rescisão com a empresa. Planejamos com Augusta abrir uma firma de alimentação para fornecer refeições nas industrias, eu tinha experiência e ela sendo nutricionista tínhamos tudo para dar certo, consegui até que bastante rapidamente o primeiro contrato numa firma em Alphaville na grande São Paulo, que ótimo para nós, estávamos muito contentes. De manhã as crianças iam à escola em Pinheiros, nós dois íamos até o cliente, e no fim da tarde voltávamos juntos à casa passando antes pela escola buscar os meninos. Foi uma boa época em todos os sentidos, mas eu falhei em me acomodar e não sair à procura de novos clientes, na verdade conseguimos mais um contrato mas não era o suficiente. Nessa época houve uma crise política e o confisco do dinheiro em circulação por parte do governo (da noite para o dia) de todos os brasileiros sem exceção, todas as pessoas físicas estavam sem liquidez e as firmas também, era uma loucura e não demorou muito em perdermos os clientes por falta de dinheiro destes. Uma amiga de Augusta que era síndica no condomínio onde morava num bairro residencial perto da avenida Paulista, nos propôs que se quiséssemos poderíamos administrar a lanchonete do condomínio, eram muitos apartamentos e moradores, havia um centro de lazer e esportivo muito grande e os fins de semana o movimento era grande, concordamos em fazer o negocio. Foram alguns meses com muito trabalho mas com inúmeros problemas porque muitos clientes ou seus filhos assinavam as despesas na lanchonete e depois era difícil receber porque os pais não concordavam com as consumações dos filhos na lanchonete. Os controles de dinheiro eram complicados pois não dava para ficar de olho em tudo, pelos horários e feriados que trabalhávamos não compensavam nem de longe os resultados financeiros.Ficamos com a firma aberta por mais de um ano e desistimos, foram os anos 1990/1991 muito cansativos e sem resultados que merecessem a pena.

Um antigo colega de trabalho da empresa de alimentação e restaurantes coletivos entrou em contato comigo, ele estava gerenciando uma filial regional em Salvador na Bahia, tinham-no procurado para gerenciar outra firma no mesmo ramo de atividade mas voltada para “off-shore”, ou seja o principal cliente era uma empresa nacional de perfuração e exploração de petróleo, em plataformas marítimas ou em terra no continente, meu amigo indicou meu nome para ocupar o cargo, fiz uma serie de entrevistas e fui contratado pela empresa como diretor de operações a nível nacional para todo o Brasil. O escritório que me contratou ficava em São Paulo, porém o dono da empresa assim como toda a administração estava no Rio de Janeiro, os clientes estavam espalhados por todo o território nacional mas principalmente na bacia de Campos (Macaé), Salvador, Aracaju, Mossoró e Natal. Trabalhei somente três meses nesta firma, na verdade passava mais tempo viajando de avião do que propriamente nos escritórios das diversas filiais, montei uma estrutura operacional nomeando gerentes regionais para as diversas áreas geográficas, passei um bom tempo em Rio Grande do Norte onde estava iniciando uma nova operação em Mossoró, o calor era demais, era a primeira vez em minha vida que estava num lugar tão quente, as sete da manhã a temperatura era aproximadamente de quarenta graus centígrados, e ao meio dia acima de quarenta e cinco graus, lembro que na estrada via o asfalto ferver, com certeza dava tranqüilamente para estrelar um ovo no chão, ainda suportava razoavelmente por ser gringo, quando vinham diretores de São Paulo não saiam do escritório aonde haviam aparelhos de ar condicionado. Esta firma não era nada seria, não tinha nada a ver com a multinacional francesa onde tinha trabalhado, faltava honestidade perante os funcionários e fornecedores, precisava contar historias sem pés nem cabeça para que tanto funcionários como fornecedores continuassem trabalhando e fornecendo, eu tinha credibilidade pelo meu modo de falar e negociar mas não tinha sustentação por parte da firma que não se importava em ter o nome sujo na praça, foi uma oportunidade para viajar bastante e conhecer um pouco deste imenso país, fui até passar vinte quatro horas numa plataforma em alto mar a cinqüenta minutos de helicóptero do continente, tive muito medo mas por dentro da plataforma parecia um hotel cinco estrelas, na hora de partir e subir no heliporto precisei de duas pessoas para assegurar para eu não cair, a altura em cima do mar era tão alta que minhas pernas não me obedeciam parecia que ia desmaiar, ali na plataforma era rigorosamente proibida a ingestão de bebida alcoólica, quando regressamos a Macaé e cheguei ao hotel fui desesperadamente ao frigobar para tomar algumas cervejas e whiskys. Saí numa boa da firma e voltei a São Paulo.

Voltava tudo a estaca zero, Augusta procurou um emprego para que pelo menos houvesse alguma entrada de dinheiro em nosso lar, tínhamos economias para viver alguns tempos mas tínhamos que recomeçar tudo novamente. Eu não queria voltar a trabalhar novamente para um patrão, fiz alguns contatos pelo telefone mas a crise estava brava, não consegui nenhuma colocação. Apareceu uma oportunidade, soube que uma multinacional francesa no ramo de laticínios e derivados estava nomeando distribuidores institucionais para vendas diretas aos consumidores e grêmios de empresas com preços inferiores aos dos supermercados, por coincidência conhecia o diretor de vendas da empresa com o qual tive uma reunião e me dissera que se eu quisesse podia ser um distribuidor sem problema desde que tivesse as instalações mínimas para tal, como por exemplo câmara fria e transporte refrigerado para os produtos. Conheci alguém no bairro onde moro que estava interessado no negocio e que tinha já as instalações necessárias por ser distribuidor de frios, era um japonês o Lauro que imediatamente quis conversar a respeito. Montamos logo a sociedade cujo nome eu tinha escolhido como “La Ferme” que em francês quer dizer “A Fazenda”, quem tratou das papeladas para abertura da firma foi o contador que já tratava da minha firma de refeições industriais, mas o Lauro não a pós em nome dele e sim de um funcionário dele (laranja), nem desconfiei nem questionei o porque estava fazendo desta forma, mas com o decorrer do tempo percebi que a distribuidora de frios estava emitindo notas frias contra a distribuidora de laticínios com o objetivo descontar duplicatas, quando percebi o que estava fazendo comuniquei ao meu contador o qual intimou-o a transferir a metade da firma para Augusta ou denuncia-lo e abrir um processo contra ele, nem se defendeu sequer, pagou os títulos no banco e assinou um documento passando a parte do “laranja” para o nome de Augusta, ainda precisou me ressarcir os danos e levei sua câmara frigorífica e vários móveis e equipamentos de escritório, a partir daí mudamos de local, fizemos alteração do estatuto da firma e começamos vida nova mas desta vez sem sócios, Augusta e eu éramos os únicos proprietários da firma. O mercado estava ruim e em crise, o aluguel bastante alto, fizemos alguns negócios que renderam bons lucros mas no global dava prejuízo, contratei um gerente de vendas que não conseguiu cumprir as metas, posteriormente conheci o Célio que quis investir algum dinheiro como sócio, mas o negocio não foi para frente. A essas alturas Augusta precisou arrumar um emprego e eu estava afundando cada vez mais, o álcool não me ajudou e sofria demais, estava perdendo totalmente o domínio e o controle de minha vida, estava desesperado e na reta final. Precisei me desfazer do gerente de vendas e mudar para outro local menor para economizar despesas fixas, o Célio sem nenhuma queixa preferiu voltar a trabalhar e foi contratado num renomado banco para ampliar negócios e parcerias do banco em outras atividades. Já em local novo fiquei somente com o motorista e tentei fazer algumas vendas sozinho, e ele entregava as mercadorias, eu não estava mais indo à firma, era um pequeno local com a câmara fria para estoque de mercadorias que normalmente ficava fechado, o motorista levava ou ia buscar mercadorias para entregas aos clientes, funcionou assim uns seis meses até o dia que o motorista acabou com o motor da Kombi por falta de manutenção e descuido por parte dele, preferi manda-lo embora enquanto o veículo ficava parado na frente de minha casa com o motor quebrado, tive que paralisar as atividades da “La Ferme” pagando ainda os alugueis todo mês. Dei me por perdido enquanto ao negocio de distribuição, ficava durante o dia ocioso e começando a beber diariamente a partir do meio dia. Uma vez Augusta esqueceu de fazer as compras durante o fim de semana como era habitual no supermercado das bebidas alcoólicas e cervejas, eu não estava mais saindo de casa e na terça feira faltou bebida na dispensa para meu consumo, comecei a ficar nervoso e ansioso, de manhã cedo não sabia como eu faria ao meio dia para beber se não havia nada em casa, pensei que a única solução seria pedir ao meu filho Xavier quando voltasse da escola que fosse rapidinho de bicicleta ate o supermercadinho e comprasse para mim, fiquei me remoendo durante toda a manhã, precisava beber ao meio dia mas se pudesse controlar à compulsão o melhor seria não pedir nada ao Xavier, naquele momento lembrei-me de quando ele nasceu em janeiro de 1978, a alegria que eu tive e de como me senti realizado, tinha feito inúmeros planos para o meu futuro e o dele, sabia que queria ser um pai bem sucedido e exemplar, que pudesse dar a maior segurança aos meus filhos, queria ser um pai e esposo equilibrado e feliz, mas naquele momento da terça feira de manhã a historia era bem outra, tinha-se passado já quatorze anos bebendo diariamente e me encontrava diante uma difícil escolha, iria ou não pedir ao Xavier que fosse comprar uma garrafa de pinga?. O Xavier e o Alain chegaram da escola as treze horas, nervoso fiquei rodando em torno da mesa da sala de jantar, o que fazer?, chamei o Xavier e dissera lhe “escuta, a mamãe esqueceu de comprar no sábado passado pinga para fazer caipirinha, será que você daria um pulo até o supermercadinho para comprar uma garrafa?”, na verdade eu bebia a pinga pura mas por causa do meu orgulho achei interessante e mais elegante comentar sobre a caipirinha, ele olhou bem nos meus olhos e me disse: “pode deixar pai, vou comprar, eu entendo”. A resposta do Xavier me deixou envergonhado, muito envergonhado, percebi que a decepção estava marcada no seu bonito rosto, eu tinha falhado e chegado a ponto da perda total do controle sobre mim mesmo e sobre meu modo de beber, senti-me no momento como se estivesse sendo fuzilado por um pelotão de execução, senti que estava morrendo naquele instante, eu dependia da bebida alcoólica para viver, precisava beber para viver, não conseguia mais não beber e sofria por isso, era um circulo vicioso, bebia para não sofrer e sofria porque bebia, e isso diariamente.

Passaram- se alguns meses neste estilo de vida, Augusta trabalhando fora de casa, eu com a firma ainda aberta com despesas e sem faturar nada, e bebendo como sempre o fiz, ou seja, diariamente, não bebia mais whisky escocês doze anos nem whisky nacional nem do Paraguai, pela quantidade que precisava beber somente dava para beber pinga Cinqüenta e Um ou Velho Barreiro. Também não saia de casa por causa da fobia. Durante este período já na reta final do meu alcoolismo andei procurando botar todas as papeladas e documentos em ordem, escrituras, seguros, impostos etc., não sabia se iria viver por muito tempo e queria que Augusta não ficasse atrapalhada a respeito dos documentos, pois era eu quem sempre tinha administrado nosso lar como um verdadeiro “chefão”. Meu desespero era tanto que um dia durante o jantar disse que estava farto por ter tanto percebimento e sensibilidade com as coisas que me cercavam; desejava ser analfabeto, pedreiro e pobre, esta era minha receita para não sofrer, procurava uma saída, eis a verdade porque nunca tive essa bola toda nem fui rico, era somente uma expressão que procurava manifestar querendo ser uma pessoa mais simples e menos complicada.

Em outubro de 1992 fomos convidados a um casamento de amigos quase parentes da família de Augusta, era um convite irrecusável e eu deveria ir também ao casamento, era o sábado dia dezessete a noite, primeiro seria o casamento na igreja e depois iríamos ao jantar para os familiares e amigos mais íntimos. Naquele dia eu não estava nada bem e deprimido como quase todos os dias, era um sacrifício para eu ter que sair de casa para ir ao casamento, teria preferido que como outras vezes Augusta tivesse ido sozinha com o Xavier e o Alain, mas conhecia e gostava muito do Zeca, pai da moça que ia casar. Eu como de costume tinha bebido desde o meio dia, antes de ir ao casamento eu e Augusta havíamos tido uma conversa onde me queixei que ela só se importava com seu trabalho e ela me disse que meu verdadeiro problema era a branquinha da garrafa, a tardezinha e por ultimo me arrumei e fomos os quatro a igreja onde ia ter o casamento, não passei nada bem e me senti muito esquisito e triste, depois do casamento fomos até o buffet para o jantar no bairro de Higienópolis aqui em São Paulo, continuava não estando bem, mas pensei que após alguns whiskys poderia estar mais relaxado e melhor, infelizmente não foi o que aconteceu, bem ao contrario comecei a me sentir cada vez pior, por sorte colocaram os convidados em mesas redondas de nove lugares e em nossa mesa estavam minha sogra, meu cunhado Elpidio e minha cunhada Fina, meu sobrinho Helio e a namorada, o Xavier, Alain, Augusta e eu, pensei que seria menos mal porque não estava a fim de conversar com ninguém e aí pelo menos todos eram parentes e não tinha nenhuma obrigação de ser simpático naquele momento de depressão, o Xavier estava sentado bem na minha frente, ele vestia um paletó meu e umas calças minhas, o Alain não vestia sequer paletó porque os meus não serviam para ele, pela situação e o momento pela qual eu estava passando aquele quadro me deixou ainda mais frustrado e abatido, tomei conhecimento e tive a consciência do meu fracasso na vida, todos meus sonhos e projetos tinham ido água abaixo. Meu copo long drinque andava sempre cheio e eu cada vez pior, Augusta percebeu que eu não estava legal e ficou muito preocupada, ela sugeriu que o Xavier descesse comigo ao jardim do buffet para tomar um pouco de ar fresco, aceitei a sugestão e descemos tomar um pouco de ar puro, o Xavier perguntou-me o que estava acontecendo, eu disfarcei e não lhe disse a verdade de como me estava sentindo, não queria decepcioná-lo, subimos uns quinze minutos depois e sentamo-nos novamente na mesa, o jantar estava servido e eu não consegui comer absolutamente nada, mas continuava bebendo devagar, sei que chamei a atenção e alguns convidados que me conheciam ficaram preocupados, repentinamente senti uma mão amiga em cima do meu ombro direito, era o senhor Horacio pai de duas amigas de infância de Augusta, a Cila e a Lídia, ele sussurrou no meu ouvido algumas palavras bondosas, dissera-me “não fiques triste Xavier, a vida é feita de altos e baixos, dias melhores estão por vir, não sei porque estás triste nem precisas me dizer, sei que tua família está longe na França, não sei se teu negócio está dando certo, mas, olha que esposa e filhos bonitos você tem, tenha fé que tudo vai mudar para melhor, nós aqui te amamos muito, Xavier levanta esse astral”. Estas palavras me deixaram extremamente emocionado e tocaram-me profundamente, a partir desse dia nunca mais esqueci destas palavras amigas do senhor Horacio passei a considerá-lo como um pai/mentor e amigo no Brasil.

As palavras do senhor Horacio me reconfortaram de certo modo, mas minha tristeza continuava, acho que essas palavras deram-me uma esperança que poderia haver uma luz no fim do túnel, reconheci minha derrota e talvez poderia estar disposto a entregar os pontos, não seria uma tarefa fácil. Quando finalizou o jantar voltamos os quatro para casa, durante o trajeto de volta me encontrava ainda pior, apesar do que tinha bebido aquele dia estava consciente e minhas idéias muito claras por causa dos sentimentos e verdades que teria descoberto sobre mim mesmo, as palavras do senhor Horacio tinham-me certamente influenciado, e muito. Voltávamos para casa e eu chorava igual a uma criança pequena, cheguei até a soluçar, Augusta e os filhos cada vez mais inquietos e preocupados. Chegamos finalmente em casa, deveriam ser uma hora da madrugada, Augusta e os filhos foram logo dormir, eu disse à Augusta que queria ficar na sala para refletir e meditar um pouco, pois estava sem sono. Fiquei sentado numa poltrona da sala de estar de frente à lareira, não quis mais beber porque já tinha bebido mais do necessário aquele dia, queria ficar sozinho e pensar, tinha a intuição que iria acontecer algo e queria que acontecesse, estava exaustivamente cansado, sentia minha cabeça muito pesada de tanto pensar e minhas emoções andavam a mil. Pensei muito no acontecido durante o casamento, fiz uma avaliação sobre minha vida, estava cansado de tudo, lembrei-me das bondosas palavras do senhor Horacio, levantei minha cabeça para o teto inclinado da sala e fiquei olhando um dos alto-falantes que estava pendurado na parede a seis metros do chão, pensei de que maneira poderia me livrar de meus problemas e principalmente de meu modo de beber, sabia que tinha brigado com Deus quando tinha quatorze anos e que fui morar na França e comecei a solucionar minha vida por mim mesmo, será que esse Deus existia mesmo?, não vi naquele momento outra alternativa senão clamar por ajuda a quem quer que fosse, que existisse ou não existisse, eu não tinha mais nada a perder porque já tinha perdido tudo, não controlava mais minha vida nem minha vontade, tinha-me tornado um escravo do álcool, já fazia tempo que não era mais o dono do meu nariz, de repente falei em voz alta olhando para o alto-falante, “O Deus, eu fui teu amigo quando era pequeno, se verdadeiramente existes faz algo por mim, estou morrendo e sofrendo e, não quero nem morrer nem sofrer mais”. De repente senti um grande alivio dentro de mim, meu peito estava inchado de um bem estar indescritível, percebi que estava vivendo um momento de paz e serenidade, estava vivendo uma experiência sem nome. Fui dormir aproximadamente às três horas da madrugada.

Após esse dia, tornei-me consciente de meu problema e passei a aceitá-lo, continuava bebendo igual, mas algo dentro de mim deixava aberta uma porta para ser ajudado, quando comentamos com Augusta sobre o casamento e o acontecido durante o jantar, veio a tona e conversamos sobre meu modo de beber, pela primeira vez consenti que falássemos deste assunto durante o almoço, tornei-me mais tolerante e admiti que poderia sim, ter um problema com o álcool, ela me propôs que tentássemos pedir ajuda a alguém para solucionar o problema da bebida, eu não via como poderia haver uma solução mas dissera lhe que tudo bem, pelo menos tentar não custava nada.

“No momento que estou escrevendo, fim de março de 2001, o senhor Horacio veio a falecer, sua filha nos ligou contando a triste noticia, eu fiquei muito triste e não tive suficiente coragem para ir vê-lo no velório nem de ir ao enterro, prefiro guarda-lo na memória daquelas palavras no dia do casamento em 1992, não quero deixar de expressar aqui minha gratidão por aquele que um dia deu-me a esperança de que meu sofrimento poderia terminar, tenho certeza que ele se encontra agora no lugar que merece, gostaria que quando chegue minha hora possamos estar novamente juntos”.

Algum tempo antes Augusta já havia procurado o Al-Anon, depois como minha sogra quebrou o pé ela deixou de ir. A partir do dia que conversei com Augusta, eu lhe pedi que fosse procurar aquelas senhoras, mas ela me disse que lá era para os familiares, que eu precisava do A.A. e ela foi lá buscar ajuda. Em fim eu tinha admitido e deixado espaço para conversar a respeito, não estava mais negando minha condição de doente alcoólico. Sabia que não podia beber mais porque acabaria ficando louco ou então mais dia ou menos dia eu não acordaria mais, todo dia de manhã quando ia fazer minhas necessidades no banheiro perdia muito sangue e ficava assustado, não ia ao medico por medo e colocava um absorvente dentro de minhas cuecas para absorver o sangue até que parasse, já me encontrava na fase de escutar barulhos e ver coisas que não existiam, a noite aguardava o sono chegar para ir pra cama e cair nela, tinha queixas de Augusta sobre meus roncos durante a noite, era por isso que quando acordava de manhã ela não estava em nossa cama simplesmente tinha ido ao quarto de um dos filhos para poder dormir e não ficar acordada a noite toda por causa do barulho provocado pelos meus roncos, bem parecidos com o barulho do “Concorde” conforme ela me explicava no dia seguinte, eu ficava envergonhado, mas para mim não havia nenhuma solução.

Lembro-me de ter consultado nas primeiras paginas da guia telefônica e ligado para a Associação Anti Alcoólica e também para Alcoólicos Anônimos para pedir informações sobre onde poderia me dirigir para tentar parar de beber, havendo admitido minha derrota estava prestes a tentar qualquer coisa para não sofrer mais. No Al-Anon tinham lhe sugerido de continuar indo às reuniões do grupo para tratar dela mesmo e estar de bem com a vida procurando uma vida melhor, tudo por causa daqueles que convivem com um alcoólatra acabam sendo tão doentes quanto o próprio bebedor problema, e que para pedir ajuda para mim ela poderia ir até o grupo de A.A., e que também havia um em nosso bairro. Numa tarde de sábado ela foi à reunião de A.A. onde foi muito bem recebida, foi lhe oferecida a palavra durante a reunião e ela disse que estava ali por minha causa, que eu era muito orgulhoso para ir até lá para pedir ajuda e o quê poderia ser feito para me ajudar a parar de beber ou pelo menos beber menos quantidade. Prontamente algumas pessoas membros de A.A. daquele grupo se dispuseram a me fazer uma visita e falar sobre o assunto desde que eu aceitasse tal visita e estivesse disposto a falar sobre o problema. Como Augusta me conhecia muito bem e não sabia se eu aceitaria a proposta, ela ficou com o numero de telefone de um dos membros de A.A. deixando combinado que se eu topasse ela ligaria para ele dando uma satisfação e caso positivo confirmando dia e hora para a visita em nossa residência.

Augusta voltou para casa e me contou o acontecido na visita que ela fez naquele sábado, dissera-me que tinha visitado o A.A. e que tinha gostado muito, perguntou-me se estaria disposto a receber alguém do A.A. para conversar a respeito do problema, uma ou duas pessoas poderiam me visitar de preferência num sábado de manhã por volta das dez horas se eu concordasse é claro, percebi com toda clareza que havia no rosto dela uma grande expectativa esperando que minha resposta fosse “sim”, diante tal decisão e tendo que dar a resposta na hora, parei um instante para pensar e fiz questão de refletir direitinho sobre o que iria responder, estava novamente com medo, não tinha certeza que fosse possível para eu viver sem beber, acabei dizendo a ela “tudo bem, combine então com eles”. Ela marcou por telefone com o Henrique para me visitar às dez horas da manhã do dia trinta e um de outubro, uma data que dificilmente poderei esquecer. Na sexta-feira dia trinta Augusta lembrou-me “amanhã às dez horas vem o senhor Henrique, esta lembrado?”, respondi que sabia e mais nada.

Naquele sábado Augusta me acordou às nove da manhã, justamente sendo o fim de semana que antecedia finados minha sogra estava passando o fim de semana em casa para poder ir junto com ela ao cemitério que não fica muito longe de minha residência, para visitar o tumulo da família onde esta sepultado meu sogro. Eu acordei bem devagar, tomei café e fui ao banheiro, tomei banho e quando estava prestes a fazer a barba escutei tocar a campainha, fui ver no dormitório que horas eram no meu radio relógio e exatamente eram as dez em ponto, nem um minuto a mais nem a menos, escutei vozes do lado de fora, era Augusta que estava cumprimentando o Henrique enquanto o fazia entrar em casa. Fiquei irritado por causa da pontualidade, parecia que estivessem me pressionando e tinha pavor disso, enquanto fazia a barba escutava no andar térreo que estavam minha sogra e Augusta oferecendo café e biscoitos ao Henrique enquanto me aguardava. Nos meus botões fiquei pensando comigo mesmo enquanto fazia a barba; quem será esse cara?, coitado, veio até aqui para tentar me convencer que pare de beber e ele não imagina o quanto já bebi durante toda minha vida e o quanto gosto ainda de tomar umas e outras, esse cara não deve entender nada de bebida deve ser adepto de alguma religião, deve estar de terno escuro e gravata com a bíblia embaixo do braço querendo me converter para ir a alguma igreja e, se for isso aí não estou a fim de aturar esse cara nem cinco minutos, digo lhe que tenho um compromisso e o mando embora. Desci as escadas e no segundo lance que dava direto à sala deu para avistar o Henrique em questão, estava ali comodamente instalado tomando meu café e comendo meus biscoitos, assim que ele me percebeu ficou em pe eu fiquei parado no penúltimo degrau e olhamo-nos os dois fixamente nos olhos, a distancia que nos separava era aproximadamente de uns seis metros, como sempre tive muitos preconceitos preferi observa-lo de longe para ver se ia com sua cara, tinha uma boa aparência e de bastante simplicidade, tinha mais de um metro e oitenta, forte e corpulento, bem vestido porém sem sofisticação, ele vestia um boné, Augusta nos apresentou e sentei junto a ele para tomar um cafezinho e fumar um cigarro. Quando olhei para ele achei-o simpático, delicado, educado e misterioso, uns cinqüenta e cinco anos de idade, a primeira vista não pensei que ele fosse um alcoólatra, eu precisava reconhecer que ele não era nada de tudo o que tinha pensado que poderia ser enquanto estava fazendo a barba, não vestia terno, não tinha cara fechada, não carregava nenhuma bíblia e ainda era simpático, posso dizer que fui logo com sua cara o que me deixou bastante a vontade para falarmos, seu olhar era bondoso e parecia estar em paz com ele mesmo, fiquei bastante impressionado porque me causou atração e queria ser e ter a aparência que ele tinha. Passou uma empatia muito boa entre nós dois, muito educadamente e diplomaticamente me dissera que estava ali a pedido de Augusta para conversar sobre alcoolismo e que eu havia concordado em recebê-lo, não me fez perguntas nem discursos, deixou-me a vontade para que eu falasse, ele não dava nenhuma opinião sobre mim, nem elogios nem críticas, limitou-se a dizer que ele era um alcoólatra e que estava sóbrio há onze anos sem beber nenhuma bebida com álcool, que pertencia a Irmandade de Alcoólicos Anônimos e que tinha dado certo para ele. Percebi logo que era uma pessoa “especial” não me interrompia e escutava atentamente, acreditei nas palavras dele porque seu modo de expressar e “sentir as coisas” era bem parecido com o meu, estávamos falando a mesma linguagem e não conseguia entender “como” ele tinha conseguido parar de beber e estar sóbrio, somente deu-me as informações necessárias porque o tema era muito amplo, tão amplo como a própria doença, primeiro eu falei um pouco sobre mim sem ser interrompido para que pudesse entender até onde tinha chegado, depois ele falou-me um pouco sobre a vida dele que por coincidência havia fatos e circunstancias bem parecidas entre nós dois, nunca nos havíamos encontrado ou visto antes e tínhamos vivido coisas semelhantes, conforme o tempo passava achava nossa conversa interessante, depois me presenteou com um livro sobre a historia de um alcoólatra, e finalmente me falou do programa de recuperação de A.A. e os “Doze Passos” sugeridos para parar de beber, a informação e complexidade era tanta que minha cabeça começava a ferver, aliás, era um momento tão importante que me deixava até ansioso, seria que eu conseguiria parar de beber como o Henrique?. Convidou-me para assistir naquele mesmo sábado a uma reunião de A.A. no bairro e no grupo que ele freqüentava, com um pe atrás dissera lhe que não dava porque eu não estava dirigindo mais o meu carro por causa de fobia e também porque não gostava de ser encostado e pressionado na hora contra a parede, preferia pensar e decidir com calma durante a semana e dar lhe uma resposta a outra hora, afinal havia muito tempo pela frente, mas o Henrique me respondeu que não me preocupasse para chegar até o grupo de A.A. porque ele se propunha me apanhar em casa quinze minutos antes da reunião e me trazer de volta após o termino, a reunião era às dezesseis horas e terminava às dezoito, achei que ele estava me fazendo a proposta no sentido de me ajudar, concordei com ele e combinamos que passaria me buscar em casa às quinze horas e quarenta minutos. Ele saiu de casa exatamente ao meio dia, tínhamos conversado durante duas horas, durante nossa conversa Augusta e minha sogra tinham ido até o cemitério para limpar e arrumar o túmulo onde repousava meu sogro, elas voltaram em torno da uma da tarde. O Henrique tinha saído de casa justamente no horário que eu costumava começar a beber, e foi o que fiz porque nada tinha mudado a não ser uma simples conversa com esse cara simpático, sentei na poltrona tomando umas pingas e refletindo sobre a visita, já tinha assumido o compromisso de ir à reunião de A.A. à tarde e fiquei pensando que provavelmente o Henrique saindo de minha casa poderia ter ido avisar toda sua turma explicando que na reunião da tarde iria trazer um novo “freguês” e desta vez nada mais nada menos que um “gringo”, que seguramente iriam planejar entre eles alguma estratégia para me convencer a ficar lá com eles, pensei também durante alguns instantes que poderiam seu um bando de frustrados convertidos e que poderiam ter perdido suas personalidades sendo uns “João ninguém”.

Quando Augusta e minha sogra chegaram em casa, avisei-a que precisava almoçar logo porque o Henrique ia passar para me levar à reunião de A.A., preparou o almoço e almoçamos para não estar atrasado, pensei que se não gostasse do que iria ver na reunião não aconteceria nada senão que não voltaria mais, e pronto. Na hora combinada o Henrique passou em casa me buscar, fomos até o grupo de A.A., confesso que estava um pouco nervoso e ansioso porque não sabia aonde tudo isso iria me levar, chegamos ao grupo que justamente estava localizado ao lado de uma favela, na mesma casa (tipo casarão térreo) havia um lar para deficientes físicos, ou seja, bastantes internos sentados em cadeiras de rodas, a sala principal logo na entrada tinha uns sessenta metros quadrados e bem no meio uma mesa de pingue-pongue, meu nervosismo era tal que nem me preocupei em saber o que fazia ali a mesa se os deficientes não podiam jogar, fui apresentado a alguns deficientes e também aos membros de A.A. que iam participar da reunião. Na sala havia uma grande mesa arrumada com uma toalha azul marinho e o logotipo de A.A., sobre a mesa bastantes livros e folhetos, um relógio que me lembrou aquele que minha psicanalista no passado utilizava para cronometrar meu tempo e passar a fatura depois, uma campainha de mesa e um livro de presença com o nome das pessoas, naquele dia havia quatorze pessoas no total na reunião, já incluídos o Henrique e eu, na mesa sentaria o coordenador e do outro lado da mesa haviam varias fileiras de cadeiras bem arrumadas e alinhadas para sentarem os participantes da reunião, sobre a mesa de pingue-pongue havia uma garrafa térmica de café, açucareiro, colheres e copinhos descartáveis, biscoitos e um bolo, no fundo da sala dependurados na parede haviam três cartazes, no meio lia-se “Oração da Serenidade”, e em ambos os lados da oração um cartaz com “Os Doze Passos” e outro com “ As Doze Tradições”. Estava tudo muito bem organizado e bem apresentado, naquele dia quem ia coordenar a reunião era uma mulher, às dezesseis horas em ponto deu inicio à reunião. Nervoso e suado estava ansioso por ver o que iriam contar e verificar se tinham se entendido previamente com o Henrique sobre o que iriam falar, pesava vinte quilos a mais do meu peso normal, não estava gordo estava “inchado” por causa da bebida, iniciaram a reunião tinha um roteiro pré-escrito que a coordenadora lia e percebi que chamava ao publico de “companheiros”, ela iniciou convidando à leitura da oração dependurada na parede que dizia assim:

“Concedei-nos Senhor, a Serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar, Coragem para modificar aquelas que podemos e Sabedoria para distinguir umas das outras”.

A coordenadora chamava cada companheiro pelo seu nome e o convidava para fazer uso da palavra, a pessoa se aproximava da mesa e sentava numa cadeira de frente aos participantes, todos começaram seus depoimentos dizendo “meu nome é fulano de tal, e sou um alcoólatra em recuperação”, a coordenadora marcava dez minutos no relógio até tocar a campainha que sinalizava o fim do tempo concedido, durante a fala das pessoas ninguém interrompia, o silencio era total, nas falas, os companheiros expunham como era seu passado alcoólico e até onde chegou seu “fundo do poço”, e como estavam vivendo agora sua recuperação longe dos bares e da bebida alcoólica, alguns deles tinham perdido tudo na vida, mas nenhum deles era igual ao outro, cada um tinha sofrido as conseqüências do alcoolismo à sua maneira. Percebi que o que estavam falando ali era minha vida e minha historia, mesmo que as circunstâncias fossem diferentes das minhas o problema principal e a forma de sentir as coisas eram igual a mim, não era possível que houvessem montado um teatrinho para minha chegada, afinal ninguém ali estava se importando no que eu pudesse pensar, falavam com o coração sem perder a razão, falavam coisa com coisa e achei-os muito inteligentes, parecia haver “algo” no ambiente que não dava muito bem para entender, eu que sempre tive preconceitos sabia que lá não havia “macumba”, era prazeroso escutar alguém falando e os outros escutando, dava uma sensação de paz e bem estar, o espírito de cordialidade era grande. Após a primeira hora de reunião com os depoimentos e leitura de alguns trechos de literatura do A.A., veio o intervalo de dez minutos para relaxar um pouco conversar com as pessoas e tomar um cafezinho acompanhado de um pedaço de bolo, alguns iam até o banheiro porque durante a reunião ninguém queria perder o que o companheiro que fazia seu depoimento estava falando. Verifiquei que ninguém estava curioso em saber quem eu era, ninguém me perguntou meu nome completo, disseram-me que como queria ser chamado pelos companheiros, que se eu quisesse poderia dar um pseudônimo, ninguém me perguntou onde eu morava ou qual era minha profissão, estavam ali para fazer sua recuperação e fortalecer seu propósito de ficar sóbrios nas próximas vinte e quatro horas, entretanto verifiquei que se aproximaram de mim no intuito de me dar uma palavra amiga demonstrando querer compartilhar meu problema e querendo me ajudar, todos sabiam que eu não estava ali porque tivesse uma unha encravada no pé, meu problema era o álcool igual a eles. Na segunda parte da reunião continuaram os depoimentos, havia muita espiritualidade nos relatos ninguém falava alto nem grosso, pareciam felizes e gratos por estarem sóbrios, comecei a pensar que devia haver algo por trás disso tudo, seria que tomavam algum remédio?, seria que os faziam assinar algum compromisso por escrito?, seria que os obrigavam a jurar na frente de todos que não voltariam a beber álcool?, os obrigariam a assistir ao culto de alguma religião?, e quanto seria que cobrariam por tudo isso?, a resposta era muito simples: “não estavam obrigados a nada, não tinham compromisso nenhum com ninguém a não ser com eles mesmos”, e tem mais, ninguém estava proibido em voltar a beber, foi demais para mim, eu não estava acreditando no que estava escutando, fiquei bastante aliviado em tomar conhecimento desses princípios. No decorrer da reunião estava intrigado e queria analisar cada detalhe do que estava se passando, me chamaram a atenção alguns cartazes dependurados nas paredes, curtos, simples e cheios de sabedoria cujos dizeres eram; Evite o primeiro gole, O que você vê e ouve aqui quando sair deixe que fique aqui, Só por 24 horas, O silencio faz parte da recuperação, Vá com calma más vá, Viva e deixe viver, e outros mais.

A coordenadora dissera que eu era a pessoa mais importante na sala naquele dia, leu um trecho do seu roteiro e fez o convite para que se alguém presente na sala quisesse ingressar na Irmandade o fizesse porque o momento era aquele, bastava levantar o braço e se aproximar da mesa para pegar uma ficha de ingresso e se quiser escolher um padrinho que o ajudasse e guiasse nos primeiros passos na Irmandade, poderia também escolhe-lo naquele momento. Lembrei-me naquele momento por todo o que tinha passado durante minha vida, as tentativas de parar de beber, o sofrimento, a psicanalista, o centro espírita, disse para mim mesmo “Xavier, esta é a ultima carta na sua manga, ou pega ou morre”, de imediato levantei o braço e me aproximei da mesa, toda minha camisa estava molhada de suor estava muito nervoso e emocionado, perguntava-me “será que vai dar certo?, será que eu consigo?, mas como vou fazer?”. A coordenadora me perguntou se queria fazer uso da palavra para dar meu depoimento na cadeira e respondi lhe que não porque estava muito emocionado e as palavras não iriam sair, somente agradeci a todos e disse que esperava que desse certo para mim, seguidamente me perguntou se queria ou gostaria de escolher um padrinho na Irmandade que por acaso me houvesse identificado com ele, respondi que sim, e escolhi o Henrique para padrinho que imediatamente me entregou uma ficha simbólica com o logotipo de A.A., um cartão de ingresso com o nome do grupo, meu nome “Xavier” e alguns folhetos informativos sobre Alcoólicos Anônimos. Voltei para meu lugar e ainda lembro que o assento da cadeira estava sujo de sangue, seguramente porque o absorvente estava vazando. As reuniões daquele grupo eram nas quartas feiras às vinte horas e aos sábados às dezesseis horas, fui convidado a voltar e eu disse que talvez voltaria no sábado seguinte. A reunião terminou e o Henrique me levou para casa. Contei à Augusta como tinha sido a reunião, tive uma boa impressão mas ainda estava curioso em saber “como” poderia conseguir não beber.

Xavier T
Enviado por Xavier T em 07/06/2009
Código do texto: T1636648
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