CRUZ E SOUZA
O canto do Cisne Negro

   Um dos poucos simbolistas de primeira hora no Brasil - que captou a ideia poética que tomava conta dos círculos literários europeus - é, ao mesmo tempo, um dos casos humanos mais raros na literatura mundial. Esse poeta chamava-se João da Cruz e Sousa, nascido em 24 de novembro de 1861, na cidade de Desterro - atual Florianópolis, em Santa Catarina. Cruz e Sousa foi adotado por um casal de brancos abastados, Guilherme e Clarinda Xavier de Sousa, dos quais recebeu o sobrenome, mas era filho ex-escravos que trabalhavam para a família: o mestre-pedreiro escravo Guilherme e a lavadeira, Carolina.
   Em 36 anos de vida, passando por episódios de sofrimento e sem alcançar a merecida notoriedade, Cruz e Sousa escreveu um capítulo à parte na literatura brasileira. Ele é considerado por especialistas um dos maiores poetas simbolistas do mundo, com uma técnica original, o uso de uma linguagem que dava valor às sensações, à sonoridade e musicalidade das palavras, e com um simbolismo por vezes complexo, mas sempre espantosamente amplo.
   Silvio Romero, um dos críticos literários mais polêmicos entre os contemporâneos de Cruz e Sousa, reconheceu a obra do poeta que surgia e não economizou elogios: “a muitos respeitos o melhor poeta que o Brasil tem produzido”. Classificou o poeta como “o nosso simbolista puro, o rei da poesia sugestiva”. Isso em um tempo de escravidão, em que pouquíssimos negros alcançavam sucesso em qualquer campo da vida brasileira, relegados que estavam à estagnação social e ao preconceito.
   O poeta paranaense Paulo Leminski, ele mesmo um grande nome da poesia brasileira, um século depois da fulgurante carreira do “Cisne Negro” ressaltou que o poeta destacava-se também pela elegância, “notado como dandy, fantasista e caprichoso em suas roupas, africanamente escandalosas” para a moda branca de origem europeia naquele período, em uma sociedade era abertamente racista.
   Cruz e Sousa, fruto desse período conturbado, buscou na introspecção simbolista de sua obra a válvula criativa para uma vida de dificuldades. Amparado pela família que o adotou e ofereceu instrução de qualidade, o escritor, ainda assim, foi combatido, desprezado, humilhado por ser uma criança negra, buscando o conhecimento que era praticamente exclusivo dos brancos.
   Aos 20 anos, já dirigia um jornal abolicionista, a Tribuna Popular - e pela agitação que provocava, foi obrigado a deixar a cidade em 1883. Trabalhou como ponto e secretário de uma companhia teatral, percorrendo todas as províncias brasileiras. De volta a Santa Catarina, foi nomeado promotor público em Laguna, mas devido ao preconceito, não pode assumir o cargo, transferindo-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou na imprensa e na Estrada de Ferro Central do Brasil.
   Não bastasse enfrentar o olhar preconceituoso da sociedade, Cruz e Sousa viveu tragédias pessoais. Perdeu os quatro filhos para a tuberculose. Sua esposa, Gavita Gonçalves, não resistiu a esses problemas e enlouqueceu. Até ser vencido pela tuberculose, em 19 de março de 1898, o “cisne negro”, autor de “Broquéis”, “Faróis” e “Últimos Sonetos”, viveu intensamente os efeitos do preconceito racial. Lutou pelo reconhecimento, que só alcançou após a morte.

(Parte da coletânea HISTÓRIAS DE POETAS, de William Mendonça. Direitos reservados.)