Auto-Retrato

 

Venho de Pernambuco. Do Recife dos carnavais de rua, meninos batendo nas latas a pedir dinheiro para a lauça. Eles cantavam uma música muito interessante. A lauça quer dinheiro, quem não dê é pirangueiro. Mascarados premiando-nos com a alegria.

Venho do pátio de São Pedro das ruela coloridas, festivas, do maracatu-nação, blocos de rua, carros alegóricos, do corso que cruzava a cidade com os carrros abertos.

O que fazia o corso ser mais contagiante era todos os carros se uniam numa batalha de confetes e serpetinas.

Venho dos sobrados iluminados pelos lampiões de gás.

As donzelas nas janelas jogavam nos pierrôs e colombinas, ovos, balde de água, água em seringas de brinquedos.

Meu pai era batuqueiro do Saberé do pátio do terço, e eu frevava uma parte do ano nos becos do pátio, ele levava-me todas as vezes que ia ensaiar.

Venho da cidade do caldo de cana, do milho cozido, das canjicas e pomonhas, das festas de roda, das festas juninas, das quadrilhas; de São Jõao, São Pedro  e Santo Antônio casamenteiro.

Criei-me no Pina, na Brasília teimosa, abraçada aos pescadores próximo ao Cassino Americano.

Quando o dia amanhecia via o quebramar e o resto eu esquecia, lá muitas vezes mergulhava entre espumas e arrecifes.

Na rua das casas de madeira, de cimento, na rua larga e comprida eu via de longe, bem longe o quebramar dando seu espetáculo, a espuma subia mais de metro, era uma grande espetáculo. 

Criei-me com os pés no chão, na brasa quente das horas. Bicho de pé, frieira ou mordida de saúva era comum.

Aves, pessoas, árvores, modas, ídolos tudo.

Eu dividia-me entre a bossa nova e Roberto Carlos, era a época da jovem guarda, mas estava nascendo Elua Regina. 

Lembro-me tambem da mini-saia, das saias balão. Não tive tempo de me procurar, então fui salva pelo mundo, no outro me fiz achar.

Aos 13 anos montei uma escola para ensinar as crianças da rua. Escola Nossa Senhora do Carmo, tive 45 alunos, a mais velha tinha a minha idade, lembro-me que seu nome era Mirtes.

A tarde estudava no antigo e grandioso Colégio Estadual de Pernambuco, essa época quem nos ensinava eram os escritores, autores dos próprios livros. Quanto a noite eu ensinava a adultos do Mobral. No Colégio Estadual de Pernambuco tinha estudo de música, francês, inglês e filosofia; além das demais. 

O professor de francês com os seus olhos azuis me enlouquecia.

Voltando a falar da noite, eu ensinava aos adultos pela Cruzada ABC, e aos sábados distribuía trigo, óleo, para os pobres da Brasília Teimosa.

Morei numa rua chamada Napoleão Laureano

E um fato precisa ser lembrado, a de um homem muito interessante, um homem chamado bigode.

Era um homem de estatura mediana, obeso, feições de índio que tinha como hobby colocar a vitrola na cabeça e sair passeando com ela pela rua, parando de casa em casa para fazer festa no seu fim de semana.

Já escrevi um livro de poesia:sinto-me poeta de semente boa só não editei ainda. 

Descrevo o mundo das coisas que me soltam.

Sou abençoada pelas palavras que invadem o papel e corre as estradas do pensamento do outro. A poesia me refaz, agora eu sou muitos. 

Comprei um apartamento popular em um condomínioo fechado, é o maior da América Latina.

Estou dentro de um labirinto social apático, moro na dor, na dor do mundo que retrato com poemas ousados, a dor do mangue, a dor das árvores, a minha própria dor, de criança que atropelou o mundo.

Moro na alegria do mundo, na revoada dos pássaros, no olhar da águia, na rosa que abre, na metamorfose da lagarta,; moro na alegria da música, do filho que germina no útero.

Hoje abri o jornal e vi que um menino de rua  que passou no concurso público do Banco do Brasil.

Então, penso na beleza das mãos que se movem em direção ao sul do azul rasgando o cético para o norte do céu da boca dos parasitas.

Aí eu digo: Alice mostra a tua raça.