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Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.


E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.


(Fernando Pessoa)

Consanguineos

Não há culpados para a dor que sinto.
É Ele, Deus, quem me dói pedindo amor
como se fora eu Sua mãe e O rejeitasse.
Se me ajudar um remédio a respirar melhor,
obteremos clemência, Ele e eu.
Jungidos como estamos em formidável parelha,
enquanto Ele não dorme eu não descanso.

                                                       (Adélia Prado)


Poeminha do contra

Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!


      (Mário Quintana)

Constelação


Olhava da vidraça
derramar-se a Via Láctea
sobre a massa das árvores.
Por causa do vidro, da transparência do ar,
ou porque me nasciam lágrimas,
tinha a impressão de que algumas estrelas
mergulhavam no rio,
outras paravam nos ramos.
Passageiros dormiam,
eu clamava por Deus
como o cachorro que sem ameaça aparente
latia desesperado na noite maravilhosa:
Ó Cordeiro de Deus, ó Cruzeiro do Sul,
ó Cordeiro, ó Cruzeiro!
Como o cão, minha língua ladrava
à aterradora beleza.

                        (Adélia Prado)


DAS UTOPIAS

Se as coisas são inatingíveis... ora!
Não é motivo para não querê-las...
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!

               (Mário Quintana)

A invenção de um modo

Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos.
Imito o andar das velhas de cadeiras duras 
e se me surpreendem, explico cheia de verdade: 
tô ensaiando. Ninguém acredita
e eu ganho uma hora de juventude.
Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,
a menina disse: "Ora, isso é pras mulheres de São Paulo" 
Fico entre montanhas, 
entre guarda e vã,
entre branco e branco,
lentes pra proteger de reverberações.
Explicação é para o corpo do morto, 
de sua alma eu sei.
Estátua na Igreja e Praça
quero extremada as duas.
Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,
vendo televisão, 
ou tirando sorte com quem vou casar. 
Porque que tudo que invento já foi dito
nos dois livros que eu li:
as escrituras de Deus, 
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.


                                                                            (Adélia Prado)


                                                Memória

 

 Amar o perdido

deixa confundido

este coração.

 

Nada pode o olvido

contra o sem sentido

apelo do Não.

 

As coisas tangíveis

tornam-se insensíveis

à palma da mão.

 

Mas as coisas findas,

muito mais que lindas,

essas ficarão.

 
                                      (Carlos Drummond de Andrade)
 

DESENCANTO

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.


(Manuel Bandeira)