Chaves para a loucura

Há biografias pouco divulgadas que revelam pessoas surpreendentes e com histórias mais ricas do que a maioria das celebridades que costuma atrair os holofotes. Uma delas, que me caiu às mãos numa reportagem secundária de uma revista de circulação nacional, mereceria ser espalhada aos quatro ventos e espelhada por quem, de fato, deseja crescer espiritualmente.

Estou falando da psiquiatra alagoana Nise da Silveira, que, se viva estivesse, completaria seu centenário de nascimento em 2005. Sem qualquer sombra de dúvida, ela é daquelas mulheres que podiam perfeitamente ser apontadas como à frente do seu tempo. A começar por ter desafiado os costumes machistas que ainda eram fortes no começo do século 20 no Brasil. Em 1921, com apenas 16 anos, foi a única mulher numa turma de 158 estudantes de Medicina em Salvador, na Bahia.

Numa das histórias narradas no livro “A Trinca do Curvelo”, de Elvia Bezerra (uma de suas biógrafas), ficam evidentes a coragem e a determinação que fariam daquela jovem uma das psiquiatras mais respeitadas do seu tempo. Num dos primeiros dias de aula, um professor da disciplina Parasitologia chegou à sala com uma cobra viva presa num vidro, com a clara intenção de testar a então adolescente e de, talvez, mostrar a ela que a Medicina era um desafio grande demais para o sexo feminino. Tirando a serpente do vidro, o professor se dirigiu a Nise e colocou o animal em suas mãos, já esperando o que todos os demais estudantes previam. A surpresa foi geral quando ela segurou a cobra por um minuto inteiro, se virou para o colega ao lado e disse: “agora é sua vez”.

Foi esta mesma mulher que anos mais tarde, já na década de 30, passou a militar na União Feminina do Brasil e foi presa por possuir livros considerados subversivos pela ditadura de Getúlio Vargas. Na prisão conheceu o escritor Graciliano Ramos, de quem foi grande amiga, e dividiu cela com Olga Prestes (tema do filme protagonizado pela atriz Camila Morgado).

A sua grande missão nesta vida, no entanto, foi tratar os doentes mentais sob uma perspectiva totalmente diversa daquela que sempre prevaleceu (à base de medicamentos dopantes e eletrochoques). Num centro psiquiátrico do Rio de Janeiro, Nise da Silveira desafiou estes “tratamentos” convencionais e ofereceu aos chamados loucos telas, tintas e pincéis. Nascia ali um amplo estudo sobre as relações entre arte e loucura; algo que serviria de alicerce para o Museu de Imagens do Inconsciente, fundado pela psiquiatra alagoana.

Para Nise, que conheceu e chamou a atenção do já famoso psicanalista Carl Gustav Jung, a arte era capaz de dar às pessoas privadas da consciência um canal de expressão ilimitado. As oficinas de pintura, modelagem e teatro que ofereceu aos doentes mentais eram uma chance concreta de cura. Através dos trabalhos produzidos por eles era possível identificar seus traumas e encontrar as chaves para abrir aqueles sótãos escuros.

Um dos internos – Emydio de Barros – produziu sozinho mais de três mil telas. Uma outra – Adelina Gomes – desenhava sempre figuras de mães monstruosas. Diagnosticada como esquizofrênica em estado agudo, seus desenhos revelavam uma história que, pesquisada depois por Nise, deu a ela uma chance de ajudar sua paciente. A moça foi apaixonada por um rapaz, mas seu namoro foi repreendido com violência por sua mãe. Exatamente daí surgiu sua esquizofrenia.

São histórias como a desta médica aguerrida que nos fazem acreditar no ser humano capaz de fazer o Bem por determinação, e não por conveniência. O seu exemplo é tal qual uma bússola a apontar o norte em meio a esse intenso nevoeiro em que o mundo se tornou.

Roberto Darte
Enviado por Roberto Darte em 18/05/2008
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