Filosofias de caminhão
Embora estejam cada vez mais fora de moda, as “clássicas” frases registradas em pára-choques de caminhões ainda dariam bons temas de pesquisas acadêmicas. Pelo menos as escritas em portas de banheiros já mereceram a atenção em universidades brasileiras e estrangeiras.
O interessante desses tipos de “frases feitas” é que elas expressam não apenas um perfil psicológico dos que as criam ou copiam, mas praticamente revelam filosofias de vida. Na década de 70, na movimentada Rio-Bahia (BR 116), os caminhoneiros faziam dessa prática uma constância, e meu olhar de criança se perdia em meio àqueles inusitados textos ambulantes. Eu tentava imaginar como eram os motoristas dos caminhões a partir desta ou daquela frase, do que ou de quem estavam falando ou o que tentavam transmitir.
Normalmente as frases mais encontradas eram de cunho machista ou de conotação sexual, como “paquere todas as mulheres, mas conserve a sua direita”, “se sua mulher pedir mais liberdade, compre uma corda mais comprida” ou “nas curvas de teu corpo capotei meu coração”. Outras, porém, trazem embutidas um romantismo bem próprio dos caminhoneiros: “seis pneus cheios e um coração vazio”, “na cabine cabem muitas; no coração só uma” e “no baralho da vida só encontrei uma dama”.
Algumas se aventuram nos trocadilhos de efeito cômico e na crítica política, a exemplo de “dívida pra mim é sagrada. Deus lhe pague”, “deixei meu coração no Rio e também o relógio, cordão, carteira...”, “pela cidade se conhece o prefeito” e “ladrão que rouba ladrão vive em Brasília”. Em momentos tediosos de uma longa viagem, frases assim fazem a diferença.
Todas elas refletem o jeito de ser de uma classe profissional que antes era bem mais marcada pela baixa escolaridade e pela pouca instrução. Pessoas que lidam com a distância da família, com os perigos das estradas e com um cotidiano bem mais próximo do comportamento bruto. É claro que este perfil não é uma regra, principalmente nos dias de hoje, em que a profissão de caminhoneiro ganhou mais tecnologia, segurança e organização.
O seriado Carga Pesada, com Antonio Fagundes e Stênio Garcia, é uma prova dessa mudança. A volta da dupla em novas temporadas mostrou uma realidade bem distinta daquela vivida na década de 70. As personagens destes dois atores fabulosos são, inclusive, bons exemplos da sensibilidade de muitos caminhoneiros que usam os pára-choques para transmitir mensagens reflexivas.
Eis algumas delas: “seja como o sândalo que perfuma o machado que o fere”, “não aponte as falhas alheias com o dedo sujo”, “não há melhor momento do que hoje para deixar para amanhã o que você não vai fazer nunca”, “pedras que me atiras servirão para construir o castelo de tua ignorância”, “veja os teus erros, depois corrija os meus” e “o pessimista considera o sol um fazedor de sombras”.
Para os que não acreditam na existência de filosofias populares, nos milhares de quilômetros que serpenteiam este país-continente continuam rodando milhares de caminhões. Muitos deles ainda carregam frases para todos os gostos e ocasiões.