O Mal é o que sai da boca
Há verdades que são tão fortes por si mesmas que independem de quem as tenha criado ou dito. Uma delas – encontrada em passagens da Bíblia e mesmo no título de uma música de Pepeu Gomes e Baby Consuelo – pode ser traduzida textualmente na frase “o Mal é o que sai da boca do homem”.
O ser humano, que se vangloria de ter atingido o ponto mais alto na evolução das espécies, conseguiu neste ápice produzir seu pior veneno: o ódio. Nada pode ser mais letal do que este sentimento capaz de se desdobrar em outros não menos negativos (inveja, mesquinhez, prepotência, insensatez...). O ódio cega, mata e consegue forjar doenças fatais no corpo, na mente e no espírito.
Quando destilado, ele encontra na boca uma de suas portas de saída. Mentiras, boatos e maledicências são apenas alguns dos formatos de um ódio nem sempre acompanhado de sua mais fiel companheira – a ira. Há quem odeie com frieza calculada; há quem maquina planos para fazer nascer e espalhar as desavenças.
Em casa, na escola, na igreja, no clube, no local de trabalho, na rua: ninguém escapa de ser vítima desse Mal (contraponto do Bem); nem mesmo há lugares que estejam isentos dele. É possível que existam demônios que afrontem tudo de belo e grandioso na Obra Divina; é possível até que eles possam ser responsabilizados por este Mal ou confundidos com ele. Mas a força para negá-lo cabe a cada um acionar em si, não importando por qual via.
Em 1912 a escritora norte-americana Eleanor Hodman Porter lançou a novela intitulada “Polyanna”, nome da personagem principal – uma menina órfã de mãe que inventou um artifício (o “Jogo do Contente”) para continuar tendo esperança, entusiasmo e otimismo na vida. O jogo nasceu depois que Polyanna pediu de Natal uma boneca que desejava há muito tempo, e em seu lugar recebeu (por engano) um par de muletas. Quando a menina começou a chorar pelo infortúnio, seu pai a consolou dizendo que ela deveria ficar contente exatamente por constatar que não precisava daquele presente.
A personagem ficou famosa no mundo inteiro e o Jogo do Contente ganhou milhões de adeptos e talvez um número semelhante de críticos ferrenhos. Estes últimos costumam dizer que Polyanna incentiva as pessoas a terem uma visão comodista e ingênua da realidade. Eu, que li a obra na infância, confesso ter feito parte do time dos que jogam pedras na teoria que sustenta o tal jogo. Provavelmente pensei assim na adolescência, fase em que os pensamentos arrogantes se voltam contra tudo e todos.
Tive em minha casa o melhor exemplo de alguém que essencialmente acreditava na proposta de Polyanna, sem sequer ter conhecido o livro que a criou. Meu pai, que partiu deste mundo em 2003, praticamente chegou aos 80 anos com a alegria e o otimismo natos de uma criança. Nunca se ateve a luxos e se satisfazia com as coisas simples da vida. Enxergava flores em pedras. Não à toa nós, seus filhos, o chamávamos de Polyanna, mesmo sem ele saber a quem o comparávamos.
Meu pai e outras tantas pessoas no mundo conseguiram e conseguem dizer não ao ódio; souberam e sabem negar a criação do Mal que sai da boca. Este, sim, está armado em pessoas e lugares como uma bomba-relógio com dia e hora marcados para explodir.