Bendito “maldito”

O poeta sempre foi e continua sendo o malabarista no Gran Circo Literatura. A habilidade em se equilibrar no fino arame das poucas palavras faz dele um perito em buscar as palavras certas. A poesia já teve seus dias de glória, produzida e consumida por leitores ávidos em apreender o mundo e a si mesmos com olhares menos pragmáticos. Ainda que concreta, como a do século 20, a poesia traduz mais o coração do que a mente. De poucas formas se falou tão bem do amor como através da linguagem poética.

Pouquíssimos desses malabaristas conseguiram os aplausos do grande público. No Brasil, eles podem ser contados nos dedos: Carlos Drummond, Vinícius de Moraes, João Cabral de Melo Neto e mais alguns de um círculo bem restrito. Ainda que suas obras continuem desconhecidas para muitos, seus nomes se mantêm vivos no pedestal da poesia nacional.

Alguns poetas, no entanto, são malabaristas sem redes para aparar as quedas. São conhecidos e respeitados por bem poucos e fizeram seus trabalhos à margem dos holofotes da fama. E, como se não bastasse, ainda receberam o rótulo de malditos (“mal-lidos” talvez caísse melhor). É o caso do poeta Waly Salomão, que morreu em 2003 aos 59 anos. Baiano de Jequié (a chamada cidade-sol, minha porta de entrada no mundo), ele é considerado um dos pilares do movimento tropicalista na década de 60, ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e do também poeta Torquato Neto (outro malabarista do rol dos malditos).

Se essa “maldição” pode ser interpretada em termos literários, com um tipo de poesia anticonvencional e até bombástica em conteúdo, durante o governo militar isso foi levado ao pé-da-letra. Waly Salomão, assim como Caetano, Gil e outros tropicalistas, amargou dias de prisão por ter dito poeticamente o que pensava e sentia. Benditos os que não se calam diante da opressão!

Foi encarcerado que Waly mostrou destreza em cima do arame. A poesia fluiu e se transformou no seu primeiro livro, intitulado “Me segura que eu vou dar um troço”, lançado em 1971. Desde então se manteve atuante como poeta, como produtor cultural e como letrista. Nesta última função firmou várias parcerias, a exemplo de Caetano (na música “Talismã”), Lulu Santos (“Assaltaram a Gramática”, sucesso com os Paralamas do Sucesso), Adriana Calcanhoto (“Pista de Dança”) e Jards Macalé (com quem escreveu em 1968 a belíssima “Vapor Barato”, um estrondoso sucesso na voz de Gal Costa).

A sua obra reúne livros como “Algaravias”, “Gigolô de Bibelôs”, “Lábia”, “Surrupiador de Souvenirs” e “Tarifa de Embarque”. Em 2002 ele viveu no cinema o poeta Gregório de Matos (em filme homônimo) e em março de 2003 – dois meses antes de morrer – chegou a ocupar no Governo Federal o cargo de secretário nacional do Livro e da Leitura. Taí alguém que seria capaz de levar adiante projetos sérios numa área tão espinhosa.

Vítima de câncer, o baiano com ascendência síria subiu para escrever um poema ainda maior, mais sublime e eterno. No decorrer de sua carreira Waly tentou assinar com o pseudônimo “Wally Sailormoon” (numa livre tradução do inglês, algo parecido com “navegante da lua”). Não pegou e ele retornou a Salomão (uma referência ao rei que ficou famoso por sua sabedoria e justiça). Quem sabe lá em cima, livre do peso terreno de uma maldição infundada, ele possa navegar muito além da lua, num mar de estrelas e palavras?

Roberto Darte
Enviado por Roberto Darte em 12/05/2008
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