Felicidade antitecnológica
Há momentos em que me sinto sufocado pelo tempo em que vivo. Às vezes acho que tal sensação é fruto do fantasma da nostalgia que, cedo ou tarde, aparece para qualquer adulto pós-trinta. Noutras, acho que tem a ver com a constatação de que realmente a vida antes era muito mais confortável e segura, mesmo sem todas as tecnologias que nos tomam de assalto e, como um vício, nos tornam dependentes.
O que tenho certeza é que, ainda que pudesse, não gostaria de voltar a ser criança. Não que minha infância não valesse a pena ser revivida (ao contrário, foi fantástica!), mas porque acredito que evoluir significa querer seguir em frente. No entanto, como em qualquer ficção científica de volta no tempo, gostaria muito de poder visitar o meu passado e me observar criança com os olhos de agora. Queria poder comprovar o que já concluí por intuição e observação: que felicidade e tecnologia não têm uma relação direta, como tentam mostrar algumas propagandas.
Minha infância foi privada de praticamente todas as aquisições tecnológicas que o Brasil já havia conquistado na década de 1970, que podem ser consideradas jurássicas se comparadas com o que temos hoje. Muitos riem quando conto que até 1982 a minha cidade natal (Boa Nova, localizada no Sudoeste da Bahia) não possuía energia elétrica em horário integral (apenas das 18 horas à meia-noi¬te com a ajuda de uma usina termoelétrica), não possuía telefone e os l6 km que a separam da principal rodovia do Estado (a BR 116) não eram asfaltados.
Para minha sorte (gosto de ver por este ângulo) havia poucos aparelhos de TV na cidade, e o uso destes tinha horário limitado; poucos carros e apenas o Correio como principal intermediário entre nós e o mundo. Pela grande distância com relação a Salvador (450 km), Jequié e Vitória da Conquista eram as nossa principais referências de cidade grande. Para se ter uma idéia do “isolamento” em que vivíamos, mesmo morando em um estado litorâneo, fui conhecer o mar e a capital somente aos 9 anos – época em que confesso ter literalmente tremido ao falar ao telefone pela primeira vez.
Tive a oportunidade de contar isso tudo para algumas pessoas, que já chegaram a me perguntar se eu não me envergonho ao lembrar dessa fase da minha vida. Ao contrário, este é um dos meus verdadeiros orgulhos. Com certeza eu não seria quem sou se não tivesse vivido a infância em ruas onde não passavam carros; nos quintais de casas repletas de árvores transformadas em cavalos; nos rios limpos e escondidos; andando em veredas no meio do mato; consolidando amizades no jardim do coreto; comendo bolos e biscoitos assados em fogões de lenha; brincando de bola em campinhos improvisados; apanhando vaga-lumes nas noites em que faltava energia.
Poderia listar dezenas e dezenas de boas vivências que vi uma geração inteira ter sem qualquer uma das principais conquistas técnológicas do final do século 20 e início deste novo milênio, a exemplo de computador, videogame, videocassete, telefone celular e eletrodomésticos “inteligentes”. Agradeço a Deus por ter estudado numa época em que as crianças eram premiadas com praticamente quatro meses de férias durante o ano, em vez da “neurótica” corrida por mais e mais dias letivos, somados aos intermináveis cursos disso ou daquilo que a garotada é levada a fazer, normalmente contra a vontade.
É natural que as crianças e os adolescentes das novas gerações vejam na tecnologia suas principais referências de lazer e conhecimento. O problema é como fazem para tirar disso os aprendizados capazes de torná-los pessoas melhores em todos os sentidos.
Minha nostalgia é mais do que simples saudosismo. É uma constatação de que a minha boa sanidade e o razoável discernimento do mundo se devem em grande parte ao tempo que tive para ser integralmente criança. Aquela felicidade antitecnológica foi conquistada e lapidada tão-somente pela vida simples que levei entre as montanhas da minha bucólica Boa Nova. Todas as vezes que volto lá ainda consigo ver, ouvir e sentir n’alma os ecos que vou continuar carregando onde quer que eu vá.