Tudo na vida é lapidação
“Tudo nesta vida é lapidação”. Com esta frase um amigo baiano encerrou, por telefone, uma conversa em que falamos de tudo, inclusive da solidão. Ele lembrava de alguns de nossos conterrâneos que viviam sozinhos e se declaravam amargurados com o destino a eles reservado.
Em cima da sua conclusão, constatávamos que tudo – absolutamente tudo (de bom e de ruim) – pode ser usado como matéria-prima para nos lapidarmos. Se analisarmos a essência da palavra “amadurecer” poderemos chegar à conclusão de que se trata de um processo gradativo de alcançar o próprio auge. Uma fruta madura é aquela que chegou ao topo da sua “proposta de existir”. Se não for consumida, apodrece e perde seu objetivo primordial. Assim, a lapidação de nós mesmos – infinitamente mais demorada do que o tempo de amadurecimento de uma fruta – é a busca do nosso máximo possível.
Sendo assim, dá para acreditar que até a dor da solidão pode ser uma ótima oportunidade para exercitar tais lapidações. Há uma história literária muito instigante sobre a aprendizagem que nasce da existência solitária. No livro “O Deserto dos Tártaros”, o escritor italiano Dino Buzzati conta a trajetória de vida do jovem oficial Giovanni Drogo, que é nomeado para fazer parte de um batalhão do Exército italiano, localizado em um forte à beira do Deserto dos Tártaros – uma região de fronteira. Com todos os sonhos e esperanças que arrebatam a maioria dos jovens, a personagem via naquela oportunidade uma chance única de experimentar aventuras inesquecíveis, de travar batalhas que pudessem dar sentido à sua vida, até então monótona. Ao contrário, tudo que encontrou foi uma rotina vazia e tomada pelo silêncio e pela solidão.
Buzzati, num dos trechos que me marcaram, diz exatamente assim: “...deu-se conta de que os homens, ainda que possam se querer bem, permanecem sempre distantes; que se alguém sofre, a dor é totalmente sua, ninguém pode tomar para si uma mínima parte dela; que se alguém sofre, os outros não vão sofrer por isso, ainda que o amor seja grande; e é isso que causa a solidão da vida.”
O jovem oficial da ficção não tardou para perceber a força dessa afirmação do autor/narrador. Consciente de que aquele deserto que seus olhos perdiam de vista havia despertado seu próprio deserto interior, não lhe restou alternativa a não ser conhecê-lo mais a fundo. Na frase a seguir Giovanni Drogo arremata o que pôde tirar dessa vivência: “acreditamos que ao redor há criaturas como nós e, ao contrário, só há gelo, pedras que falam uma língua estrangeira. Preparamo-nos para cumprimentar o amigo, mas o braço recai inerte, o sorriso se apaga, porque percebemos que estamos completamente sós.”
Todos, em menor ou maior grau, vivem essa experiência. Quem não já se sentiu só em meio à multidão ou mesmo ao lado de alguém muito próximo? Não há, no entanto, qualquer mal nisso! Nascemos sós e morremos sós. Está é uma condição da essência humana. Os encontros com o outro servem para aperfeiçoamos sentimentos vitais, como amor, confiança e esperança; ou mesmo para lidarmos com seus opostos. Eles são, na verdade, grandes chances para as “inter-lapidações”, como quis dizer meu amigo.