A proposta de Ziraldo
Certa vez uma vestibulanda desesperada com seu fraco desempenho nas redações me disse que não sabia mais o que fazer, pois havia chegado à conclusão que não tinha o “dom de escrever”. Tentando dissuadi-la desta idéia um tanto comodista da falta de dom, perguntei qual teria sido o último livro que ela havia lido por prazer. Pausa. Na verdade, uma longa pausa antes que a garota dissesse um “sei lá” como quem se envergonha de ter lido apenas um ou dois livros durante toda a vida.
Então lembrei a ela aquela velha história do homem que pedia a seu santo de devoção uma forcinha para ganhar uma bolada na loteria. Fervoroso, acreditava realmente que viria uma ajuda do Céu para seu pedido tão sincero. Mas ela não vinha e ele continuava na mesma miséria de sempre. Queixando-se para um amigo de ter sido abandonado pelo santo e pela sorte, ouviu dele a única observação possível: “como é que você quer uma mãozinha lá de cima se nem o bilhete da loteria você compra?”
Considerando-se a existência do dom (que é entendido normalmente como uma determinada qualidade que cada um já traz ao nascer), mesmo assim ele precisa ser lapidado para florescer. Saber escrever é, antes de tudo, o resultado de um exercício como outro qualquer. Requer teoria porque ela é a bagagem onde se guarda o conteúdo que sai em forma de escrita. No entanto, não há teoria que se sustente sem prática. E muita prática, diga-se de passagem, se o objetivo é um aperfeiçoamento cada vez maior. Há algum tempo a cantora Gal Costa comentou com o pianista Arthur Moreira Lima que daria a vida para tocar tão bem quanto ele. “Eu dei”, disse o músico.
A essa altura o leitor deve estar se perguntando o que tudo isso tem a ver com Ziraldo e com qualquer proposta que ele tenha feito. Certa vez li um ótimo artigo do escritor em uma coluna que ele assinava semanalmente no jornal Estado de Minas. Constatando o quanto as novas gerações cada vez mais se afastam dos livros e, consequentemente, do ato de escrever, o “pai do Menino Maluquinho” fez uma proposta simples e direta: “centrar parte do Ensino Fundamental – da alfabetização até os três primeiros anos de escolaridade – em apenas três pontos: 1- Leitura e Escrita; 2- Aritmética: as Quatro Operações; e 3- Ensino da Regra de Três Simples”.
Ziraldo justifica sua proposta ressaltando que o Ensino Fundamental no Brasil tem sido um “semear sobre pedras”, acrescentando que “não se joga sementes num terreno que não esteja arado”. O escritor e cartunista mineiro ressalta a leitura e a escrita de um jeito que é impossível contestar: “menino tem, antes de tudo, que aprender a ler e escrever como quem respira. Com um detalhe: tem que aprender a gostar de ler, a descobrir que o livro é o melhor amigo...”
Para o estudo da aritmética e da regra de três simples, Ziraldo não é menos preciso ou poético. Ele diz que a tabuada deve ser aprendida como quem aprende a letra de uma canção (“aritmética tem música, será mais fácil de aprender se não a transformarmos em obrigação”) e que as quatro operações são como uma espécie de chave para que a criança saiba se localizar no tempo. Já a regra de três simples é um bom passaporte para quem deseja “se localizar no espaço, saber as proporções do mundo em que habita e ler o mapa da mina”.
Será que um escritor como Ziraldo, que declara ter se apaixonado pelo desenho e pela leitura desde a infância, deve todo o seu talento a um dom que trouxe? Sua biografia e sua vasta obra têm a resposta.