O pesadelo da imortalidade
Ao que tudo indica, a natureza de todo ser vivo o impulsiona a não querer perecer, talvez cumprindo uma determinação além de nossa compreensão – a mesma que demarca o fim de cada um nesta vida. Entre todos os seres, nós somos os únicos que insistem em buscar formas e fórmulas de retardar ao máximo nossa juventude – talvez o símbolo máximo de uma imortalidade que sabemos inexistente. Em busca desse sonho impossível, inúmeros personagens povoam a literatura, tentando encontrar meios de driblar o inevitável e vivendo, ao contrário, verdadeiros pesadelos.
Um dos mais famosos talvez seja “Fausto”, de Goethe (transformado em filme e em várias montagens teatrais), que conta a história de um médico e alquimista que, já muito velho e próximo da morte, recebe a proposta do diabo de ganhar de volta a juventude em troca de sua alma. Ao aceitá-la, Fausto ganha o que tanto ansiava, mas paga um alto preço ao entrar num labirinto de angústia e desespero, que o faz arrepender-se amargamente de ter interrompido o seu ciclo natural.
No livro “O Retrato de Dorian Gray”, do escritor inglês Oscar Wilde (também levado para o cinema), o protagonista faz um pacto semelhante com o diabo ainda enquanto jovem. Através dele toda sua beleza e jovialidade são preservadas, enquanto as marcas normais de seu envelhecimento são transferidas para um retrato seu, que é escondido por causa das mudanças que vai apresentando com o passar do tempo. Enquanto todos a sua volta envelhecem, Dorian continua com a aparência de seus 20 e poucos anos, aprisionado, no entanto, na impossibilidade de fazer o mesmo com as pessoas que ama.
Nenhum personagem, porém, encarna tão bem a dimensão do sonho da imortalidade quanto o vampiro. A maioria dos livros e filmes sobre o tema aborda apenas o seu lado monstruoso, colocando-o no rol das inúmeras assombrações que povoam o imaginário popular. A escritora americana Anne Rice – que já esteve no Brasil pesquisando histórias do nosso ocultismo, usadas em seus livros – consegue a proeza de ir fundo neste ser, que carrega um tipo de imortalidade que o aprisiona em seus próprios limites.
Chamadas de Crônicas Vampirescas, as quatro obras contam em cerca de 1.700 páginas a história de Lestat de Lioncourt, um francês que é transformado em vampiro aos 21 anos, no final do século 18, e chega ao século 20 como cantor de rock em meio a uma outra grandiosa história, que envolve outros tantos vampiros de existência milenar e toda a sua maldição, iniciada no Egito há 6 mil anos.
Quem leu o primeiro livro – “Entrevista Com o Vampiro” (que foi traduzido pela fantástica Clarice Lispector e virou filme de Hollywood, protagonizado por Tom Cruise, Brad Pitt e Antonio Banderas) – deve ter percebido que a autora fala muito das inquietudes que acompanham qualquer ser humano durante toda a sua existência. A diferença é que estas mesmas inquietudes são ampliadas infinitas vezes, quando vistas e vividas sob a ótica de um imortal. Nos livros que se seguem – “O Vampiro Lestat”, “A Rainha dos Condenados” e “A História do Ladrão de Corpos” – Anne Rice expõe, entre tramas repletas de ação, questões bem mais abrangentes: a imortalidade é uma bênção ou uma maldição? A liberdade da alma está fora do corpo ou é possível fazê-la evoluir, mesmo sendo limitada a sua morada provisória?
Em cada uma das quatro obras somos, a todo momento, impelidos a questionar nossas próprias crenças, nossas próprias limitações. Somos também levados a perceber a ambivalência que todo homem (mesmo num corpo de vampiro) sente enquanto ser imperfeito, que intui em si mesmo a fagulha divina da perfeição. E é talvez aí, nessa confusa sensação de carregar consigo uma centelha do perfeito, que ele viva tentando a todo custo retardar sua própria juventude – o antídoto imaginário para a morte. Nessa corrida desenfreada contra o tempo, esquece-se de enxergar algo fundamental: se há em nós algum tipo de imortalidade, certamente não é no corpo que ela reside.