Pequenas vergonhas que ainda persistem em nossa cultura pós-escravagista
Pequenas vergonhas que ainda persistem em nossa cultura pós-escravagista
por Márcio de Ávila Rodrigues
[29/01/2023]
Quatro décadas atrás, bem no início de minha vida profissional, saí em grupo com alguns colegas para um almoço ou jantar.
Após servir a primeira porção para o grupo, o garçom deixou a comida na mesa; quando decidi repetir, me levantei e eu mesmo me servi.
Uma colega me repreendeu – envergonhada –, dizendo que servir a comida era um trabalho do garçom. Como se eu estivesse transgredindo alguma regra obrigatória de etiqueta.
Nunca me convenci de que fosse eu o errado, e hoje debito o caso ao rol de pequenas vergonhas que ainda persistem em nossa cultura pós-escravagista.
São comportamentos antigos que, por mais que pareçam distantes no tempo, não conseguimos suprimir, às vezes nem mesmo perceber.
E são muitos os persistentes desvios comportamentais semelhantes, como o ato de abandonar os carrinhos de supermercado em qualquer lugar do estacionamento, muitas vezes até atrapalhando algum automóvel, mas com a plena convicção de que este é um trabalho de funcionários subalternos – alguma versão remanescente de antigos escravos ou criados.
E há até quem diga que largou ali “de propósito, para obrigar este povo a trabalhar, gente que não faz nada, que fica em pé à toa, fingindo que está vigiando o estacionamento”.
Muito semelhante à vergonha de varrer o chão da rua em frente ao seu prédio ou residência. Uma desculpa usada tempos atrás – confesso que não a tenho ouvido recentemente – era “estou ajudando a dar emprego para o povo da limpeza pública”.
Outra minivergonha – e com reflexos na própria higiene da sociedade – é levar sacos plásticos para recolher dejetos de cachorros que saem de coleira a passear.
Ocasionalmente a televisão faz alguma reportagem elogiosa sobre pessoas que levam os saquinhos para descarte nos passeios com os “pets” ou “dogs”, novos nomes para a categoria dos cachorrinhos. Como já dizia Noel Rosa um século atrás: “alô boy, alô Johnny”. Reverências para uma língua mais chique.
Tais reportagens até possuem o mérito de estimular a população a reproduzir o gesto, mas uma parte destes “estimulados” tende, posteriormente, a desistir das sacolinhas por medo do ridículo, ao perceber que são minoria.
Escrevi originalmente este texto em 2012, quando incluí o receio, a pequena vergonha, de parecer mesquinho por contar o troco miúdo. Mas o uso do dinheiro em espécie se reduziu tanto uma década depois que o tema está prestes a sair da lista.
Entre as consequências dos comportamentos citados aparecem o aumento de custos, sujeira, desorganização, desentendimentos pessoais.
Pequenos atos às vezes refletem grandes atos; no fundo, tais comportamentos têm a mesma arquitetura sociológica da postura pública do cidadão brasileiro.
Falta na sociedade uma consciência do comportamento político correto, o que abre o caminho para a má gestão dos grandes problemas nacionais pelos administradores públicos.
Este complexo deixa dúvidas de que o Brasil seja realmente o país do futuro, como precipitadamente analisam cientistas sociais estrangeiros, com aval dos brasileiros com tendência para o ufanismo infantiloide.