Um memorável trabalho comprovando a incompetência do Estado brasileiro na recuperação dos menores infratores

O Globo fez, em 2007, um memorável trabalho comprovando a incompetência do Estado brasileiro na recuperação dos menores infratores

por Márcio de Ávila Rodrigues

[25/12/2022]

É chocante a diferença de valor que uma vida humana pode alcançar em diferentes setores da nossa sociedade.

Nas famílias bem-intencionadas, os filhos são planejados e, depois, cuidados com dedicação, esforço e carinho.

Com as exceções de sempre...

Já para aqueles que chegam ao mundo entregues à própria sorte, as pesquisas comprovam que a desgraça é o destino da ampla maioria.

Consequências terríveis os aguardam, consequências que se estendem às vítimas daqueles que enveredam nos subterrâneos da criminalidade.

Ainda no século 20, fiquei impressionado com um ótimo trabalho jornalístico do jornal O Globo, que pesquisou um grande grupo de jovens delinquentes.

O trabalho selecionou um grupo com registro de passagens pelo sistema público de segurança 10 anos antes; os repórteres investigaram o que aconteceu com eles naquele intervalo de tempo e descobriram índices alarmantes de mortalidade e retorno às atividades criminosas.

Não guardei os recortes, mas em 2007 o mesmo jornal repetiu o procedimento (a pesquisa retroagiu ao ano 2000), e depois publicou uma sequência de oito reportagens diárias, sob o título geral “Dimenor: os adultos de hoje”, no final do ano.

O texto integral é exclusivo para assinantes; em 2012 encontrei a matéria que apresentava a última reportagem, e que também funcionou como um balanço do trabalho.

O redator abre com um tom bem pessimista: “Entre todos os processos que passaram pela Vara da Infância e Juventude do Rio em 2000, o juiz titular, Guaraci Vianna, acostumou-se a assinar uma mesma sentença: ‘não teve o estado êxito na execução da medida socioeducativa, estando inconcluso o processo de ressocialização do adolescente’.”

A reportagem informou que a maior parte dos casos de descumprimento de pena ocorre em duas medidas judiciais: a semiliberdade e a liberdade assistida. Na internação (privação total de liberdade) o índice é menor, pois o “dimenor” está sob vigilância permanente.

Somente na sua região de atuação, o mesmo “juiz Guaraci Vianna estima na casa dos milhares os adolescentes atualmente foragidos”.

Transcrevo abaixo as conclusões básicas de cada uma das oito reportagens, conforme publicado em 08/12/2007, data do encerramento da série:

1ª (reportagem) 52,6% dos infratores atendidos pelo estado na época já morreram ou foram flagrados cometendo crimes como adultos.

2ª) Um em cada cinco adolescentes infratores, entre 12 e 18 anos, atendidos pelo estado no ano de 2000, não tem hoje (data da reportagem) seu nome na base de dados do Detran-RJ, responsável pela emissão de carteiras de identidade.

3ª) 72 (46,7%) das 153 crianças com menos de 12 anos que tiveram processos abertos na 2ª Vara da Infância e da Juventude do Rio em 2000 reincidiram antes de completar 18 anos.

4ª) Trinta e oito jovens com menos de 18 anos foram processados em 2000 por homicídio, tentativa de homicídio ou latrocínio. No entanto, outros 80 que passaram pela Vara da Infância e Juventude do Rio naquele ano foram acusados de crimes de morte após a maioridade.

5ª) Quase 20% dos infratores tinham apenas o nome da mãe na certidão de nascimento e, dos menores que passaram pelo Degase em 2000, 8,1% já eram pais.

6ª) A maioria dos adolescentes que passaram pela Vara da Infância em 2000 era de favelas das zonas Norte e Oeste do Rio; o Complexo da Maré e a Cidade de Deus eram os lugares com o maior número de infratores.

7ª) O tráfico de drogas chegou ao topo do ranking de processos da Vara da Infância e Juventude do Rio em 2000.

8ª) Das 2.447 medidas executadas em 2000 pelo Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), nada menos do que 1.971 (80,5%) não foram cumpridas integralmente pelos jovens.

Os repórteres Natanael Damasceno, Ruben Berta e Vera Araújo descobriram que a simples identificação pessoal dos membros deste abandonado (e temido) extrato social é uma dificuldade séria: “dos 2.363 adolescentes infratores atendidos pelo estado no ano de 2000, 475 (20,1%) não têm atualmente seus nomes na base de identificação do Detran-RJ”.

(Obs.: no Rio de Janeiro, o Detran também tem a função de emitir as identidades civis.)

O sumiço dos 475 jovens infratores levou os repórteres-autores a uma conclusão pessimista:

“O dado aponta duas hipóteses preocupantes: ou esses jovens passaram pela Vara da Infância e da Juventude na época com dados completamente falsos ou não têm hoje, todos maiores de idade, um documento de identidade, condição básica de cidadania.”.

Citaram números sobre uma situação bem conhecida, que é o uso de documentos falsos para que o maior de idade tente se beneficiar da legislação que protege o menor de 18 anos:

“De um total de 4.086 jovens que tiveram processos abertos no juizado em 2000, 218 (5,3%) eram, na verdade, maiores de idade. As fraudes foram descobertas entre o momento da detenção e o julgamento. E os casos, encaminhados para varas criminais.”.

E explicaram o porquê:

“Um roubo à mão armada, por exemplo, costuma resultar, na Vara da Infância do Rio, em, no máximo, um ano e meio de internação. Numa vara criminal, a média é de quatro a seis anos de prisão.”.

Esse importante trabalho jornalístico permite a interpretação de que, enquanto a sociedade se debate num dilema interminável entre educação e repressão, entre a piedade e a segurança pública, aumentam acentuadamente seus índices de menores abandonados, de crimes e de uso de drogas, entre outras situações desumanas.

Povos mais organizados não desprezam o debate, mas aprenderam que a tomada de medidas firmes é indispensável para administrar a sociedade, minorando, pelo menos, seus problemas.

Adiar de forma exagerada a tomada de decisões importantes não deixa de ser uma forma de covardia: há limites para dúvidas, debates e inseguranças, como também para a tirania do sentimento de piedade.

Para acesso à matéria de 08/12/2007, o link de acesso é:

http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/12/07/327502019.asp