A escrita é o novo divã
Não há nada nesse mundo que mais se assemelhe com o divã do que a escrita. A relação entre ambos os elementos carrega consigo uma analogia muito aparente, visto que a função do psicanalista é decodificar a fala do paciente, interpretando a simbologia inconscientemente revelada, de forma a trazer à luz, as causas até então submersas, dos sintomas já manifestados. Enquanto que a escrita, sendo um processo criativo, desdobra-se em faces que compreendem a vivência, a percepção e a sensibilidade diante de si e do mundo. Caracterizando-se sobretudo, como uma compreensão grafada do sujeito, um retrato escrito de seus pensamentos, emoções e estados de espírito. Quando se escreve, de modo a não necessariamente satisfazer os fins literários, mas sim, como forma de expressão ativa e êmese das angústias, depreende-se que o escritor concentra-se em si, revela ao papel sua própria essência e descarrega tudo aquilo que o aflige, como resposta às forças internas que constantemente se atraem e repelem, em um conflito permanente e indissociável do ser humano. Se o trabalho do analista é aplicar métodos que forneçam uma visão clara do inconsciente em estudo, por meio do exercício da palavra falada, o trabalho do escritor pode ser ainda mais árido, uma vez que seus esforços visam o encontro com si mesmo, é um processo absolutamente ousado de prostrar-se diante dos fantasmas que o habitam e de travar as devidas lutas que agora se tornaram mais nítidas com o ímpeto do autoconhecimento. No desvelar da história da literatura, diversos escritores foram responsáveis por dar vida à obras cuja narrativa constituiu-se somente de um pano de fundo, enquanto que as relações inter e intrapessoais das personagens tratavam-se do foco de suas obras. Há escritores que certamente dispunham de um arsenal de conhecimentos sobre o funcionamento das profundezas humanas, e que a partir disso, elaboraram personagens e descreveram cenários notadamente carregados de uma riqueza psicológica tamanha, o que lhes conferiu o adjetivo “clínico” em vista da complexidade humana sobre a qual debruçaram-se. Entre tantos nomes ilustres, pode-se citar Machado de Assis, intitulado como o maior escritor brasileiro de todos os tempos, membro vitalício da Academia Brasileira de Letras, e patrono da cadeira (ou divã rsrs) número 23, que com uma maestria incalculável, visitou os meandros da existência e das paixões, desejos, melancolias, patologias e pulsões da alma humana. Mas e se o ato de escrever despretensiosamente, fosse o invés de um portal para que o escritor encontre as respostas para as suas dúvidas existenciais, como a célebre frase de Clarice Lispector sugere “Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas… continuarei a escrever”, fosse uma maneira de se perder dentro de seus próprios labirintos, de se desencontrar-se de si e de se distanciar da primordialidade de seu ser? Há aqueles que sentem-se perdidos no meio e na sociedade em que vivem, sentem-se deslocados e com a sensação de que continuamente fogem daquilo que os habita e os torna vivos, o que pode os levar a buscar um acompanhamento psicoterapêutico, ou então a doarem-se e canalizarem sua ferocidade reprimida pela voz da razão e pelas censuras sociais, para a manifestação de uma arte ancorada nas vozes de camadas mais internas de subjetividade do indivíduo, que afloram em música, tinta, lápis, mármore, corpo ou palavra, o elemento desconhecido pelo sujeito e indiferente ao seu meio. Desse modo, cansados da normalidade incongruente que tudo rege lá fora, buscam um refúgio dentro de si, que seja confortável e acolhedor sempre que as exigências do cotidiano o intimidar, um porto seguro que favoreça o ato de encontrar-se, ou de perder-se na tentativa de esquecer os problemas do mundo, em uma investigação que culmina em dúvidas “o que sou?” “por que sou?” que denotam uma perda irreparável do ser consigo mesmo, ou um encontro inimaginável sob outra perspectiva. A consciência costuma pregar muitas peças, e com facilidade enganar nossa mente que pensa de forma racional, como pretexto para limitar a atividade inconsciente. Se pensássemos menos da forma como julgamos pensar, e abríssemos brechas para outras redes e estruturas subjetivas, teríamos a capacidade de experimentar na prática, fluxos de consciência e sugestões sobre como o pensamento humano se estrutura, o que permitiria uma vivência calcada na compreensão mais exata de um tema que infelizmente ainda guarda consigo, considerações obscuras e herméticas. Existe um vínculo que só se estabelece ao desvincular-se dele. Dessa descrição que em primeiro plano soa paradoxal, pode-se associar o autoconhecimento enquanto processo constitutivo, pois de acordo com o escritor português José Saramago, “é preciso sair da ilha para vê-la. Não nos vemos se não saímos de nós.” Com essa metáfora, o escritor não quis dizer que o ser humano se assemelha com ilhas que flutuam no meio de um oceano enorme e infindável de existências distantes e distintas entre si. Ao contrário disso, a vida é um emaranhado de redes que se conectam por meio de laços e nós que se fazem e desfazem ao longo do percurso, tecendo uma experiência conjunta e interligada nas mais diversas esferas humanas. Observa-se que sendo o psicanalista um ente externo, o entendimento do paciente não se limita às próprias fronteiras individuais que por vezes apresentam-se a si de um ângulo deturpado, e que não foge de sua sensorialidade. Com a análise, o indivíduo é apresentado a si mesmo sob o olhar de uma versão de si que possivelmente nunca foi percebida pelo mesmo, clareando suas impressões sobre o seu “eu”. E com a escrita, o escritor vislumbra-se em um processo autônomo de criação com base em seus fragmentos que o compõem como indivíduo, possibilitando o transparecimento de uma visão de mundo genuína ao seu principal leitor: ele mesmo, o próprio ser que escreve.