Cartas de Pai pra Filha
Charlles Nunes
Em 2016, minha filha Ana Paula estava servindo como missionária de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, na Missão Brasil Goiânia.
Em 1991, eu mesmo tive esse privilégio, servindo na Missão Brasil Recife.
Achei por bem escrever para ela algumas mensagens, com base no que vivi em meu período de missão. Essas mensagens viraram a primeira parte do livro. Na segunda, coloquei citações do meu diário.
Boa leitura!
As experiências relatadas neste livro foram escritas em resposta a uma pergunta feita no dia 17 de janeiro de 2016 por minha filha Ana Paula Pereira Nunes, que servia na Missão Brasil Goiânia como Sister Nunes.
DEDICATÓRIA
ERA UMA VEZ UMA MENINA... Que virou moça, missionária, e amiga. Que se apaixonou pelos livros, pela música e pela vida.
ERA UMA VEZ UMA MOÇA... Que aprendeu a se levantar, e viu que alguns tombos fazem parte da jornada. Que aprendeu com a vida que todos merecem mais uma chance.
ERA UMA VEZ UMA MULHER... Que conquistou meu respeito, admiração e amor. Que adquiriu a vontade de vencer, a garra pra lutar e a coragem pra enfrentar a vida de frente.
A essa QUERIDA FILHA, dedico esse livro: Ana Paula Pereira Nunes. Ou melhor,
SISTER NUNES.
1. Pregar o evangelho é uma bênção e privilégio.
Diversas vezes na missão, e dezenas de vezes nos anos seguintes, ouvi missionários mencionando alguma versão da frase ‘dar dois anos da minha vida...’
Fico pensando... Essa frase soa como se a pessoa estivesse fazendo uma doação de seu tempo para o trabalho do Senhor, como se esse fosse um ato de grande altruísmo em favor da raça humana.
Reconheço que geralmente um missionário necessita se abnegar de sua rotina para começar um novo ciclo, uma nova etapa. Porém, sempre considerei esse um grande privilégio.
Já pensou? Um pecador como eu ser chamado para representar o Salvador e Sua Igreja?
Que oportunidade ímpar de estudar o evangelho, de me relacionar com pessoas de bem, de conhecer famílias de todas as formas e crenças.
Enquanto lia meus diários antigos em preparação para escrever, algumas palavras foram mais frequentes do que outras. Dentre elas: Jesus Cristo, amor e oportunidade.
Então, aproveite seu tempo para servir ao Senhor de todo o coração.
A melhor maneira de fazer isso é esquecer-se de si mesma e servir ao próximo, começando pela sua própria companheira.
Aproveite, além de servir numa missão ser um baita privilégio...
É uma das maiores oportunidades que você terá na vida! =D =D
2. Qualquer pessoa pode mudar. Mesmo quem mora em casa própria! =D
Certa vez visitamos um rapaz que se mostrou bastante interessado em saber mais sobre o evangelho de Jesus Cristo. Sua sinceridade era tocante, e marcamos nossa segunda visita para o dia seguinte.
Quando chegamos à sua casa, o encontramos estirado no chão da sala, bêbado, sem a menor condição de nos atender. Demos meia-volta, e no próximo dia, lá estava ele, com um sorriso no rosto a nos receber!
Ficou claro pra nós que o meio em que a pessoas vivem favorecem um comportamento específico.
Quando se muda o estímulo, essas mesmas pessoas podem elevar sua qualidade de vida.
3. Nunca se subestime.
Antes de ir para a missão, eu pensava que meu conhecimento era insuficiente para servir de forma eficaz.
Logo na primeira noite no Centro de Treinamento Missionário, essa ideia caiu por terra.
Eu dividia o quarto com mais sete missionários, dois em cada beliche. Um pouco antes de apagarmos a luz, ouvi um deles perguntar:
“Onde fica o livro de João?”
Olhei para o lado, e lá estava ele estava com a bíblia na mão.
Outro respondeu baixinho: “Fica no Novo Testamento, bem no começo, depois de Lucas.”
Pensei comigo mesmo: “Se esse rapaz não sabe onde fica o livro de João, e tem coragem de partir para o campo missionário, posso ficar tranquilo que tudo vai dar certo pra mim também!”
4. As oportunidades de servir começam em casa.
Um de meus companheiros demonstrou com bastante clareza esse princípio.
Dividíamos o apartamento com mais quatro missionários, e quase todas as manhãs ele acordava mais cedo e preparava o desjejum para nós.
Ele fazia as panquecas, e o cheiro vinha da cozinha para o quarto, nos convidando para pular da cama e começar mais um dia.
Quando chegávamos à mesa, ele já havia fatiado os melões e feito as panquecas.
Muitas vezes ele nos serviu desse modo.
E ele fazia isso tudo com uma alegria estampada no rosto, que aquilo para ele parecia um grande privilégio!
Não me lembro de exemplo maior do que esse, em casa, da alegria que advém do serviço prestado de todo o coração, por mais simples que seja.
5. O poder da fé traz resultados concretos.
Fomos abordados na rua por uma senhora adventista, que nos disse: “Meu filho fez uma cirurgia na barriga há oito meses, e até hoje o ferimento continua aberto. Vocês podem fazer uma visita lá em casa e orar por ele?”
Combinamos a visita para o dia seguinte. Logo após o almoço, passamos em casa para nos prepararmos melhor. Nos ajoelhamos em oração, e tanto meu companheiro quanto eu fizemos uma oração em voz alta. Percebemos que aquela mulher tinha uma fé notável, e queríamos nos certificar de que a vontade do Senhor fosse realizada.
Dissemos algo nessa linha: “Pai Celestial, somos seus servos e fomos abordados por essa mãe que solicitou uma bênção de saúde para o filho. Tu conheces a fé que ela tem, assim como o desejo de que o filho se recupere. Temos tua autoridade para fazer essa ordenança. Por favor, nos abençoe para que sua vontade seja feita. Vamos lá com o Teu poder, não com o nosso.”
Nos levantamos, e seguimos para a casa da senhora. Nos receberam com bastante alegria, e ele foi logo levantando a camisa e nos mostrando o local da cirurgia. Fizemos a unção e o selamento da bênção. Nos despedimos logo em seguida.
Poucos dias depois, o encontramos em frente à agência dos correios. Ele repetiu o gesto, nos mostrando agora apenas a cicatriz daquele ferimento que havia permanecido aberto por oito meses, e disse, todo entusiasmado: “Eu vou lá na igreja de vocês prestar meu testemunho.”
No domingo seguinte lá estava ele, contando sua experiência em frente à nossa congregação. Ficamos muito felizes pela oportunidade de servi-lo, e mais uma vez nossa fé se fortaleceu no Sacerdócio e nas promessas do Senhor para seus filhos.
6. Um acompanhamento bem feito acelera o progresso.
Durante os sete meses que servi no escritório da missão, pude observar de perto como o presidente da missão trabalhava: Suas atitudes, conduta e modo de tratar a toda a equipe. Seu respeito para com o próximo, seu entusiasmo e visão positiva me impactaram bastante.
Como uma de minhas responsabilidades era manter os registros dos batismos de toda a missão, todo dia eu manuseava as fichas de papel cartão com os dados dos membros batizados no mês em curso. No final, eu preparava um relatório.
Nossa meta era conseguir batizar 100 homens num único mês, com 400 batismos no total. O objetivo era termos pessoas qualificadas em quantidade suficiente para que fosse feito um templo na cidade de Recife, Pernambuco.
Certa vez, o presidente me perguntou: “Quantos batismos tivemos esse mês?” Após receber a informação, me disse: “Reserva as últimas fichas com os batismos de homens para lançar no próximo mês.” Com todo o ímpeto dos meus 22 anos, relutei: “Mas presidente, se a gente fizer assim, o relatório não vai ficar ‘furado’?” Ele então me mostrou a visão geral: “Está vendo os meses anteriores? Tivemos 17, 19, 21 por cento de batismos de homens. Guardando algumas fichas, a gente administra o crescimento, e não fica subindo e descendo no gráfico. Assim, vamos manter o progresso no batismo de homens, e toda a missão fica mais animada.”
Não engoli fácil aquela explicação...
Me parecia que ele estava manipulando os dados. Mas suas previsões estavam certas. Nos meses seguintes, o progresso continuou, e em agosto de 1992, tive o privilégio de registrar: Batismos de homens, 102.
Aquele foi um marco em nossa missão.
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No dia 15 de dezembro de 2000, o templo do Recife foi dedicado pelo Presidente Gordon B. Hinckley. É claro que houve um trabalho em conjunto de milhares de pessoas em todo o mundo. Saber que fizemos parte desse processo, e que nossa contribuição foi significativa, me deixa muito feliz e emocionado sempre que penso nisso.
7. Algumas oportunidades são únicas na vida.
Quando parti para a missão, tinha o desejo de aprender inglês, mas nunca tinha feito um curso. Sabia o básico do básico do básico. Ou seja: nada.
Diversas circunstâncias foram despertando meu interesse em aprender, mas me faltava um método. Com a ajuda de Deus e dos amigos, fui dando passos aleatórios que no final me levaram a falar fluentemente o idioma – que se tornou minha profissão principal pelas próximas décadas.
Certa ocasião, meu companheiro ficou doente. Enquanto cuidava dele em casa, tive um dia inteiro para me dedicar à tradução do livro “Missionaries to Match Our Message”, escrito pelo Pres. Ezra Taft Benson.
Naquela época, tínhamos uma máquina de escrever em casa, mas a fita preta estava gasta. Nem titubeei: escrevi toda a versão em português com a fita vermelha mesmo!
No final do dia, meu companheiro estava melhor, e eu vibrei por ter traduzido pela primeira vez um livro inteiro!
As oportunidades de servir na missão são constantes, porém muito temporárias. As transferências nos apresentam novos desafios, novos lugares, novas pessoas. E essa constante mudança vai revelando o missionário a si mesmo.
Diante de tantas circunstâncias adversas, em contato com tantas pessoas de cultura e pensamentos diferentes, é comum o missionário questionar sua própria maneira de pensar e de encarar o mundo.
Essa reflexão costuma trazer um amadurecimento bastante proveitoso para os anos vindouros, de estudo, trabalho e casamento.
8. Confiar na voz da experiência traz proteção.
Da segunda vez que morei em Palmares – PE, viajamos até Caruaru para participarmos de uma conferência.
Na volta, fui abordado por um homem na rodoviária, que me pediu ajuda para comprar uma passagem até Palmares.
Comentei que não tinha comigo o dinheiro, mas como morava perto da rodoviária, perguntei ao motorista se o aquele homem poderia viajar conosco, e eu pagaria quando chegássemos ao destino. Ele topou.
O homem viajou conosco e, como não tinha onde ficar, dormiu na nossa casa.
No dia seguinte, recebi um recado de que o presidente da missão queria falar comigo.
O telefone mais próximo ficava a uma quadra de distância. Ele foi direto ao assunto:
“Tira esse homem daí, AGORA!”
Antes que eu pudesse argumentar, concluiu: “Dois missionários deram abrigo para um homem estranho em outro país, e os resultados foram catastróficos!”
Ele me contou em detalhes o que havia acontecido, e percebi que o bom senso gritava para que fôssemos mais prudentes.
Voltei para casa, expliquei a situação para nosso mais novo amigo, e ele compreendeu muito bem.
Seguiu viagem, e pude encontrá-lo no ano seguinte m Rondonópolis, Mato Grosso, quando saía do trabalho.
Ele havia ido para Alagoas, eu para o Mato Grosso do Sul. Depois se mudou para o Rio Grande do Sul, e eu para o Mato Grosso, onde ele havia ido buscar um tratamento médico.
Mundo pequeno esse!
9. O amor e a rejeição podem ser seus parceiros.
Por mais paradoxal que seja, a distância nos aproxima dos familiares. Passamos a valorizar coisas simples que antes nos passavam despercebidas: um cafuné, um abraço, a companhia dos nossos pais.
Cada carta de casa representa uma prova física de que eles ainda ‘estão lá’, te esperando de braços abertos e pensando em você a cada dia...
Como há estereótipos e preconceitos enraizados no pensamento coletivo, muitas pessoas têm aversão à religião, e estendem esse sentimento aos seus representantes.
Conseguir uma aproximação informal com essas pessoas, e ajudá-las a ver que os missionários são pessoas que têm desejos, aspirações e necessidades tais como eles mesmos, é um desafio constante.
Duas ideias que muito me ajudaram a lidar com a rejeição...
Primeiro, percebi que servir uma missão tem tudo a ver com exercitar o amor que sentimos, transformando-o em ações, e nada a ver com sermos servidos.
Com essa atitude, qualquer serviço que me prestavam passou a ser lucro!
Segundo, percebi que as pessoas não me rejeitavam do ponto de vista pessoal – pois nem sequer me conheciam – mas apenas estavam demonstrando sua falta de interesse na mensagem que elas pensavam que estávamos levando.
Se realmente soubessem, como nós mesmos tivemos o privilégio de descobrir, provavelmente nos receberiam de braços abertos!
10. O Senhor qualifica a quem chama.
Servi em Catende por um mês. A igreja estava começando, e um dos missionários presidia o ramo. Fui transferido para Palmares, onde iniciamos do ponto zero. Meu companheiro presidia o ramo. Fiquei lá por três meses.
A seguir fui pra Recife, onde a igreja já estava bem estabelecida. Após servir na Ala Caxangá por três meses, fui chamado para o staff da missão, onde fiquei por sete meses.
Num fim de tarde, o presidente me chamou em particular: “Élder Nunes, você vai voltar pra Palmares. Você vai presidir o ramo lá.”
Tremi na base. Eu sabia que presidir um ramo implicava em tomar inúmeras decisões difíceis, que impactavam as vidas das pessoas e o progresso da unidade. Aceitei, e me preparei para partir.
Lá chegando, fui recebido como ‘gente grande’. Muitos membros novos haviam sido batizados durante minha ausência, e os missionários estavam fazendo um bom trabalho. Para conhecer melhor os membros, decidi entrevistar um por um. Conversei em particular com dezenas de pessoas nas primeiras semanas. O presidente chegou a me perguntar num telefonema:
“Esqueceu que você ainda é missionário? Cadê as palestras?”
E foi justamente nessas entrevistas que percebi com clareza uma elevação notória em meu grau de discernimento em relação às pessoas. Conversei com pais de família, moças, idosos, crianças.
Nas ocasiões em que me eram dirigidas perguntas delicadas, por pessoas interessadas em aplicar o evangelho às suas próprias circunstâncias, minha mente ficava mais clara e eu conseguia concatenar os pontos de modo a ajudar a pessoa.
Obviamente, aquele conhecimento não era meu. Vinha de uma Fonte Superior, através do Espírito Santo.
Procurei deixar isso sempre bastante claro, para que os membros soubessem que o mesmo discernimento estava à disposição deles em sua esfera de influência.
Essa confiança de que as coisas se tornam simples quando resolvidas à maneira do Senhor me acompanhou por anos a fio, e até hoje me ajuda a enfrentar os desafios, sejam da vida ou da morte.
11. Quanto mais você serve, mais você ama.
É incrível o que acontece quando alguém abre suas portas para dois representantes do Senhor. O desejo que a pessoa progrida é tão grande, que esse interesse genuíno numa pessoa que minutos atrás era um desconhecido gera um sentimento quase instantâneo.
Experimentei isso centenas de vezes. Com crianças, jovens, adultos e idosos. Presenciei a luta de mães criando filhos sem a presença de um pai. Convivi com um prefeito que para mim é até hoje um exemplo de integridade. Entrei em casas de pau-a-pique e fui recebido como se estivesse entrando em um palácio.
Essas não são apenas formas românticas ou enfeitadas de descrever o que vi e senti. Foi desse jeito mesmo.
Por isso, quando penso no trabalho que você está fazendo nesse momento, andando pelas ruas e estradas de Goiás, conhecendo pessoas que eu nunca vi na vida e aprendendo a amá-las como verdadeiros filhos do Pai Celestial, como nossos irmãos e irmãs, meu coração transborda de gratidão.
Torço para que você consiga trazer pra casa o resultado desse exercício, e perceba que o esforço há de ser por toda a vida, para compreender um vizinho que não respeita seu direito ao silêncio, ou que invada seu espaço de alguma forma.
Torço para que você traduza essa prática no seu relacionamento familiar, profissional e que continue irradiando essa alegria que lhe é peculiar.
E é claro, torço para que no decorrer da vida você colha – assim com eu faço ainda hoje – todos os frutos desse trabalho grandioso no qual você decidiu se envolver, e com o qual acabou se comprometendo.
12. Viver à altura do seu chamado pode ser um desafio.
Com o passar do tempo, desempenhamos diversos papéis: filhos, pais, irmãos, etc. Em cada um desses papéis, representamos nós mesmos e nossa família tem certa expectativa a nosso respeito.
Mas quando vestimos um uniforme, uma farda, portamos um crachá ou nos associamos a um grupo específico, espera-se que vivamos os padrões coletivos daquela organização.
Por isso, ‘‘‘sugeri’’’ (olha só quantas aspas!) que meu filho não utilizasse piercings, ou colocasse brincos. Se deixarmos os adolescentes à própria sorte, eles podem entrar por alguma estrada que não tem retorno.
E isso vai muito além de um piercing ou um brinco na orelha.
A ideia é a de que existem limites que precisam ser delimitados para cada grupo que uma pessoa decida participar. Mesmo entre bandidos, há limites de conduta. Em tempos de guerra, existem tratados que devem ser respeitados, e assim por diante.
Senti isso na pele numa das poucas vezes em que senti raiva de um companheiro durante a missão. Não me lembro bem do episódio, mas olhei para o meu braço e a veia estava pulando! Que vontade sapecar um soco na cara dele!
Mas foi aí que pensei: “Se eu estivesse em casa, podia até brigar, mas aqui, vou manchar o nome de muita gente...”
E assim, me controlei.
O dia passou e aqui estamos nós, mais de vinte anos depois sem ao menos lembrar o que ocasionou tamanho furor!
13. Quando você serve, seus desafios parecem menores.
Existem diversas formas de tornar uma provação mais aceitável, e uma delas é compará-la aos demais testes da vida.
Como diz meu irmão: “Vão-se os anéis, ficam os dedos.”
Presenciei algumas cenas bastante fortes durante a missão. Para algumas pessoas em condições extremas, me pareceu que até mesmo a morte parecia ser um consolo melhor do que a vida.
E quanto mais eu convivia com as pessoas que enfrentavam tais provações, mais eu percebia que em minha vida não havia sequer um problema que se assemelhasse em dimensão.
Uma das maiores dificuldades pelas quais passei na vida foi ter vivido a adolescência sem a presença do meu pai, que faleceu quando eu tinha doze anos.
Esse tipo de lembrança, durante a missão, não me incomodava, pois com o tempo a gente vai se adaptando às condições da vida, e àquela altura eu já havia convivido com adultos formidáveis que deram um suporte altruísta à nossa família.
Minha mãe, em meio a suas tantas provações, encontrava tempo para me escrever, e ainda hoje guardo sessenta e quatro das suas cartas.
Ela também me apoiou financeiramente durante a missão, e quando regressei ainda me aconselhou a poupar para comprar minha primeira casa.
Fui obediente, e um ano mais tarde consegui comprar a casa na qual nossos quatro filhos foram criados, e que serviu de base (financeira) para adquirir a casa na qual moramos até hoje...
14. O tempo de preparação acaba na hora da ação.
Enviei meu chamado em 1990, não me lembro bem o mês. Naquela época, o chamado vinha pelo correio.
Como morávamos em casa de aluguel, nos mudamos depois que enviei o chamado. Eu ia com certa frequência perguntar à dona da casa em que havíamos morado sobre a correspondência.
O chamado chegou num dia em que a casa estava vazia, e por isso, retornou.
Eu continuei procurando por uma correspondência que nunca chegava, até que no dia primeiro de janeiro de 1991, recebi uma carta de boas-vindas do presidente da missão!
Naquele momento, fiquei sabendo que serviria em Recife-PE. Detalhe: minha entrada no Centro de Treinamento Missionário estava prevista para o dia 4 de janeiro.
Eu ainda estava empregado – pedi conta no dia seguinte – e antes de ir para a missão precisava viajar de Campo Grande, Mato Grosso do Sul, para Volta Redonda, Rio de Janeiro, para me despedir de minha mãe. Ficaríamos longe por dois anos.
No trabalho, meus amigos ficaram espantados. Pedi demissão no dia 2, e peguei o ônibus às dez da noite.
Na noite do dia 3, conversei bastante com minha mãe, e no dia 4 peguei o ônibus rumo a São Paulo, onde ficava o CTM.
Parti com uma mala emprestada – que devolvi ao retornar – e fui com os recursos limitados da época. As últimas palavras de minha mãe, ao me ver entrar no ônibus em frente à nossa casa, já com lágrimas nos olhos:
"-- Viva Sião!”
Ambos sabíamos o que ela queria dizer...
15. Condições adversas não duram pra sempre.
Enquanto servi em Recife, morei num bairro chamado Casa Amarela. O bairro era bom, mas a casa dos missionários tinha a fama de ser a segunda pior da missão. (Um dia, visitei a pior, e realmente a nossa era a segunda!)
Ali matávamos um escorpião por dia, às vezes mais de um, e no porão da casa havia uma crescente ninhada de ratos. Como a água não era constante, tomávamos banho de caneca, pegando a água num latão.
Certo missionário foi enviado para essa casa como sua primeira área na missão. Assim que ele botou o pé na soleira da porta, a água voltou às torneiras. Sem prestar muita atenção ao recémchegado, começamos a pular e vibrar de alegria pela chegada da água.
A princípio ele pensou que a festa fosse pra ele. Quando percebeu a realidade, olhou pra trás pra ver se o táxi já havia partido. Ele comentou mais tarde que por um momento, pensou em retornar dali mesmo.
Nessa casa, tivemos muitas alegrias. Conheci muita gente boa naquela área, e vi de perto o bom exemplo de líderes comprometidos. Na casa de um vizinho, comemorarmos meu aniversário de 22 anos. Teve até foto! =)
Ali também vivi algumas aventuras. Lutei bastante com os outros missionários, pra ver quem derrubava o outro no chão. Soltei peido alemão no quarto da outra dupla, rastejando cuidadosamente para deixar o copo embaixo de uma das camas no quarto ao lado.
E ali também me lasquei.
Criei uma bombinha com um fósforo colocado num papel de pão em formato triangular. Não tinha pólvora dentro, por isso nunca iria explodir.
Joguei uma dessas por baixo da porta do banheiro quando outro missionário estava tomando banho. Ele ficou muito bravo, e apagou a bombinha pensando que ela pudesse explodir.
A vingança veio a cavalo. Como ele acreditou que eu havia aprontado uma pra ele, comprou uma de verdade e jogou quando eu estava tomando banho.
Lembro-me como se fosse hoje: Ao escutar o estrondo, me segurei na beirada do latão azul e larguei a caneca do banho.
O banheiro ficou fumaça pura, e enquanto meu ouvido zunia, fiquei rindo do acontecido!
16. Missionário não tem dublê.
Logo na primeira semana de missão, fizemos uma reunião e convidamos a comunidade pra participar. Como anunciamos que teria bolo – caprichado por sinal – apareceram 120 pessoas. Os missionários bolaram uma peça teatral cômica, e me escalaram no elenco.
Eu fazia o papel de um médico maluco, que receitava uma espécie de pastel para qualquer tipo de doença. Acontece que nós tínhamos que sair e entrar de cena um monte de vezes, cada vez falando as mesmas frases com uma entonação diferente: com raiva, gargalhando, cantando, com medo, em câmera lenta, acelerado, etc.
Por trás dos bastidores eu estava ‘pregado’, e quando nossa entrada era anunciada, lá íamos nós mais uma vez fazer a galera rir.
Naquela noite aprendi que seja qual for o tamanho da equipe, a participação de todos é necessária!
Fui acompanhar uma missionária até a rodoviária. Ela havia sido transferida para outro estado. Antes de entrar no ônibus, ela me disse: “Élder Nunes, eu nunca viajei sozinha, ainda mais essa distância. Se o meu pai ficar sabendo, ele não vai gostar.” Eu respondi: “Faz de conta que eu sou seu pai. Vai lá e entra naquele ônibus, e quando seu pai ficar sabendo, você já vai estar no destino há um tempão!”
Ela botou um chapéu de palha na cabeça e obedeceu. Ainda hoje me lembro de sua expressão de espanto ao acenar enquanto o ônibus partia... Naquele momento, pensei comigo mesmo: “O que foi que eu fiz?”
Ela chegou bem ao destino, e ainda hoje nos comunicamos pelo facebook.
17. Na missão, você não vai resolver os problemas de todos.
Embora eu já desconfiasse disso, na missão a gente se sente assim meio herói, e acaba topando qualquer parada.
Quando a coisa sai pela culatra, bate aquela frustração!
Já era noite. Aquela mãe trabalhava na padaria, por isso acordava bem cedinho. Seu único filho, de oito anos, havia passado a madrugada com o nariz sangrando, e ela estava exausta.
Sentei num banquinho de uns vinte centímetros, parecido com aqueles de ordenhar vaca, e meu companheiro sentou-se na única cadeira da casa. A mãe sentou-se na cama ao lado do filho.
Ouvimos uma buzina. Era o namorado dela que, ao saber que estávamos ali, nem quis chegar.
Fiquei pensando na quantidade de provações que aquela mulher franzina conseguia enfrentar, e por um momento senti vontade de assumir aquela família em companhia dela, para que ela pudesse descansar.
Não que eu tivesse ao menos paquerado a mulher, mas era tanta coisa pra ela fazer ao mesmo tempo, e o ‘namorado’ ajudava tão pouco, que pensei em me intrometer no assunto.
Logo percebi que havia milhares de mulheres naquelas condições pelo mundo afora, e eu era apenas um. Era melhor tocar pra frente mesmo.
Numa conferência de missionários, um deles subiu ao púlpito e ‘meteu o pau’ no que fazíamos, dizendo que não fazia sentido tentar ensinar o evangelho pra quem não tinha sequer o que comer.
Depois que ele desceu, o presidente tomou a palavra e nos explicou que nossa intervenção não era política ou social, mas que o ensino do evangelho por si mesmo ajuda as pessoas a saírem da pobreza por sua própria conta.
Mais uma vez, aprendi sobre a paciência daquele presidente para com os que tinham uma visão mais limitada.
18. Cometer erros faz parte do processo.
Quando fui chamado para presidir o Ramo Palmares, a frequência despencou. Nos próximos dois meses, tornou-se um verdadeiro desastre.
Nove meses depois, tive minha última entrevista com o presidente de missão antes de voltar pra casa.
No meio da conversa, ele me perguntou: “Élder Nunes, você lembra o que aconteceu quando te chamei para presidir o ramo em Palmares?”
Fiz que sim com a cabeça.
Ele prosseguiu: “Por que você acha que não te desobriguei, nem te transferi?”
“Sei lá!”, respondi.
“Foi pra te mostrar que quando alguém na sua equipe não corresponder às suas expectativas, você não deve descartar a pessoa, mas sim treiná-la para cumprir melhor as responsabilidades.”
“Daqui a vinte anos, você provavelmente vai ocupar alguma posição de liderança. Ao chamar alguém para uma função, lembre-se que treinar a pessoa é melhor do que dispensá-la.”
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Invoco as bençãos do Senhor sobre vocês, meus caros amigos, para que alcancem as estrelas. Se conseguirem tocá-las, grande será vossa recompensa. Se tropeçarem e caírem enquanto se elevam, vocês serão felizes por saber que fizeram o esforço. ~Pres. Hinckley, 10 NOV 1998.
19. Planejar aumenta sua chance de sucesso.
Durante a missão, nos habituamos aos horários. E também às rotinas missionárias. Um dia que a maioria dos missionários adora é o P-day, ou dia de preparação.
Nesse dia, descansávamos, cuidávamos da casa e das roupas e escrevíamos cartas aos nossos parentes. Um dia por semana fazíamos nossos relatórios sobre o desenvolvimento do trabalho.
Essa rotina me levou a colecionar sessenta e quatro cartas da minha mãe, que hoje são um verdadeiro tesouro.
No final da missão, recebi de volta todos os meus relatórios. Por ali, percebo claramente quando comecei a escrever em inglês, e me recordo de experiências muito significativas.
Com o advento da Internet, e a sociedade da pressa na qual estamos inseridos, pouca gente conserva esses hábitos. Mas aprendi por experiência própria que reservar um horário específico para uma determinada atividade amplia a chance de sucesso.
Como professor, percebo muita gente se queixando da falta de tempo para aprender algo. No entanto, encontro essas mesmas pessoas nas redes sociais, e percebo que algumas delas têm uma vida ‘virtual’ bastante intensa!
20. Na missão, suas crenças mais sinceras serão desafiadas.
Sem choro nem vela. Sem colinho de mamãe. =D
Algumas pessoas parecem ter a necessidade de andar por aí contradizendo qualquer um que se ‘atreva’ a espalhar boas-novas.
Por mais de uma vez, após nossas primeiras palestras sobre o evangelho, descobríamos que algum ‘amigo’ da pessoa à qual estávamos ensinando nos seguia para falar mal de nós e de nossas crenças!
Interessante que antes de aparecermos a pessoa não era visitada por ninguém de qualquer denominação religiosa.
Noutras ocasiões, pessoas versadas na Bíblia tentaram nos contradizer em público.
Isso me levou – e a alguns companheiros – a desenvolver um maior compromisso com os estudos e instilou em nós um desejo de estarmos em melhores condições de instruir o povo.
Ou você acha que eu iria sair de casa e ficar batendo perna mundo afora pra destruir a crença de alguém?
Nessas horas, toca o barco pra frente, e continua orando por todos os envolvidos.
Mesmo que os cães façam barulho, a caravana não pode parar.
21. A felicidade pode estar nas coisas mais simples.
Uma vez conhecemos uma senhora bastante versada nas escrituras que aceitou o convite para visitar a igreja numa reunião de integração. Tivemos a ideia de fazer um sorteio durante a atividade. Embrulhamos numa enorme caixa azul a surpresa, e distribuímos os papéis numerados para todos os presentes.
O número dela foi sorteado, e levei até ela aquela caixa pesada. Quando ela abriu o pacote e olhou dentro dele, seu rosto se iluminou. Era uma melancia! Mas o melhor ainda estava por vir...
Ela ergueu a melancia com as mãos bem acima da cabeça, e vibrou como se estivesse comemorando um gol da seleção! Aquela euforia contagiou a galera toda, e ficamos surpresos com tamanha demonstração de alegria com algo tão simples.
Anos depois, tentei repetir a façanha num auditório repleto de alunos com seus pais, e o tiro saiu pela culatra: o rapaz sorteado ficou envergonhado por ganhar a melancia.
Nas semanas seguintes, os outros alunos começaram a chamar o rapaz de ‘melancia’, e eu tive que entrar de sala em sala pedindo que parassem com a brincadeira.
Seres humanos... Vai entender!
22. Se você souber oferecer, haverá quem aceite.
Uma das coisas que aprendi nos treinamentos é que se contarmos nossa história de modo adequado, as pessoas vão querer saber mais.
Antes da missão, fiquei desempregado uma vez. Após a missão, duas. Numa delas, nossa família criou algo ao qual chamamos ‘Inglês nos Bairros’.
A jogada era simples: Pintamos umas camisetas com glitter e improvisamos alguns panfletos. Com a ajuda dos nossos filhos – que na época eram pequenos – saímos pelas ruas do bairro, panfletando de casa em casa e convidando as pessoas.
As aulas seriam numa igreja, e eu pagaria uma porcentagem para o líder daquela congregação. Em poucos dias, tínhamos algumas classes funcionando, com dezenas de pessoas aprendendo e se desenvolvendo. Por quê? Porque acreditaram em nossa história.
O mesmo princípio se aplica a diversos aspectos da vida. Quando vamos paquerar alguém, ou buscar um novo emprego, ou criar um negócio próprio...
Sempre vale a pena contar uma boa história.
23. Contribuir para o progresso de alguém traz grande satisfação.
E como para o missionário todos merecem uma chance de conhecer os princípios do evangelho, ele se torna quase imbatível em seus esforços.
Quando a pessoa que está estudando passa por mudanças significativas em seus hábitos, o missionário presencia verdadeiros milagres.
Talvez um dos maiores seja, embora imperceptível para a maioria, quando a pessoa começa a experimentar uma paz de consciência.
Ela sabe que está dando o melhor de si. E o missionário sabe que também está fazendo a sua parte.
Tive o privilégio de presenciar esse fenômeno diversas vezes. Quando a pessoa percebe – e passa a acreditar de forma prática – em sua herança divina, ela costuma enxergar a si mesma sob uma nova ótica. E essa atitude permeia todo o seu ser.
Anos mais tarde, ao servir como bispo na igreja, vivenciei o mesmo ao entrevistar pessoas e convidá-las a dar passos em direção ao desenvolvimento pessoal alicerçadas no evangelho de Jesus Cristo.
A alegria de participar desse processo é algo indescritível!
24. Um desafio bem feito gera resultados.
Como as palestras missionárias são baseadas em doutrinas e compromissos, durante os momentos de ensino geralmente convidamos os envolvidos a colocar em prática algum princípio do evangelho.
Para alguns, o desafio maior é deixar de beber, fumar, ou fazer alguma atividade no domingo. Para outros, pagar o dízimo, viver a lei da castidade ou perdoar a si mesmo.
Esses convites costumam ser acompanhados por promessas bastante específicas. Em busca desses objetivos, e devidamente acompanhadas, as pessoas costumam apresentar resultados notáveis.
Na vida familiar, quando se tem filhos, o mesmo princípio funciona de modo excelente.
Por diversas vezes, coloquei em prática com meus filhos: “Se vocês deixarem de usar a mamadeira...”
E eu fazia uma promessa atraente – e verdadeira – de acordo com os interesses deles no momento.
Assim, os três mais velhos largaram a mamadeira no mesmo dia, e ainda fizeram pose no exato momento em que a atiravam pra bem longe!
25. Os registros nos fortalecem por toda a vida.
Vinte e cinco anos após minha missão, ainda releio meus diários. E a cada vez percebo que minha curva de aprendizagem era muito mais acentuada do que atualmente.
Quando retornamos da missão, é natural que essa curva de aprendizado tenda a ser mais amena quando voltamos pra rotina da vida após a missão.
Entretanto, o rumo traçado precisa ser mantido, e a lembrança de tantas pessoas e acontecimentos especiais me faz recordar daqueles doces sentimentos que experimentei e reacende mais uma vez o desejo de viver o evangelho mais intensamente.
Em outras palavras:
Quem põe em reserva, seja material, intelectual, física ou espiritualmente, se prepara para os desafios de toda a vida.
26. Aprender é para sempre.
No dia 21 de fevereiro de 1991, registrei:
Anteontem, conversamos com um homem que acreditava ser a Bíblia a única escritura existente.
Então, enquanto eu pegava a Bíblia para lermos juntos Ezequiel 37:15-20, pensei: “Será que encontrarei o livro de Ezequiel com facilidade? O que passará pela mente deste homem, caso eu demore a encontrá-lo? Devo ir direto ao índice?”
Ontem, durante o horário de estudo da manhã, decidi fazer alguma coisa para corrigir esta situação: memorizar os 66 livros da Bíblia, na ordem em que estão escritos.
Preparei um gráfico numerado e coloquei-o à vista, para lembrar sempre. Então, comecei a pensar na ordem dos livros em todos os momentos em que minha mente estivesse vaga.
Hoje pela manhã peguei a Bíblia logo cedo, e continuei o processo.
Agora, já posso dizer os primeiros 27 livros, em ordem. Sinto que é preciso traçar metas para a vida, e que posso desenvolver-me muito, muito mesmo, caso faça com que os momentos de ociosidade se convertam em trabalho, a meu favor.
27. Com o tempo, as histórias familiares se tornam preciosas.
No dia 20 de julho de 1991, registrei:
O acontecimento mais importante que decidi registrar hoje é a conversão, ou o início desta, de minha família ao Evangelho de Jesus Cristo, conforme restaurado à terra através do valente Profeta Joseph Smith, e os acontecimentos que nos levaram à tal conversão.
Minha mãe sempre foi uma católica praticante da fé que abraçava, comparecendo regularmente à Igreja, buscando viver o evangelho e até mesmo lecionando catecismo.
Tendo se casado em 1967, continuou a praticar sua fé até aproximadamente meados do fim da década de 70 quando, não sei motivada por qual objetivo, acompanhou meu pai na busca de algo mais do que tinham até então.
Fomos juntos a diversos lugares religiosos, e vimos de perto um pouco do amargo lado da vida, até que por fim meu pai decidiu ser batizado numa igreja protestante.
Minha mãe continuou examinando com um coração sincero tudo o que lhe vinha à mão em relação ao assunto.
Meu pai foi o maior missionário que já vi frente a frente nesta vida. Ou talvez, foi o seu modo de viver o que mais me influenciou, inspirando-me mais do que qualquer outro à luz das santas escrituras, a Igreja do Senhor Jesus Cristo.
Estudando com afinco, ele descobriu princípios muito importantes, sem contudo acertar em sua maneira própria de interpretá-los. Ele descobriu o princípio do armazenamento, e começou a armazenar feijão, óleo de soja e dezenas e dezenas de pratos.
De acordo com seus estudos, ensinava cada vez mais o que compreendia do Evangelho. Em certa ocasião, comprou muitos metros de um plástico preto, com o objetivo de armar uma barraca à beira de algum rio, quando fosse batizar alguém. Ele acreditava que necessitaria de uma barraca para trocar as roupas, e até mesmo que batizaria alguém... Que fé!!
Qual não foi minha surpresa quando o vi entrar em casa apressado, acompanhado de um colega de trabalho. Os dois fizeram alguns preparativos e meu pai anunciou: “—Esse é o Fernando, que trabalha comigo no supermercado. Ele vai ser batizado hoje.”
Naquele mesma noite entraram juntos em algum rio, e meu pai batizou o tal homem. Nunca me esqueci da humildade daquele homem, ao ser batizado por um outro que nem sequer frequentava alguma igreja.
Creio que, caso meu pai tenha cometido muitos erros no decorrer da vida, foi porque ele viveu disposto a FAZER as coisas. Ele sabia fazer a diferença.
Antes de afastar-se do protestantismo, acompanhou seus irmãos de fé a um monte para orarem durante toda a madrugada até o nascer do sol.
Naquela noite, antes de sair, pegou um terço de rezas da minha mãe. O pingente, dizia-se, portava uma porção de terra do Calvário. A terra realmente estava lá; só não sei se vinha do Calvário mesmo. Levou consigo também um livro de Allan Kardec, que minha mãe estava estudando e, naquela noite de vigíli e orações, queimou tudo numa fogueira que acenderam lá no monte.
Ao saber do fato, minha mãe foi direto ao guarda-roupa dele, pegou tudo o que encontrou pela frente e tocou fogo em cima da laje. Ele queimou as coisas dela no monte... E ela queimou um monte de roupas dele!
Neste dia tomaram uma triste decisão, e passaram a dormir em quartos separados. O tempo foi passando...
Nesse intervalo, ele ganhou de alguém, não sabemos onde, O Livro de Mórmon, e presenteou minha mãe com as seguintes palavras: “-- Veja se esse livro paga aquele outro que eu queimei...”
Como mineira que se preza, e que trabalha no silêncio, ela começou a examinar o livro. Dali a poucos meses, meu pai mudou-se para outra casa, e em pleno dia de Natal de 1981 eu o acompanhei na mudança. Me lembro que tínhamos um colchão de espuma com um buraco no meio que carregamos na bicicleta, e não me lembro mais de nada!
Aquele foi um Natal muito triste.
No dia primeiro de março do ano seguinte ele faleceu, e logo voltei à casa de minha mãe.
Enquanto lia atentamente o livro, ela reconheceu nele os ensinamentos do mesmo Mestre que conhecera na Bíblia, e disse-nos a viva voz que, se existisse na terra alguma igreja que ensinasse e vivesse os princípios contidos no livro, deveria ser forçosamente a do Salvador.
Desde então, começou a procurar a igreja, não obtendo êxito. Até que finalmente encontrou embaixo daporta um folheto contendo uma mensagem de A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
Após empreender nova e longa busca pela origem do folheto, foi informada pelo Cássio, meu irmão, de o folheto havia sido dado pelo Valter, o vigia do cemitério.
O Valter, por sua vez, informou que o folheto tinha sido entregue por dois ‘alemães’ que o encontraram na rua, e que a Igreja ficava no bairro Aterrado.
Nos dias que se seguiram, minha mãe andou pelo Aterrado de rua em rua, procurando a capela.
Depois que a encontrou, já ia pela terceira vez seguida no domingo à noite (porque a missa era ao entardecer), quando alguém que passava lhe informou que as reuniões eram de manhã.
No domingo seguinte, lá estava aquela magra, maravilhosa e persistente senhora às portas da igreja, dessa vez pela manhã.
Ela teve uma má impressão da primeira reunião que assistiu, pois notou na organização das senhoras que elas estavam tão bem vestidas a ponto de ficarem vaidosas.
Que decepção!
Não presenciou o que havia antevisto devido ao livro, e já estava a caminho de casa quando uma moça chamada Rosângela Rezende Nunes ofereceu uma visita dos missionários.
Ela consentiu.
Os élderes Pherson e Mattos começaram a ensinar as palestras. Depois Élder Wiggins chegou para acompanhar o Élder Mattos, e futuramente foi substituído pelo Élder Teodoro.
A princípio minha mãe reconheceu a necessidade de ser batizada pela devida autoridade do Sacerdócio, mas tinha planos de futuramente se ausentar da igreja.
Foi batizada em maio de 1982. Meu irmão e eu aos 27 de junho do mesmo ano. Tive o privilégio de batizar minha irmã Suzana quando ela fez oito anos, e meu irmão a confirmou.
O Cássio e eu fomos batizados pelo Élder Scott Barney Wiggins, e confirmados pelo Irmão Celso Fonseca.
Aos 27 de julho de 1987 fui ao templo sagrado em São Paulo, e fui batizado em lugar e favor de meu pai, Cícero Bernardo Nunes.
28. Uma mãe pode lembrar detalhes melhor do que ninguém.
Certa vez recebi uma carta escrita por minha mãe contando as circunstâncias do meu próprio nascimento.
Ela respondia a pergunta de uma amiga: “Como foi o dia em que o Charlles nasceu?”
A resposta que minha mãe escreveu foi tão preciosa, tão rica em detalhes, que nossa amiga me repassou a carta, sabendo que se tratava de um tesouro familiar.
Eu a registrei no diário no dia 28 de novembro de 1991.
Ainda hoje levo comigo esse hábito. Fazer as perguntas que permitam as pessoas compartilharem suas ideias, suas histórias e seus sentimentos. Sempre me lembro do que minha mãe escreveu no final daquela carta: “Muito obrigado por perguntar, e me fazer lembrar esses doces sentimentos...”
Eis a carta:
= = =
Volta Redonda, 15 de julho de 1991.
Oi Querida Amiga,
Fico sempre feliz ao ler suas cartas porque posso sentir através delas o seu grande e forte testemunho das coisas eternas que realmente contam para nos fazer felizes para sempre. Não mude nunca porque assim você é feliz e é capaz de fazer felizes as pessos que partilham as estradas da vida com você. Obrigada.
Recebi seu telegrama no meu aniversário, fiquei mais contente, obrigada por ele também.
Agora vou tentar fazer o que você me pediu, não sei se vou conseguir, mas vou tentar.
Primeiro ou fazer um ‘prefácio’ daquele tempo: (1968).
Eu morava num porão (1 cômodo, como agora) na Rua Angola, número 105 – fica atrás do Grupo Escolar Municipal Minas Gerais. Talvez você saiba onde é.
O Cássio tinha 4 meses quando fiquei esperando o Charlles.
Ficamos felilzes com a esperança de termos + 1 filho, mas muito preocupados porque estávamos muito pobres, meu marido trabalhava vendendo arroz para a firma Dacas lá no Sul de Minas. Viajava na segunda-feira e só retornava na sexta-feira. O que ganhava não dava pra nada. Nesse tempo até para o leite do Cássio a minha vzinha Dona Neuza me ajudava enquanto meu marido viajava e tentava melhorar.
De repente mais um filho, ficamos preocupados, mas tínhamos fé e confiança em nosso Pai Celeste e tocamos pra frente. O dono do quarto que morávamos (marido da Dona Neusa) era, e ainda é um amigão: Construiu uma casinha nova (meia água) nos fundos da casa deles e nós nos mudamos pra lá.
Melhorou.
Lá pelo quarto mês de gravidez (mais ou menos) meu marido conseguiu um emprego de motorista e vendedor dos cigarros da Companhia Sabratt. O salário era ótimo e as esperanças renovaram; compramos um terreno lá na Vila Elmira, material para a construção, e meu pai e um amigo dele combinaram de construir pra nós. Foi marcado o dia do início da construção, e eu faria o almoço pra eles (feijoada, farofa e arroz). Tudo combinado para o dia seguinte, 29 de julho de 1969.
28.07.1969, 22 horas: 1ª dor... a 2ª... a 3ª e vamos para o Hospital (Casa de Saúde São José). Felizmente tinha direito ao INPS porque antes não tinha: o Cássio nasceu em casa e a Suzana também.
Chegando lá fui atendida. Fizeram os preparativos para o parto e fui para a sala de parto. Meu marido continuava lá na sala de espera. Não tinha movimento nenhum no hospital, tudo silêncio, o maior frio, a enfermeira dormiu num sofanete num cantinho e eu fiquei com minhas dores...
Quando já não aguentava mais, joguei nela alguma coisa que pude pegar. Ela acordou, deu uma olhada e saiu correndo pra chamar o médico que estava dormindo no alojameto fora, mas perto. (Dr. Hiraj, um japonês.)
De repente ele chegou, abotoando o jaleco apressado... Mas não precisava mais correr, porque lá já estava um grande homem chorando: O Sr. Charlles Bernardo Nunes, o bebê mais lindo do mundo às 3 da madrugada do dia 29.07.69.
Nessa mesma hora o pai corujão saiu de mundo afora acordando todo mundo e dando a boa-nova.
A construção foi iniciada, o almoço foi feito pela Dona Neuza e na hora da visita encheu o quarto de homens sujos de terra MAS CHEIOS DE AMOR, e lá estava ele todo lindo de mão em mão recebendo as boas vindas de todos.
= = =
Taí Amiga, foi assim, nada de especial, mas para mim foi um dia muito feliz e para todos que nos amavam e estavam junto de nós, muitos dos quais já não estão mais aqui e eu te agradeço pela oportunidade de me fazer lembrar e sentir muita saudade...
Acabou o assunto, perdi o jeito...
Amo você. Até breve.
Cacilda
29.