CORTANDO A GARGANTA PELOS ALVÉOLOS
CORTANDO A GARGANTA PELOS ALVÉOLOS
Eram tempos da ditadura militar, em 1978, e a liberdade de um estudante era quase nada, perante o poder autocrático dos professores, quase todos doutrinados pela máxima dos algozes da democracia, onde mandava quem podia e obedecia quem tinha juízo.
Mas como cobrar juízo de alunos que não aprenderam filosofia ou sociologia, e nem noções de civismo ou de direitos humanos? Pois, na prática, o que tínhamos de orientação comportamental provinha das antigas tradições, as quais vinham sendo abaladas pelo pós segunda grande guerra, além do movimento hippie e a guerra do Vietnã, que mexeram profundamente no jeito hegemônico norte americano, que já influenciava fortemente o modo de vida dos países satélites, como era o caso brasileiro.
Numa certa cidade de médio porte do interior da Bahia, era notório a força de mando de alguns professores mais abastados, seja em escolas públicas ou particulares. Não só ocorria pela questão econômica, mas por formação doutrinária, a qual lhes permitia não serem questionados acerca dos seus estilos brutais de lecionar.
Era uma época em que se estudavam em livros como o B.S.C.S. (literalmente em inglês era o título: Biological Science Curriculum Study), impondo-se a cultura dos EUA a todo custo.
E por isso, alguns docentes se deliciavam como a rainha da estória da Branca de Neve, buscando tratar os alunos como se lhes fossem meros subalternos, ao contrário de discípulos, como o fizeram os clássicos mestres greco-romanos e os outros que seguiam as doutrinas libertárias da revolução francesa.
Fora naqueles idos, que uma professora de biologia, conhecida por sua radicalidade e têmpera difícil, acostumada à bajulação, como condição primária para aprovar seus alunos, discutia entusiasticamente na porta da sala em que iria iniciar mais uma aula, com o professor de português, onde o mesmo lhe falava sobre a primeira nota máxima que havia avaliado um de seus alunos. Como resposta, ela bradou que ninguém havia conseguido essa façanha na sua matéria curricular.
E naquele momento, como num repente, sem medir suas possíveis consequências, um aluno reclama perante seus colegas de classe, em tom irônico, expressando: "como seria possível tirar uma nota dez com ...?"
Não sabia ele que uma das leis da física fazia com que o som ecoasse no ambiente da sala de aula de teto forrado, no sentido da diagonal. Então, a professora que estava à porta de entrada, num dos cantos do espaço retangular da sala, se viu ouvindo nitidamente a chacota declamada, mesmo que tenha sido proferida por um adolescente de meros treze anos de idade.
O absurdo e cruel fato que veio a ocorrer a seguir, foi a professora, num ato contínuo, ter reunido toda a classe, com a portas fechadas, para decretar solenemente que aquele aluno não precisaria continuar seus estudos naquele ano, e que ela já o considerava reprovado, pois "iria cortar a sua garganta pelos alvéolos"!
Imaginem a ineditude do ato, pois demandaria ter que rasgar-lhe os pulmões para alcançar os alvéolos, percorrendo suas vias aéreas até chegar ao pescoço, onde encetaria seu propósito de degola ou guilhotina, que enfim lhe cortaria a garganta.
E esse foi um gesto verídico, tornado público agora, que deixou sequelas na auto estima daquele garoto, o qual se debateu durante o restante do ano, como um peixe fisgado pelo anzol, mas sem chance alguma, como se arpoado também estivesse, morrendo aos poucos.
De nada adiantou ser magnífico em história, geografia ou redação, pois não conseguia vencer os ardis da sua algoz.
Numa certa feita, ele decorou todo um texto e se preparou para a contenda que era, participar das avaliações da pseudo Medusa, com suas perguntas enigmáticas. E lá chegando, respondeu a uma das questões categoricamente igual ao contido no livro, sem tirar e nem pôr. E qual não foi sua surpresa, quando viu sua nota para a dita questão ser avaliada com um risco, tornando-se zero.
Só que semelhante resposta fora postada por outra aluna, que gozava de prestígio junto ao corpo docente, pois sem deixar de ser inteligente, era aluna dócil e obediente. E para ela a nota fora a máxima, contrastando com o zero que lhe fora proferido.
Imaginem como eram os tempos de outrora e tentem se ver vivenciando aqueles momentos que deixaram marcas profundas. Feridas abertas que talvez não tenham ainda cicatrizado, mesmo com a luta para o perdão.
Como seria a vida no hoje, sem traumas assim, que talvez tivesse permitido outros caminhos e escolhas, sem as mesmas cicatrizes e sob óticas e incentivos mais altivos? Não seriam as histórias das viagens planejadas, vividas com início, meio e fim?
Seria talvez como abrir o livro e ler todo ele, podendo aprender e tirar melhores conclusões, ao contrário da sina que lhe foi imposta, de não se ver concluindo os trabalhos com segurança, sempre com medo da maneira que será julgado, temendo a opinião dos outros, se menosprezando às vezes ou sempre, machucado que foi, quando precisava e esperava carinho.
E ainda assim, vemos gente a defender governos com disciplina militar, que não nos permite nem pensar, escrever ou declamar, quando muito só andar, nem correr e nem amar, para no fim todos perdermos a esperança e a alegria, como o ferro sob a maresia carcome tudo a enferrujar, enfraquecendo até morrer.
Publicado no Facebook em 25/04/2018