MÃES ABANDONADAS - OUTRO OLHAR SOBRE A VIOLÊNCIA FEMININA

Alguns assuntos explorados pela mídia, nesses últimos tempos, têm indignado a sociedade brasileira por tratar de violência contra crianças recém-nascidas. As manchetes são típicas das colunas policiais: “Polícia detém mulher por tentar comprar bebê ...”, “Policiais encontram recém-nascido abandonado...”, “Mulher abandona bebê...”, “PM encontra recém-nascida abandonada...”, “TJ mantém guarda de bebê achado...” etc. [1]

As reações de leitores e telespectadores são muitas, imediatas e indignadas. “Mãe que abandona o próprio filho deveria ser linchada”; “trata-se de crime hediondo, ninguém tem o direito de tirar a vida de outrem, quanto mais de uma criança”; “mães que entregam os filhos à adoção são desnaturadas”, etc. Essas respostas sobressaem-se entre muitas outras que se repetem nas agressivas palavras dos formadores de opinião com espaço nas transmissões televisivas.

E quem não há de discordar da atitude de uma mãe que pratique maldades contra seus próprios filhos? E quem não concorda que deva haver leis para barrar sentimentos de agressividade para que a espécie não pereça?

Nesse sentido, não se pode considerar apenas o abandono com os fins de ceifar a vida do nascituro. Há também o abandono em portas de casas, entidades religiosas e entrega para adoção de acordo com as leis vigentes. Pode-se especular que as ocorrências de abandono se deem pela falta de condições emocionais, físicas, financeiras, etc. que não permitem às mães ao término da gravidez cuidar adequadamente de seus filhos. E a visão que se tem dessas mães é de que são criminosas e deveriam ser linchadas. Será?

Deve ser levado em consideração que a gravidez que dá satisfação e prazer é a mesma a criar estados depressivos e de pavor. Claro que os sintomas variam de mulher para mulher. Aquelas que já foram mães fazem ideia de como agiu a gravidez sobre sua fisiologia e sobre seu psiquismo. Essas certamente entenderão o que se passa na cabeça das que abandonaram seus filhos à sorte.

Os homens e as mulheres que ainda não passaram pela experiência da maternidade, mesmo dispondo de laudos periciais, não podem avaliar as condições emocionais de quem pratica tal comportamento.

A psicose puerperal e a psicose gravídica, desordens mentais que atingem as mulheres durante e após a gravidez, turbam de tal sorte a consciência que levam as mulheres à prática inclusive de crimes, não só contra o próprio filho, mas contra familiares.

Em Medicina Legal, livro escrito nos idos de 1940, Hélio Gomes, já advertia sobre a psicose puerperal:

É uma das modalidades das psicoses infecciosas. A infecção puerperal é a sua causa. As manifestações mentais surgem logo após o parto. Formas leves de infecção puerperal, mesmo desapercebidas, podem ser a causa de vários distúrbios psíquicos. As doentes apresentam–se confusas, desorientadas, com falsos reconhecimentos, delírio, onírico, excitação psicomotora. Podem surgi, em fase avançada, torpor cerebral, desorientação no meio, espaço e tempo, retardo da percepção. O diagnóstico das psicoses infecciosas é fácil; a duração da doença é curta; a cura é a regra geral. [2]

E ponderando acerca da psicose gravídica, dizia:

São desordens mentais decorrentes da auto-intoxicação gravídica, independentes da infecção puerperal. O quadro é o da confusão mental. Se os distúrbios psíquicos aparecerem durante a lactação, teremos as psicoses de lactação. [3]

Fischer, citado por Hélio, “afirma que a mulher mais normal sofre transtornos psíquicos durante a gravidez, notadamente alterações de consciência, depressão moral e entorpecimento mental.” [4]

Percebe-se assim, que, diversos fatores atuam na fisiologia e psiquismo da mulher em todos os períodos críticos de sua idade. As ligeiras modificações do humor e da conduta até as alarmantes manifestações de loucura gravídica estão enquadradas no Código Penal. Os efeitos dessas psicoses vêm sendo objeto de estudo da psiquiatria forense há muito tempo, subsidiando o direito penal, com o estudo que leve ao reconhecimento das causas e a melhor aplicação da medida de segurança.

No Código Penal, o ato de deixar o recém-nascido ao desamparo é crime, como também o são o aborto voluntário e infanticídio. A mãe, caracterizada a ocorrência de do crime e da existência de indícios de autoria, será acusada pelo MP. Aos jurados, diante dos elementos probatórios a ser produzido, caberá decidir se a mãe é culpada ou inocente dos indícios de autoria do crime imputado a ela. Por convicção, o juiz poderia dar absolvição sumária ou mesmo desclassificar, claro, dependendo do suporte fático. [5]

É ampla a jurisprudência acerca de eventos penais que envolvem abandono, aborto e infanticídio. Escassa é a investigação de caráter científico que paute as causas e os efeitos deletérios sobre a construção da autoestima das mulheres, depois do crime ou do abandono. Sobre o crime feminino indica-se o texto “A Mulheres no banco dos réus: o x da questão”, publicado neste portal. [6]

A preocupação presente é com o fenômeno a ser visto pela ótica da entrega ou abandono de um filho, fenômeno que ocorre desde tempos imemoriais. Mesmo a Bíblia relata alguns abandonos. Ismael foi abandonado no deserto por Agar. Moisés foi abandonado a sua própria sorte no Rio Nilo. O próprio Jesus Cristo também recebeu no Getsêmane o cálice amargo do abandonado.

No Brasil, desde a colônia, há relatos de abandono ou de infanticídio. É de Renata Pedroso que se recolhe a condição da mulher mãe diante da situação de abandono dos filhos no período colonial:

As conseqüências realmente graves da maternidade irregular eram de ordem sócio-econômica e não moral. A pobreza e dificuldades da vida material uniam de mulheres brancas pobres a escravas, confirmando a necessidade feminina de estabilidade e proteção. Para muitas mães solteiras, sem família nem companheiro, o filho passava a significar 'mais uma boca para alimentar'. Tal cenário de extrema pobreza e luta pela vida é um dos motivos que obrigava muitas mães a destinar seus filhos ao abandono ou ao infanticídio, esses dois em maior número que o aborto. [7]

Será que as causas antigas que levavam às mulheres a praticar o infanticídio e ao abandono dos filhos na colônia se modificaram ao longo do tempo? A falta de condições materiais de antes não será a mesma das mães que hoje trabalham, e mesmo assim não dispõem de recursos para sustentar dignamente seus rebentos?

As mulheres modernas por imposição de um sistema de vida que lhe foi imposto, tanto quanto as coloniais, estão expostas a muitos afazeres, aborrecimentos e imprevistos no seu dia-dia. Isso afeta o lado emocional, físico, fisiológico, psicológico tornando-as frágeis e as fazendo tomar decisões muitas vezes inadequadas. Se solteiras com filhos de relacionamentos desfeitos ou de casos fortuitos, ainda hoje a complicação ganha nova dimensão.

“A mãe solteira, sobretudo, tem seu sistema nervoso profundamente afetado. Ao lado das privações econômicas, quase sempre foreiras à maternidade extralegal, ocorrem as contrariedades morais, o abandono de parentes, a crítica dos conhecidos, a excomunhão social.” Afirmação tem mais de setenta anos, saiu dos estudos de Hélio Gomes, mas contemporaneamente, no mundo das redes sociais que favorecem os relacionamentos sociais e sexuais, pouco mudou.

E quem vem em auxílio dessas mulheres e mães em tal situação? As pessoas que vendo os efeitos das psicoses as condenam ao linchamento? O Estado que lhes toma os filhos para custódia em instituições às vezes inadequadas ou os entregam a estranhos sem levar em conta seus reais interesses? O que realmente provocou tal comportamento que as levaram a fazer o que fizeram? Angústia, desespero, medos? Falta de perspectiva de poder dar o mínimo de condições possíveis e adequadas para criar outro ser?

Em Mães Abandonadas: a entrega de um filho em adoção, Maria Antonieta Pizano Motta aborda entre outros questionamentos como os motivos da decisão de doar, os fatores que influíram a decisão, o significado da separação, como evoluiu a vida após a separação do filho. [8]

As primeiras pesquisas sobre o abandono de crianças surgiram nas décadas de 1960 e 1970, principalmente nas obras dos historiadores A. Russel-Wood sobre a Santa Casa de Misericórdia da Bahia, de M. L. Marcilio, sobre a população da cidade de São Paulo entre 1750 e 1850 e de Lima Mesgtravis, sobre a santa casa da misericórdia de São Paulo. [9]

De lá até aqui, proliferaram as publicações em diferentes mídias sobre crianças abandonadas e em situação de risco. Contudo, até 2001, não havia dados disponíveis para se formar um perfil sobre as mães biológicas que abdicam de seus rebentos. Parecia que, até então, ninguém se preocupava em saber de onde saíam as crianças para ser adotadas ou abandonadas. Do tripé a mãe que entrega, a criança e os pais adotivos, o enfoque sempre fora a criança. Naquele ano, porém, Maria Antonieta Pisano Motta, psicóloga e psicanalista, lança o livro.

Enquanto em outros países as agências governamentais e não governamentais que cuidam dos processos de adoção oferecem às mães biológicas o mesmo apoio dado aos pais adotivos, no Brasil trabalhos desse gênero inexistiam.

Justificando sua obra a autora diz: "Escrevi o livro porque coordenei a Comissão de estudos sobre a adoção e vi muitos trabalhos sobre a criança e pais adotivos e nada sobre a mãe que entrega o filho". [10]

Na opinião da autora, psicóloga e psicanalista, as mães não abandonam seus filhos, mas os doam a outras mães: "segundo pesquisas dos EUA, o termo abandono é injusto, porque significa deixar à própria sorte, rejeitar. A entrega não significa falta de sentimento. Claro que há mulheres com problemas, que deixam o bebê em lixeira ou na rua, mas são casos específicos. Em geral, a mãe sofre e entrega a criança acreditando que é o melhor para o filho". [11]

Vê-se então que, a partir de seu contato profissional com o tema da adoção, veio o desafio de investigar a fundo a realidade das mães que ela considerou abandonadas e do resultado da pesquisa, a descoberta dessas mulheres cobertas de preconceitos, surgiu o livro.

O que de início chama a atenção é o título curioso mães abandonadas. Por que não Filhos abandonados? Quando uma mulher entrega um filho à adoção ou o abandona em latões de lixo ou debaixo de uma ponte quem está abandonando quem?

A inversão foi logicamente proposital. Quis a autora construir um novo modelo para o problema da adoção, desfazer-se das velhas formas, criar um novo parâmetro. Em sua concepção, diversos motivos influem a decisão do abandono e em todos eles está presente a mulher mãe sem apoio, sem empatia, sem acolhimento, mais abandonada do que abandonando. Em entrevista sobre o livro é a autora dirá:

Mães abandonadas sim, pois nenhuma denominação melhor se aplica às mulheres que, ainda que juridicamente capazes, terminam incapacitadas emocionalmente pelo estigma que sobre elas recai após entregarem o filho que conceberam em adoção. Nos preocupamos neste trabalho com a “incapacidade” psíquica, pois a preservação da capacidade jurídica em nada garante as condições necessárias para que exerçam sua liberdade de ajuizar sobre sua vida e seus atos de forma consciente e saudável.” [12]

Na parte inicial, Abandono ou entrega novas perspectivas, o livro comenta a atitude preconceituosa com que se denominam as crianças dadas em adoção e sugere a substituição de “abandonado” por “entregue”. A mudança se faz necessária, não como mera mudança semântica, mas em busca de uma expressão mais abrangente que não seja carregada de valor negativo (rejeição, ilegitimidade etc.). Em segmento distinto faz a mesma abordagem com relação a doação e adoção.

Após essa discussão, olhando um pouco para a história, analisa o abandono no mundo e no Brasil. Por aqui, a mulher valorizada foi e ainda é a “boa mãe” e a “boa esposa”, a branca recatada, casada e com descendência com perfil europeizado, desconsiderando o fato de que a maioria dos abandonados tinha em épocas distantes origem em jovens brancas e de condição social elevada. Na atualidade, a situação permanece quase que igual.

Contemporaneamente, a mulher de classe mais abastada, e de condição sociocultural favorecida, por achar-se inserida em uma sociedade competitiva e permissiva sexualmente, e por adiar cada vez mais a gravidez, tem maior significação no universo das doações. A causa talvez não se apóie unicamente na liberalidade sexual, mas no receio de perder as oportunidades oferecidas pelo mercado laboral, fruto de uma ideologia exploradora da força de trabalho feminina.

No capítulo seguinte, Os mitos da maternidade e as políticas brasileiras de adoção, a autora trata do mito da mãe sagrada, desconstruindo o mito segundo o qual a mãe que entrega o filho é destituída da capacidade de amar ou não tem “caráter maternal”. A autora textualmente diz:

Os conceitos de “boa mãe” e de “amor materno” estão calcados e ilustrados por mitos e crenças que compõem nosso imaginário social somados às nossas recriações e idiossincrasias pessoais. Existe, portanto, entre nós um conjunto de elementos simbólicos e imaginários a partir do qual fora construídas certas redes de significação em cujo bojo a idéia de maternidade acabou por se constituir sob um determinado modelo”. [13]

O capítulo se encerra narrando, entre outras temáticas, a não-maternidade estigmatizada, considerando a opção das mulheres que são incapacitadas biologicamente para a maternidade ou escolheram ter filhos adotivos. Exemplifica com a adoção fechada assumida e legalizada no ECA que entre outras conseqüências cria um abismo ente o adotado e o conhecimento de suas origens, reforçando preconceitos dos pais adotantes em relação às mães que entregam suas crianças.

Em síntese, nos capítulos referenciados e no restante do livro, a autora trata das experiências humanas do abandono e da adoção. Nesse caminho, mostra algumas ações inovadoras como a adoção aberta e atendimentos interdisciplinares com ênfase na terapia psicológica, que, se adotadas em instituições brasileiras (algumas já o fazem), propiciará a aproximação da coletividade com as mulheres que entregam seus filhos em adoção, sem o estigma de desnaturadas.

Ao trazer à tona as angústias e a situação das mães que se depararam com decisão tão dramática, a autora leva à reflexão sobre as causas e a luta solitária daquelas que, abandonadas, empreendem um comovente esforço para reiniciar suas vidas, mesmo que lhes faltem olhares de compreensão e sejam vistas, apenas, pela ótica do preconceito dos acusadores.

Dos problemas detectados, dos encaminhamentos sugeridos para apagar os estigmas, ao final da leitura, se conclui que não haver políticas públicas que evitem a decisão do abandono. Que faltam projetos profiláticos que tranquilizem essas mulheres e as façam decidir sobre suas vidas, sopesando com racionalidade o custo da dor e do luto, que as acometerá após a entrega.

Iniciativas como a publicação do livro com conteúdo tão necessário dão esperanças do surgimento de um novo olhar sobre essas mulheres abandonadas pelas políticas públicas e pelo preconceito, que não permite enxergar nelas a necessidade de acolhimento e de amparo.

As mulheres que se veem diante de episódios trágicos, como o abandono ou a entrega para adoção de filho são mães abandonadas, como o título da obra nomeia. Que o direito Penal pouco tutela e a opinião pública instigada por falsos moralistas exige mais punição e menos compreensão. Mães abandonadas pelas poucas instituições de acolhimento. Mães abandonadas no luto surgido depois da entrega e que sequer tem reconhecimento socialmente.

Esse novo olhar será capaz de trazer estímulos a um reposicionamento de quem no ranço do preconceito, ainda, julga apressadamente o comportamento dessas mulheres.

Na ocorrência de um movimento humanizante, quem sabe, em breve as manchetes já não falem em punição por abandono de incapaz, podendo a mulher ser presa por um período que varia de 3 meses a 6 anos.

Quem sabe as crianças abandonadas em lixeiras, debaixo das pontes ou entregues espontaneamente em adoção, quiçá saiam das colunas policiais e ganhem os noticiários econômicos, esportivos e sociais graças a formação sócio-educativa que receberam dos pais biológicos ou adotivos, vivendo em plena harmonia.

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Exemplos colhidos aleatoriamente na internet.

[2] GOMES, Hélio. Medicina Legal.Rio de Janeiro, 1949, p.270.

[3] Idem, 217

[4] Idem, p.217.

[5] No âmbito civil, diversas são as situações. Uma delas é que a mãe por carência econômica e abandona o recém nascido, na maternidade ou na rua. Outra é que a mãe viva em situação de prostituição, além de ser dependente química com conjunto probatório que evidencia histórico de negligência. Outra situações podem ocorrer, ensejando a destituição do poder familiar iniciada pelo Ministério Público, representado pelo Promotor de Justiça da Vara da Infância e da Juventude da Comarca. Ajuizada a ação de destituição do pátrio poder em face da mãe, a criança encaminhada a creches ninho, aguarda a decisão sobre a adoção por casal brasileiro ou estrangeiro, ou permanece na casa..

[6] LIMA, José Erigutemberg Meneses de. Mulheres no banco dos réus: o x da questão. Disponível em: <https://www.recantodasletras.com.br/textosjuridicos/6468131> Acesso em 23 fev. 2015.

[7] ARAÚJO, Renata Pedroso de. Ser mãe na colônia: A condição da mulher sob o aspecto da maternidade irregular (Séculos XVII e XVIII). Disponível em: http://www.klepsidra.net/klepsidra10/mulheres.rtf.. Acesso em: 23 fev. 2015.

[8] PISANO MOTTA, Maria Antonieta. Mães abandonadas: a entrega de um filho em adoção. São Paulo: Cortez, 2001.

[9] VENÂNCIA, Renato Pinto. Famílias abandonadas: assistência a criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador. Séculos XVIII e XIX. Campinas, são Paulo: Papirus 1999 (coleção textos do tempo)

[10] PASCHOAL, Engel. Terceiro Setor Responsabilidade social e ética. Disponível em: < http://www.folhadaregiao.com.br/jornal/2002/04/07/econ03.php?PHPSESSID=7ea7cc9e495248bcc3903d4d48449f7f. Acesso em: 22 fev. 2015.

[11] PASCHOAL, Engel. Idem.

[12] Fragmento de resenha original publicada na edição 131, página 16, do Jornal PSI. Disponível em: http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/jornal_crp/133/frames/fr_livro.aspx. Acesso em: 23 fev. 2015.

[13] Autor e obra citados pág. 72