Lembranças de um repórter adolescente na redação do Jornal de Minas - um ícone da mídia de direita dentro do regime militar brasileiro
Em algum dia na década dos 1980 estava eu dedilhando uma Remington (ou Olivetti – as duas marcas que dominavam a mecânica da datilografia) na redação da sucursal do jornal O Globo, em Belo Horizonte, quando uma bela e jovem repórter me perguntou se eu já sonhara em ser escritor. Minha resposta foi “sim”, e acrescentei que, principalmente na adolescência, fui um leitor voraz; sôfrego consumidor de variadas formas e estilos literários, incluindo o jornalístico.
Ela estava fazendo uma pesquisa informal, mas já sabia que a minha resposta era um padrão, uma predominância na classe jornalística. Os jornais eram veículos de iniciação dos jovens vocacionados para a produção de textos, para a comunicação social.
Na década anterior, em 1972, eu tinha 17 anos e era repórter/redator/gráfico/etc de uma revista semanal sobre as corridas de cavalos em Belo Horizonte. Fui convidado pelo jornalista Ilídio dos Santos Costa (redator/editor de esportes especializados no Diário de Minas e locutor da Rádio Jornal de Minas, antecessora da Rádio América) para escrever uma coluna regular sobre turfe no Jornal de Minas, um diário da capital mineira. Eu seria colaborador, nada receberia, mas meus olhos brilharam. Ter o nome estampado no jornal seria a glória!
Datilografei uma coluna-piloto e tive que apresentá-la – vejam só! – ao diretor comercial, Roque Soares. Ele aprovou, mas informou que dependia da confirmação do coronel de Exército Wilmar de Barros Nogueira, que era algo como “orientador técnico” do jornal e meu conhecido do Jockey Club. Foi meu primeiro contato com as peculiaridades do JM, de seus vínculos com a caserna. Após a aprovação, em agosto do mesmo 1972, saiu a primeira coluna, uma tirinha de alto a baixo com o singelo título “Turfe”.
O presidente do JM era Afonso Celso Raso e o Afonso Paulino era diretor, cada um com 40% das ações. Eu entregava a coluna para o editor de esportes especializados, Custódio Mesquita, mas gostava do ambiente e ficava muito tempo lá. O editor de esportes era Mauro Romualdo, que já tinha passado por outras áreas do jornal e tinha uma rotina curiosa: intercalava o seu trabalho com o estudo e, depois, o início da carreira de engenheiro. Quando o conheci, soube que já estava trabalhando na nova opção. Geralmente ia ao jornal durante seu horário de almoço, produzia cinco ou seis matérias em ritmo frenético – baseando-se, principalmente em radioescuta da Itatiaia – e retornava para suas atividades nas ciências exatas. À tardinha voltava para fechar as páginas.
Em 1973 eu estava com 18 anos; o Romualdo pediu demissão para dedicar-se exclusivamente à engenharia (aposentou-se na Cemig), o Custódio virou editor de esportes e me convidou para substituí-lo na página de especializados. Havia mais dois repórteres, mas eu seria o responsável. Mergulhei na experiência e minha carteira profissional foi registrada pela Editora Imprimatur S.A. (razão jurídica do JM) em 01/07/1973, na categoria repórter de setor. Meu caso era um exemplo de um formato comum no Brasil à época, atualmente nem tanto: a contratação de aprendizes; o treinamento mal remunerado funcionando como “peneira” para suprir a rotatividade dos trabalhadores.
Um dos repórteres transferiu-se para o futebol pouco depois e o outro mais adiante. Na maior parte de minha curta carreira oficial por lá (um ano e quatro meses) eu buscava os dados, datilografava, copidescava e levara o material para o diagramador Gilson (depois o Paulinho Rios), que marcava tamanho de títulos e supressão de textos. Uma página diária!
A coleta externa de dados era feita nas federações esportivas ou nas competições. Felizmente as federações importantes ficavam num único prédio, no centro de Belo Horizonte. Para assuntos nacionais ou internacionais eu redigia com base na leitura dos grandes jornais e nos telex das agências de notícias.
Só tive dois chefes diretos no JM. O primeiro foi o próprio Custódio, mas ele logo foi promovido a secretário de redação e para a chefia de esportes foi contratado o Hugo Madeira de Ley Aroeira. O nome é exatamente esse, não é engano. Ocasionalmente aparecia lá o filho dele, Renato, um adolescente que já tinha pendores para as charges. Eu tinha uma revistinha, praticamente um boletim, sobre o turfe e uma vez ele fez o desenho da capa, formato de charge sem legenda. Renato tornou-se um chargista renomado depois, com longa carreira no jornal O Globo e outros veículos, usando o nome Aroeira.
Quando iniciei minha carreira de fato, Afonso Paulino já era o presidente, com a saída de Afonso Celso Raso, e tinha um interesse especial na página de esportes especializados pois havia sido atleta. Diziam que ele tinha sido jogador de futebol de salão em nível de seleção nacional. Sempre me indicava coberturas, abordagens; não me lembro de rispidez ou qualquer tratamento duro de sua parte. Exagerou nas recomendações uma vez, quando traçou a minha rotina diária e me indicou atividades para todos os dias; de manhã, de tarde e à noite. Acedi malandramente, pois em boa parte do tempo estaria na rua ou distante de sua supervisão.
Foi um período de histórias e lembranças de todos os tipos, navegando das brandas às tenebrosas. No limite alto desta escala ficava o Alfredão, nosso mui temido chefe do departamento de transportes. Falava-se que ele era um assassino contumaz ou pistoleiro de aluguel que tinha sido liberado de longa pena criminal por influência do capo Afonso Paulino, de quem tornou-se, basicamente, um guarda-costas. Tal currículo viria a ser confirmado e até detalhado em denúncias no Congresso Nacional e na grande mídia anos depois.
Eu gostava muito do motorista Gasparzinho e várias vezes saí com ele a trabalho, na mesma Kombi que servia para a distribuição de jornais. Um dia surgiu a notícia de que o Alfredão tentou matá-lo na garagem e ele fugiu, e se escondeu. Uma semana depois, retornou ao trabalho. Depois o Gasparzinho me contou toda a história: havia levado uma radiola para ouvir música na garagem, mas o Alfredão passou a usá-la como se fosse sua. Um dia, o Gasparzinho a pediu de volta com a desculpa de que precisava consertá-la. Friamente, o Alfredão levantou a radiola e a deixou cair, despedaçando-a. Ato contínuo, sacou o revólver e mandou o Gasparzinho se despedir da vida. Os presentes começaram a pedir pelo colega e o Alfredão continuou na mesma posição, com o revólver engatilhado, estudando o caso, friamente. Depois de alguns minutos tensos, gelados, angustiantes, ele guardou o revólver sem puxar o gatilho. O apavorado motorista se escondeu numa fazenda por uma semana, mas voltou para o perigoso emprego. “Não tenho outro, preciso trabalhar”, me justificou.
Lembrança de tom inverso foi a história das fotonovelas. Na época, havia um filão na mídia impressa: algumas revistas traziam uma sequência de fotos que contavam alguma história romântica, repleta de diálogos impressos em balões. O jornal anunciou que estava contratando atores e atrizes para fazer uma fotonovela e a consequência foi que candidatos e candidatas faziam fila e passavam pela redação, que se divertia com o absurdo. Nós tínhamos uma certeza: só podia ser picaretagem, pois o JM não tinha estrutura para a produção.
Depois do encerramento das inscrições apareceu um candidato extemporâneo a foto-galã. Percebendo a ingenuidade do moço, o repórter-gozador Rogério Bastos fingiu-se de examinador e começou a aplicar testes dentro da redação, em público. O ingênuo fazia poses, gestos, beijos, danças e toda a redação acompanhava séria, rindo-se por dentro. O jovem repórter Kenneth Albernaz – foi ele mesmo, se a memória não me traiu – fazia gestos de enquadramento fotográfico com os dedos. Foram várias sessões de poses falsas. Eu ria do episódio a cada relembrança, anos depois.
Também transitou pelo reino das amenidades a minha passagem pelas atividades astrológicas do JM. Desde os tempos de O Diário (o católico antecessor do JM), a coluna de horóscopos era assinada por Madame Natascha, na verdade um pseudônimo do seu criador e redator, o fotógrafo Carlos Alberto Franco. Careca, meio baixo e meio gordinho, em torno dos 50 anos, ele também era o chefe do departamento fotográfico, cujos comandados se resumiam (então) ao Alencar e ao Zezinho. Carlos Alberto era brincalhão e boêmio, e certamente devia se divertir bastante enquanto datilografava os horóscopos. Faleceu precocemente, talvez um pouco antes da chegada dos anos 80.
Por mais de uma vez leitores telefonaram para o jornal tentando marcar uma consulta com a Madame. A resposta era padrão: a nobre senhora enviava o material por correio e não queria ser incomodada. Depois de algum tempo, a Madame original se cansou do brinquedo e passou o encargo para o editor do caderno de cultura, João Antônio Alvim Gomes – que posteriormente abandonou o jornalismo e virou professor de direito do Instituto Cultural Newton Paiva. Sexta-feira era um dia duro, pois ele tinha que fechar as edições de sábado e domingo. Para ajudar o amigo, me travesti de astrólogo e virei horoscopista da edição dominical. A única exigência era evitar previsões fortes e assustadoras, que pudessem transformar algum crédulo em vítima. Fora isto, o texto era o que a imaginação deste cético alcançasse.
Voltando ao lado pesado do JM que eu conheci, as questões da ética jornalística e do envolvimento político fizeram um forte contraponto com as lembranças agradáveis. Tive a oportunidade de ver a quebra da ética durante a campanha duríssima contra a Minerações Brasileiras Reunidas (MBR), a grande empresa que estava trabalhando na Serra do Curral. Um dia, ao chegar ao jornal, observei uma mudança no ambiente e recebi a informação de que a direção havia decidido que toda a redação estava mobilizada para uma campanha editorial. Não fui incluído, pois o noticiário do esporte especializado não podia parar. A questão foi tratada fora da lógica jornalística: só matérias pesadas, duras, acusativas. Um direcionamento de interesses fortes. Eu já estava presenciando uma guinada em direção ao lado negativo da história da mídia.
O contexto histórico do Brasil é a chave para se analisar a história do JM no período 1972-4, o da minha experiência interna. Em 1972, a ditadura militar estava em seu auge. A censura à imprensa era a regra e me lembro de uma senhora que compareceu à redação para cumprir esse papel. Ligava para um “coronel” e ficava lendo trechos de matérias redigidas, perguntando se podia deixar publicar isso e aquilo. Era uma época de deficiências nas telecomunicações e ela disputava o telefone com os repórteres.
As ligações do publisher Afonso Paulino com gente poderosa do dispositivo militar eram notórias. A partir de sua chegada à presidência da empresa, em torno de 1973, a censura deixou de ser problema pois o jornal passou a ser considerado um representante do outro lado, o do regime de exceção, antidemocrático. Na maior parte da mídia nacional o confronto com o regime era diário, um jogo de gato e rato, de esconde-esconde, já descrito em muitos livros e depoimentos históricos.
Se o primeiro ano de minha vida de repórter registrado foi um momento de aprendizado e satisfação, em meados de 1974 as dificuldades já começavam a trazer reflexos e a motivação foi se evadindo. A questão salarial era uma luta constante: o pagamento era irregular, sem data marcada, e com uma média de três meses de atraso. Gastos na cantina e ocasionais vales abatiam a dívida, mas mantinham a incerteza. Eu era jovem e pouco experiente, não conhecia bem as outras opções dentro do mercado, e não tive a sorte de encontrar um bom conselheiro, um bom orientador. Concluí, ingenuamente, que aquela era a tônica do mercado jornalístico. E também me assustei com o ambiente pesado da ditadura militar e seus reflexos específicos dentro do jornal.
Sem motivação, o cérebro se distrai. Em setembro ou outubro de 1974 eu redigi uma matéria sobre o basquete e, ao fazer o título, troquei por voleibol. Cheguei à redação no dia seguinte e recebi a recomendação de visitar o tesoureiro Jeová: estava demitido. Não foi um choque, já estava querendo mesmo sair, só faltava o emprego-substituto. E não é que a história do uso do aprendiz se repetiu na minha saída? Durante meu aviso-prévio, o colunista de futebol amador Osmar Camilo da Silva foi o indicado para assumir a página de esportes especializados e fui seu orientador, apesar de 10 anos mais novo. Por lá ele ficou cerca de 15 anos e depois seguiu só na carreira de árbitro de futebol (chegou a ser o diretor de árbitros da Federação Mineira de Futebol por longo período). Aposentou-se como jornalista e em 2017, quando um grupo de antigos funcionários do Jornal de Minas decidiu fazer um grande encontro, ele estava curtindo a aposentadoria num sítio em Ibirité.
Nos meses seguintes fui várias vezes ao Jeová tentando receber o devido, inclusive salários atrasados. Nada! Só consegui resolver na Justiça do Trabalho, o jornal ainda teve que pagar algumas multas e acréscimos durante o processo. Todos os prazos foram cumpridos no limite, inclusive a penhora de uma máquina de linotipo, salva na hora do leilão. Eu não me importava, morava com a família, até gostei dos acréscimos.
Saí do JM com a ideia de encerrar a carreira jornalística. Virei bancário, depois funcionário público e mais adiante entrei para a faculdade por um caminho bem diferente: a medicina veterinária. Depois fiz comunicação social na UFMG e voltei ao jornalismo, pela via da assessoria de comunicação. Mas aí é a vida pós-Jornal de Minas, não faz parte daquele recorte de minha história.