É pra rir ou pra chocar?
Mais de um ano após o atentado terrorista no escritório da revista satírica francesa "Charlie Hebdo", que deixou doze mortos e onze feridos, a publicação trouxe recentemente uma charge de extremo mau gosto. Nela, aparece uma referência sarcástica a Aylan Kurdi, menino sírio de 3 anos que morreu afogado em setembro do ano passado em uma praia turca, durante uma das centenas de travessias desesperadas de refugiados rumo à Europa.
Vale ressaltar que o irmão de Aylan e a sua mãe também morreram na tragédia, da qual escapou apenas Abdullah Kurdi, seu pai. A foto do menino morto na areia da praia chocou o mundo e virou uma espécie de símbolo da crise humanitária dos refugiados sírios.
Na charge da mais recente edição do Charlie Hebdo aparece um homem correndo atrás de uma mulher e o seguinte título: "migrantes: no que teria se transformado o pequeno Aylan se tivesse crescido?". Outra legenda traz a resposta: "apalpador de bundas na Alemanha", numa referência às agressões sexuais registradas naquele país na noite de Ano Novo, atribuídas a refugiados.
A história das charges e a sua popularização através de jornais e revistas de grande circulação revela o poder de crítica que passaram a ter os chargistas. A referida revista francesa, que ficou mundialmente conhecida após o trágico atentado de 7 de janeiro de 2015, é um grande exemplo da dimensão e alcance de uma charge. Pessoas morreram em decorrência de uma imagem satírica envolvendo o profeta Maomé – figura sagrada e intocável para os seguidores do Islamismo.
Muitas charges provocam riso, ao mesmo tempo em que tecem críticas políticas, sociais ou mesmo religiosas. Este é o seu principal objetivo. No entanto, a que menciona a criança síria e o possível futuro que teria se não tivesse morrido de forma trágica só pode ter sido para chocar. Não dá para acreditar que alguém, em sã consciência, possa ter achado a mínima graça nela ou mesmo feito alguma reflexão positiva sobre o tema.
Há os que defendem charges como essa com o argumento da liberdade de expressão. Nesta linha de raciocínio, colocam tal liberdade como se fosse o maior bem conquistado pela humanidade, acima da compaixão, do respeito, da solidariedade. A imprensa do mundo todo publicou matérias ressaltando a dor e a indignação de Abdullah Kurdi ao ver a memória do seu filho ser zombada numa charge. Será que algum pai, de qualquer nacionalidade, sentiria algo diferente?
A mencionada charge do Charlie Hebdo tem o mesmo poder das piadas racistas e sexistas, que, em nome da liberdade de expressão, fizeram o riso moldar e perpetuar valores abomináveis. Com relação ao seu teor, mesmo que se comprove que foram alguns refugiados os culpados das agressões sexuais contra mulheres na Alemanha, sugerir que todos os refugiados são ou se tornarão agressores é, no mínimo, leviano. Que graça pode haver nisso?