O DILEMA DA FICÇÃO NA HISTÓRIA

O DILEMA DA FICÇÃO NA HISTÓRIA

Rangel Alves da Costa*

Não são poucos os autores que colhem de fatos históricos os enredos necessários aos seus romances. Mario Vargas Llosa, por exemplo, foi buscar em Canudos e na saga de Antônio Conselheiro a porção ideal para o seu magistral A Guerra do Fim do Mundo. Assim também com Rachel de Queirós na sua narrativa acerca da longa estiagem que se abateu nos sertões cearenses nos anos 15. Da releitura do fato real surgiu o romance O Quinze.

Alguns críticos literários aceitam bem que a história ganhe contornos de ficção. Afirmam da nova perspectiva literária que pincela com outras cores fatos obscuros demais no seu contexto real. Outros, contudo, veem um desnorteamento da realidade através da criação literária. Pregam que se corre o risco de, não compreendendo o pano de fundo do fato histórico, o leitor acabe abraçando uma ficção como realidade.

Não comungo da crítica que tenta preservar a história da ficção. Ora, até mesmo os livros de história, através de pesquisadores e estudiosos, dão versões muito diferentes ao mesmo fato. Muitas vezes, de um livro para outro há um fosso incompreensível. Um autor relata um fato de um modo e outro o expõe de modo totalmente diverso. Qual a opção do estudante ou do leitor perante fatos assim? Confrontar visões diferentes nem sempre consensualizam o entendimento. E tudo continua em interrogação.

Para se ter um exemplo, há autores de livros de história que são chamados de porta-vozes oficiais das versões difundidas pelo poder. Estes descrevem os fatos elegendo personagens, situações e contextos. E assim para que os estudantes concebam os fatos e os personagens pela ótica oficial. Já outros, geralmente lastreados por ideologias, escrevem a mesma história desmistificando tudo. Quer dizer, contam a mesma história de uma forma totalmente diferente. E de repente uma figura histórica famosa pelos grandes feitos passa a ser vista como traidora ou charlatã.

Desse modo, creio que o fato histórico pode muito bem sofrer abordagem na ficção. O fato em si continuará o mesmo, a realidade não será deturpada pelo simples fato de ganhar uma trama diferenciada. Nos meus escritos, geralmente nas minhas crônicas, gosto de buscar na história o pano de fundo para o relato. Não digo que determinado fato aconteceu de outro modo nem desminto o que já foi escrito, apenas apimento o contexto, crio realidades dentro da realidade, faço nascer possibilidades, brinco com contextos inexistentes. Quer dizer, faço ficção a partir da história.

Acabei descobrindo, contudo, que estou criando um problema danado. Alguns, por se aterem somente ao que se difundiu como realidade histórica e não compreenderem minha incursão fictícia perante os mesmos fatos, eis que acabam desacreditando ou denegrindo minha escrita. Na verdade, só faltam mesmo me chamar de mentiroso porque escrevo sobre fatos inexistentes numa história demais conhecida. Quer dizer, não aceitam que o seu fato ou a sua razão de repente seja afrontada por alguém que parece brincar ou proporcionar outro contexto àquela realidade.

Nesta vertente, misturando ficção à história, tomo a história do cangaço como principal pano de fundo, comumente a saga de Lampião e seu bando. Não mudo nada da história, deixo tudo como ela contada e repetida, o que faço é tão somente criar situações realmente inexistentes. Por exemplo, escrevo sobre coiteiros que jamais existiram, escrevo sobre fatos inexistentes no contexto histórico, crio situações dentro do bando que nunca existiram de fato. Mas não minto, apenas crio tramas possíveis dentro daquela realidade.

Outro dia, um leitor comentando um texto meu numa rede social, disse que como ficção a escrita tinha validade, mas muitas das situações descritas não eram verdadeiras. Já outro me perguntava como aquilo poderia ter acontecido se nenhum livro já havia falado sobre tal assunto. Não respondi. Não adianta responder, pois meu intuito é tão somente criar uma situação literária que esteja acima de qualquer confirmação. Sei muito bem que serei incompreendido, chamado até de mentiroso, mas faço somente acrescentar ingredientes aos fatos da mesmice histórica.

Estou juntando meus textos para publicação. O título não será outro senão “Entre a Ficção e a História: o cangaço imaginário”. Não sei se além da explicação dada no título, ainda terei que fazer uma introdução dizendo que nem tudo que ali será encontrado pode ser visto como realidade histórica. Ou mesmo colocar na capa: Cuidado. Este não é um livro sobre a história do cangaço, mas de situações imaginadas no contexto do cangaço.

Poeta e cronista

blograngel-sertao.blogspot.com