Palavras e letras são pássaros: liberte-os!
Palavras e letras são pássaros: liberte-os!
Rangel Alves da Costa*
Não é raro encontrar pessoas que temem a escrita a ferro e fogo. E os argumentos são os mais variados possíveis. O primeiro é sempre de que não sabem escrever. Pensam corretamente, têm tudo esboçado na mente, mas não sai nada na hora de colocar no papel. Imaginam uma situação, uma cena ou paisagem, porém perdem o poder descritivo quando necessitam transpor para a narrativa escrita.
Justificam ainda a falta de domínio da gramática, vez que falar é uma coisa e escrever é muito diferente, principalmente porque devem obedecer a uma série de regras que vão desde a concordância verbal e nominal à acentuação, e apenas para ficar no mínimo. E passam a temer que o seu texto, por conter erros de pontuação, grafia de palavras e outros deslizes gramaticais, acabe provocando zombaria e preconceito nos futuros textos.
Realmente, a língua portuguesa é muito complexa, as normas gramaticais são muito extensas, as exigências são muitas. Mas assim também deveria ser com a língua falada, pois expressão da mesma linguagem. Contudo, todo mundo fala, se expressa como pode e sabe, e nem por isso se pode afirmar que infringe ou fere de morte a língua camoniana. Certamente que sempre há quem pregue a linguagem culta tanto na fala como na escrita, mas apenas uma exigência linguística sem grande utilidade na vida prática.
Sempre defendi a língua liberta de quaisquer amarras, livre dos grilhões do academicismo nas palavras e nas letras. Ora, se a língua é criação humana, nascida das necessidades de comunicação, logicamente que nenhuma regra impedia que os primitivos compreendessem o linguajar do outro. Negar a força espontânea da fala é o mesmo que pretender que o sujeito perca um tempo precioso escolhendo palavras. O mesmo se diga com relação à escrita. A estrita obediência às regras gramaticais acaba inibindo toda liberdade criativa.
Também não vejo como exigência que a pessoa tenha de se expressar segundo a norma culta. A maioria das pessoas possui a linguagem coloquial, corriqueira, e assim deve ser praticada. Jamais deve ser tida como errada uma fala onde a comunicação se aperfeiçoa, pois um entendendo o outro. Desse modo, a normalidade da língua, que é o falar cotidiano, possui tamanha expressividade que o mundo se comunica pela sua voz. Diferentemente ocorre quando alguns usam o rebuscamento da linguagem como forma discriminatória e de negação do saber geral.
Ademais, soa igualmente inteligível o tão conhecido falar errado. Mas o que seria falar errado quando a comunicação é feita, entendida, alcançando seus objetivos? Se o erro está em confrontar a língua culta, a gramática normativa, então o desacerto está nas regras e normas, que impõem situações diferentes daquelas construídas pela própria população. Neste sentido, se poderia dizer que a fala ou a escrita está errada só porque a gramática exige que seja de outro modo?
Não há nada mais puro e autêntico que a linguagem simples, sem floreios e rebuscamentos, surgida na boca como fruta do mato. Na palavra cotidiana, regionalista, matuta ou própria dos povos, há uma singeleza e expressividade impossível de ser alcançada pela imposição de normas. A voz soa liberta, esvoaçante, nas asas passarinheiras, e dançando vai ser ouvida e sentida pelo outro igualmente acostumado à festa nua da palavra.
Nos escritos elaborados sentimentalmente há também essa ruptura com os morfemas, prosopopeias, sintaxes, numerais, advérbios, substantivos e todo um encadeamento de regras gramaticais que sufocam a palavra, aprisionam os escritos, negam a plena liberdade da língua e acabam petrificando frases e expressões nascidas para encantar. Numa cartinha escrita com o coração há um humanismo e uma singeleza que jamais seria possível num texto forjado na norma culta.
As descabidas exigências de alguns com relação à fala e à escrita acabam criando situações verdadeiramente constrangedoras. Tem gente que conversa o dia inteiro com amigos e iguais, sem qualquer preocupação com o entendimento que se dê ao que expressa, mas que possui o maior medo de abrir a boca noutra situação social, principalmente se diante de algum “doutor”. Emudece de vez, ainda que na sua mente estivesse palavra por palavra. Logicamente que perde a oportunidade de ser apenas o que é e dar vida à pureza de sua fala.
Certamente que nessas gavetas do tempo, nos escondidos dos diários e cadernos de solidão, há escritos encantadores esperando apenas a liberdade do voo. Poemas, frases, pequenas histórias, relatos intimistas, e até romances e contos, permanecem nas sombras por medo da reprimenda social pela escrita “cheia de erros de português”. Lamentável que assim aconteça, pois a importância do escrito ou a pujança criativa nele contido não pode ser desprezada pela ditadura da língua e da gramática.
Todos, indistintamente, devem reconhecer que as palavras e as letras são como pássaros engaiolados pela gramática que precisam ser libertados. E abrir a porteira da fala e da escrita implica em ter coragem de se expressar sem imposições, de escrever sem obediências, de ser aquilo que se acha com capacidade de ser. E que belo voo esse da língua que vai onde quer, sem armadilhas ou preconceitos.
Poeta e cronista
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