O MÉDICO E O MONSTRO
O MÉDICO E O MONSTRO
Rangel Alves da Costa*
O recente caso do médico aracajuano preso em flagrante após roubar estudantes para alimentar seu vício em drogas, reabre uma velha discussão que mais serve para se chegar à seguinte conclusão: o homem está sendo vencido pelo seu próprio monstro. O ser humano, vitimado pelas suas nefastas experiências, agora está sendo domado pela própria criatura que acabou fazendo surgir em seu ser.
Há um clássico da literatura mundial cuja narrativa também mostra um médico sendo vitimado pelos seus próprios experimentos. “O Médico e o Monstro” (O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde), obra-prima do escritor escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894) publicada em 1886, relata exatamente a história de um médico que tenta provar que o ser humano possui um lado bom e outro ruim. Com tal objetivo, faz experiências em laboratório até criar uma fórmula que se ingerida faria surgir no indivíduo a sua outra feição.
No livro, não havendo quem quisesse servir de cobaia para sua fórmula, acaba sendo o próprio médico quem irá ingeri-la. Vai fazendo isso aos poucos, procurando controlar as reações, mas de repente já não consegue inibir o verdadeiro monstro surgido dentro de si. Mas o pior é que aquela personalidade perversa surgida, sempre voltada para o cometimento do mal, acaba lhe controlando totalmente, que já não consegue responder pelos seus atos. Faz de tudo para domar o seu monstro, mas vai perdendo a batalha. Eis que não consegue produzir qualquer fórmula que provocasse efeito adverso. E acaba sendo acusado de homicídio.
No caso do médico aracajuano, qualquer aparência terá sido mera coincidência, mas espelha exatamente o fundamento literário de Stevenson. O autor quis mostrar a força do inconsciente humano, a dupla face que pode estar escondida num mesmo ser. O homem é possuidor de dupla natureza, uma boa e uma má, mas deve agir e preservar sempre seu lado humano e benéfico, vez que ao querer dar impulso às perversões escondidas, pode acabar sendo totalmente possuído pelo seu lado monstro. Infelizmente, o caso do nosso médico. A droga se mostrou com mais força que o seu discernimento, a sua racionalidade.
As relações entre a literatura e o fato real são evidentes. Tanto o médico fictício como o real se mostram com pessoas boas, afáveis, insuspeitas. Experimentando mudanças nos seus aspectos comportamentais, os dois recorrem a formulas químicas, o fictício em laboratório e o real como cobaia dependente do mundo das drogas. Dr. Hyde, pensando que controlaria o uso da fórmula sempre que desejasse, vai consumindo cada vez mais; o médico aracajuano, imaginando poder abandonar o vício assim que quisesse, foi simplesmente se viciando. Os dois perderam totalmente o controle de suas vidas diante da fórmula química. Por consequência, o primeiro foi acusado de homicídio, e o segundo praticou roubos. E nos dois o surgimento do mesmo monstro: o da dependência. Não obstante as outras faces terrificantes da anomalia.
No caso do médico real, se noticia que o homem sempre se manteve na normalidade previsível em todos os indivíduos, exercendo seu ofício laboral, buscando levar uma vida social ajustada. Há notícias de ser um profissional competente, esforçado e que, temendo não superar por força própria o chamado do vício, já havia se submetido a tratamento especializado e até pactuado com a família acerca da indisponibilidade de seus bens e de seu próprio salário. Tudo num esforço terrível para não dilapidar seu patrimônio com a compra de droga para alimentar seu monstro. Mas este permaneceu apenas adormecido, esperando um instante de maior fragilidade para atacar. E o fez de forma extrema e absolutamente impensável.
E um desfecho lamentável e triste. O monstro despertou duma crise de abstinência e cegou completamente o homem, o médico, a vida, e passou a comandar as ações. Frágil demais diante do poder do vício, que sempre desperta vorazmente sedento e faminto, se deixou conduzir, foi subjugado pelo monstro da droga, da dependência. O espectro monstruoso tomou as rédeas do homem e foi agir em seu nome. E as terríveis consequências recaíram somente na sua feição humana, que tem de pagar com a desonra própria e familiar o terrível impulso provocado pela medonha criatura. E que infelizmente ainda se mantém escondida dentro dos frágeis labirintos do ser, esperando somente que o próprio homem deseje despertá-lo.
Como observado, o médico e o monstro estão num só, mas não se confundem. O médico, enquanto pessoa, apenas permitiu a criação do monstro que passou a habitar dentro dele. Enquanto criador se viu tomado pela criatura e esta, quando agiu, não foi apenas contra aquelas pessoas que tiveram seus pertences levados, mas principalmente contra si mesmo. E em casos tais, a mera condenação do homem, sem que lhe seja imposto tratamento compulsório adequado, apenas deixará o monstro livre para novamente agir.
E, neste caso, o Estado, que é a própria lei em ação, acaso deseje punir o homem - que também é vítima - deverá primeiro se perguntar o que está fazendo para também combater esse monstro que terrivelmente assola grande parte da sociedade.
Poeta e cronista
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