O BAÚ DE MNEMOSINE

O BAÚ DE MNEMOSINE

Rangel Alves da Costa*

Na mitologia grega, Mnemosine personifica a memória. Filha de Urano (o Céu) e Gaia (a Terra), a deusa cuidava da preservação dos fatos mentais perante as mudanças e transformações que poderiam levar ao esquecimento. Procurava preservar no homem o dom da razão e do raciocínio, de modo que este não se confrontasse com as situações como algo totalmente novo, e sim fruto de experiências passadas.

A deusa da memória não possuía uma caixa igual à de Pandora, um dia descuidosamente aberta para espalhar os males e as tragédias do mundo, mas talvez um baú onde guardasse os dons do raciocínio, do pensamento, da razão, do confronto de realidades, da memória enfim. Diferentemente dos males produzidos pela Caixa de Pandora, o Baú de Mnemosine afastou do homem o esquecimento e colocou na sua mente o poder de raciocínio sobre o vivenciado e conhecido.

No contexto do mito, graças a Mnemosine o homem pode se recordar do passado, da infância, do que fez ou deixou de fazer, dos acontecimentos importantes ou marcantes da vida. Importante que seja assim, vez que o ser humano se tornaria desprovido de desnorteamento nas ações acaso estas não pudessem permanecer como marcos a serem recordados. E também como freio para as atitudes impensadas, vez que também permanecerão vivas na lembrança.

Tem-se, pois, que a memória interliga o homem no tempo, no espaço e na existência. Aquele é o hoje porque vivencia o momento, mas também o ontem porque a memória repassa o calendário. Assim, a memória possui a faculdade de reter ideias, armazenar sensações e impressões adquiridas anteriormente, de modo que o dispositivo mental possa trazê-las de volta perante as mais diversas situações.

Os usos da memória são de suma importância. O esquecimento levaria o homem ao estágio de irreconhecimento não só de si mesmo como de tudo que o rodeia. A vida consistiria apenas na ação do momento, lançando olhar sobre o futuro. Mas amanhã nenhuma validade teria o compromisso de hoje se o mesmo não estivesse retido na memória. Daí que todo ser humano guarda consigo um Baú de Mnemosine.

Existem situações em que o baú da deusa possui serventias específicas, pois aberto e reaberto segundo os fatos e as conveniências. E certamente não há mais serventia que no contexto político-partidário. Contudo, nesta seara há outro baú, que embora permaneça invisível, possui o mesmo poder que o de Mnemosine: A Caixa de Lethe, a ninfa grega do esquecimento.

Dependendo da situação ou conveniência, o político faz uso de um ou outro. Utiliza o Baú de Mnemosine para manter a memória ativa, situar-se rapidamente perante seu eleitorado, mentalmente avistar seus redutos eleitorais, ter na ponta da língua nomes importantes; enfim, para ser visto como aquele que não esquece os amigos, as lideranças nem as promessas de campanha.

Contudo, não raro que depois de eleito o político ache mais conveniente deixar de lado o baú da deusa da memória e lançar mão da Caixa de Lethe, ou seja, a do esquecimento. Situação rotineira, a verdade é que procura esquecer tudo ou quase tudo que pregou nos palanques e de porta em porta, fazer de conta que não tem compromissos assumidos e ir ludibriando sua própria sorte. Mais tarde, quando se sente em perigo, implora por tudo na vida que o baú da deusa não lhe deixe na desvalia.

No mundo político, entretanto, os dois instrumentos são geralmente usados ao mesmo tempo. Dependendo da ocasião, do momento eleitoral e dos conchavos, tanto o Baú de Mnemosine como a Caixa de Lethe podem ser de grande serventia. Eis que surgem situações que precisam ser totalmente esquecidas e outras - mantidas em repouso com um olho fechado e outro aberto no leito do esquecimento - são trazidas à baila com vivacidade impressionante.

Como afirmado, dependendo da conveniência partidária, do conchavo político, da necessidade de coligação ou simplesmente de apoio, o baú da deusa da memória vai buscar favores prestados no passado, amizades antigas que interferem para ajudar o reagrupamento, situações que permitam a junção para o fortalecimento. E então acontece algo tão próprio da política: os opostos se unem.

Há união de opostos porque o esquecimento chega em auxílio da memória. Eis que mesmo com a permanência de mágoas e revoltas guardadas na mente, o político logo procura esconder, esquecer tudo. Nesse passo, o inimigo de ontem se torna o mais amigo dos correligionários; o desafeto da manhã estará fazendo pose ao seu lado, fotografando, de sorriso largo. Tudo na mais deslavada das conveniências.

Mas nem Mnemosine nem Lethe têm culpa de as coisas acontecerem assim. Talvez Pandora. Sua caixa de maldades vive continuamente aberta onde haja política e político.

Poeta e cronista

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