DO RELINCHO AO RONCO (OU A MOTO BOA DE SELA)

DO RELINCHO AO RONCO (OU A MOTO BOA DE SELA)

Rangel Alves da Costa*

Depois das embarcações que aportavam trazendo gente e animais para o hostil litoral, a história sertaneja teve no lombo dos cavalos, mulas, burros e jumentos seu meio de transporte mais usual. Partindo das margens e adentrando a mataria desconhecida, abrindo picadas ou seguindo por perigosas veredas, os animais foram levando os homens aos destinos mais distantes.

Desse modo, os animais de carga e de montaria tiveram suma importância no desbravamento, povoação e desenvolvimento do sertão nordestino. Para vencer as distâncias e as durezas das terras áridas, preparar os terrenos para o plantio, conduzir tropeiros, fazer o transporte dos frutos da lavoura, carregar latões de água de fontes distantes; enfim, para transportar o que houvesse naqueles idos, somente através do lombo dos animais.

Tais animais passaram a simbolizar o sertão não só como meio de transporte, mas pelas muitas outras serventias que sempre tiveram junto ao sertanejo. Impossível a moradia nos ermos longínquos sem ter na malhada o amigo de locomoção; mansos ou bravios cortaram a caatinga espinhenta em busca de boi brabo, conduziram vaqueiros e comboieiros nas suas lidas diárias, serviram a todo fim num tempo em que nem se pensava em pneu de automóvel.

Cavalo de pega de boi e de cavalhada, de passeio ou da juntada da criação ao entardecer, de orgulho maior do matuto que tem no seu pelo brilhoso a riqueza maior; burro bom de carga, amigo do homem que precisa levar fardos pesados a lugares remotos, principalmente pelas estradas mais pedregosas e passagens íngremes; jegue, jumento, jerico, tanta denominação para aquele animal amigo que sempre espera o seu dono à sombra do pé de pau. Ou mesmo debaixo do esturricamento.

Desse modo, desde o início da civilização sertaneja que o bicho de lombo e sela vinha sendo reconhecido como inseparável do sertanejo no seu afazer debaixo de sol e de lua. A qualquer hora do dia bastava jogar sela ou selim por cima do lombo do bicho e fazê-lo esquipar ou trotar ultrapassando cancelas, vencendo as difíceis veredas sertão adentro. Mas hoje essa situação mudou, como se verá adiante.

Luiz Gonzaga o imortalizou no cancioneiro nordestino, reconhecendo-o como verdadeiro irmão, eis que ajudou o homem na vida diária, ajudou o Brasil a se desenvolver. Arrastou lenha, madeira, pedra, cal, cimento, tijolo, telha; fez açude, estrada de rodagem, carregou água pra casa do homem; fez a feira e serviu de montaria.

Como injusta retribuição o ingrato matuto lhe deu castigo, açoite, pancada no lombo, ferroada no traseiro. Contudo, mesmo que tardiamente, parece que agora não só o jumento como os demais animais de montaria passaram a ter o trabalho reduzido e o descanso merecido. Ao menos como meios de transporte lhes foi dado uma trégua, deixados repousando pelos campos, eis que agora o sertanejo se locomove de canto a outro em cima de outros lombos, das motocicletas.

Atualmente, pelas estradas sertanejas praticamente não se encontra mais cavalos e cavaleiros, trabalhadores montados nos seus animais em direção aos arruados, viajantes seguindo lenta e trotadamente no lombo do bicho para os destinos mais distantes. Do mesmo modo, quem vai saindo ou chegando não tem mais o trabalho de cuidar da sela e outros apetrechos. As selas, os arreios, as tacas e os estribos deram lugar a apenas uma ou duas chaves.

As chaves das motos se tornaram como símbolos de um sertão que parece apressado demais para chegar. Nas cidades, povoados e fazendas, dificilmente são avistados animais de montaria. Em cada porta e telheiro, nas malhadas e debaixo dos arvoredos sombreados, não mais repousam os animais à espera de seus donos, mas as máquinas prontas para o arranque. Com marcas e modelos de todos os tipos, agora basta lançar mão das chaves e sair por aí com pressa desenfreada.

Logo cedinho e a moto já está encostada na porteira do curral. O leite vai ser entregue na garupa da motocicleta. Uma boiada é avistada numa estrada e logo atrás, lentamente, vem o vaqueiro montado no seu cavalo de ferro. As cancelas não se abrem mais para a cordialidade dos animais, mas somente para o ronco embrutecido do motor. Os bichos desprezados agora têm de dividir sombreados com as possantes.

Diferentemente de outros tempos, quando o homem exigia tudo do animal sem sequer alimentá-lo dignamente, agora se tornou escravizado pela máquina, cada vez mais faminta pelo caro combustível. E em tempos difíceis, o que faz o sertanejo é vender o cavalo velho por qualquer tostão e assim conseguir dinheiro para alimentar sua nova cria. E faz isso com indescritível satisfação.

Depois monta no lombo da máquina e sai perigosamente pelas estradas. E diz barbaridades se encontra algum jegue pelo caminho que atrapalhe sua pressa de chegar. E de vez em quando bate no animal abandonado e ali mesmo fica estendido. Mais um na estatística do progresso.

Poeta e cronista

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