AS OUTRAS HORAS DOS RUMINANTES

AS OUTRAS HORAS DOS RUMINANTES

Rangel Alves da Costa*

Pelos idos de 1966, o escritor goiano José J. Veiga (1915-1999) publicou “A Hora dos Ruminantes”, obra que o faria reconhecido no contexto literário do realismo fantástico nacional. Utilizando-se de metáforas, simbologias e fantasias que açulam o imaginário, o livro cuida do confronto entre o nativo e o desconhecido, bem como o relacionamento conturbado que se dá entre eles.

Os acontecimentos que começam a surgir na pacata cidade interiorana da narrativa fantástica - que de mesmice em mesmice vivia no esquecimento - são os mais inesperados possíveis: pessoas desconhecidas e carrancudas chegam para transformar a simplicidade dos nativos, uma matilha invade os quatros cantos e uma aterrorizante manada de bois acua os pacatos moradores. Os cachorros e os bois, que bem poderiam conviver pacificamente com os moradores, acabam se tornando num estorvo.

Os ruminantes são os desconhecidos e os animais, formados por levas e mais levas de cães e bois, que chegam para transformar totalmente a realidade do lugar, com brutalidade e arrogância animalesca. Surgidos do nada, passam a amedrontar e a mudar os hábitos das pessoas, a torná-las como desconhecidas de si mesmas. Por fim, como surgiram as hordas vão embora e a cidadezinha de Manarairema procura retomar seu cotidiano. Mas tudo já não será como antes.

Contudo, alguns teóricos literários afirmam que a obra de José J. Veiga vai além de se caracterizar como narrativa envolta em realismo fantástico, onde o absurdo e o inusitado convivem com o normal (assim também em Cem Anos de Solidão, de Garcia Marquez), para buscar outras intencionalidades. Ora, certamente o autor teve clara intencionalidade ao fazer com que um lugarejo vivendo na mesmice dos dias de repente seja virado de cabeça pro ar com a repentina chegada de seres tão estranhos e apavorantes.

E tais seres desconhecidos não eram extraterrestres, visitantes espaciais que chegavam atacando para dominar. Os desconhecidos eram apenas homens e animais. E há de se indagar: como os habitantes de um lugar passam a temer tanto pessoas que se instalam nos seus arredores, e como aqueles cães e bois, agindo quase com inteligência humana, se revestem de fúria e torna em presa aqueles que seriam predadores? Por que há um rompimento tão grande e inexplicável entre animais tidos como domésticos e pessoas comuns?

O autor jamais revelou suas reais pretensões, deixando que os leitores e estudiosos chegassem às suas próprias conclusões. Daí que muitas são as possibilidades criadas para explicar o que estaria no cerne da narrativa. E as denúncias de cunho social estariam entre as mais vindicadas. Com efeito, afirmam que a opressão e a resistência estariam retratadas nos confrontos entre os inesperados visitantes e os moradores do lugar. Avista-se a ditadura opressora diante das classes impotentes.

Os forasteiros, ou homens que de repente surgem para tratar os outros na indiferença da servidão, agem perante estes não só para mostrar que são mais poderosos como para que compreendam serem fracos e incapazes de resistir até diante de animais que tinham como domesticados. Eis que os cães e os bois chegam para intimidar pessoas, invadir casas e transformar totalmente a vida da população amedrontada. Logicamente o uso de alusões à fragilidade dos seres humanos diante do inesperado.

Contudo, vejo reais possibilidades de atualizar os objetivos de José J. Veiga na sua fantástica narrativa. Se por muito tempo viram na obra um enredo ditatorial e suas consequências na sociedade, bem como as inesperadas relações entre oprimidos e opressores, ou ainda simplesmente uma demonstração de como os seres humanos são impotentes de enfrentar as situações inusitadas, sinto que é possível situá-lo no tempo presente.

As fragilidades humanas continuam, as agressões opressoras também. A sociedade atual não é mais vista com a inocência interiorana de antigamente, mas certamente ainda não se preparou para enfrentar os tantos inimigos que sorrateiramente vão surgindo no dia a dia. E a prova disso é que continua se deixando conduzir por falsas promessas, por engodos eleitoreiros, por lábias mentirosas de doce perfume.

Os animais que agora se rebelam contra o povo e mesmo depois de bem cuidados e tratados, domesticados na vã esperança de bons frutos, são aqueles votados e eleitos que depois se voltam contra suas próprias criaturas. Quando os eleitores esperam o justo reconhecimento através do trabalho, de repente se veem atacados e encurralados pelas ações odientas de governantes e parlamentares.

Mas os desconhecidos, ou aqueles que carrancudamente se instalam nos arredores e ameaçando transformam toda a vida ao redor, são mais visíveis ainda nos dias atuais. Não vejo outra feição senão naqueles pobres campesinos manipulados pelo movimento dos sem-terra. Estes vão surgindo do nada e se arvoram do direito de dispor de quase todos os bens da vida. Violam propriedades, incendeiam bens, espalham o terror.

E nada mais será como antes depois que eles instalam suas bandeiras. As dilacerantes marcas serão profundas a partir de então. Diferentemente do que ocorre no livro, pois eles vão embora como chegaram, estes permanecem destruindo o que ainda restar em pé.

Poeta e cronista

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