OS ESQUECIDOS (MEMÓRIA E VIDA DEPOIS DO CANGAÇO) - III

OS ESQUECIDOS (MEMÓRIA E VIDA DEPOIS DO CANGAÇO) - III

Rangel Alves da Costa*

Somente por iniciativa de Alcino Alves Costa, um ex-prefeito municipal, pesquisador e escritor das coisas nordestinas e principalmente cangaceiras, a história daqueles meninos e meninas, depois homens e mulheres alquebrados da luta, não foi completamente esquecida. Coube a ele tirar muita areia daquele chão pedregoso em busca de um depoimento confiável, de uma “verdade verdadeira”. Somente mais tarde foi domando aqueles temores para ter diante de si um vasto leque das tantas proezas.

Como a população não dava - e continua não dando - qualquer importância aos guerreiros das caatingas, muitas vezes apenas os familiares tinham conhecimento do passado dos seus e procuravam resguardar os seus feitos dentro de quatro paredes, nos baús do esquecimento. Raríssimos os casos onde outras pessoas estranhas ao círculo familiar respeitavam aquele passado, demonstravam algum interesse e procuravam repassar o que conheciam.

Foi assim que por muito tempo a história de Zé de Julião permaneceu sob o mármore frio do esquecimento. Nem sua família nem seus filhos (teve várias mulheres depois da morte de Enedina no Angico) eram vistos perante a figura do pai famoso. Mas famoso como, se relegado às sombras do esquecimento? Afamado pela história, ainda que não pelo conhecimento de seu percurso de vida. José Francisco do Nascimento, seu nome de batismo, certamente foi a personagem mais emblemática, mais fascinante e mais injustiçada de todo o sertão sergipano.

Ora, filho de família rica para as posses sertanejas de então. Seu pai, Julião do Nascimento, era proprietário de muitas terras e rebanhos. Casou ainda muito moço com Enedina - que mais tarde o acompanharia na vida cangaceira - e por ali permaneceu ajudando nos afazeres familiares. Possuía a leitura, a escrita e o senso crítico como os grandes diferenciais naquela povoação sertaneja de imensa maioria analfabeta e empobrecida.

Contudo, foi a visão própria de mundo, permeada de conscientização crítica, que modificaria o seu destino. Como afirmado, tomava-se de extrema revolta todas as vezes que via ou ficava sabendo dos contumazes desmandos policiais, submetendo maldosamente o pobre sertanejo. E não só os mais humildes como aqueles se sobressaíam economicamente, pois o seu próprio pai, Julião do Nascimento, muitas vezes fora vitimado pela vil ganância da tropa infame. Constrangia e ameaçava qualquer um em busca de obter todo tipo de vantagem, principalmente econômica. E aquele povo já tão sofrido não merecia tal tipo de tratamento, na visão revoltosa do filho de Seu Julião.

Tomado de indignação e sentindo que por ali não havia justiça séria e capaz de dar um basta naquelas tantas injustiças, viu no ideário cangaceiro a única forma de combater aquela situação opressora. Abusos e absurdos protagonizados pela polícia, que era a mesma volante que vivia no encalço do bando de Lampião. Então viu o cangaço como bandeira de luta, como forma de combater os desmandos se alastrando.

Foi aceito no grupo juntamente com sua esposa e nele foi alimentando sua luta até a chacina de 28 de julho de 38. Conseguiu sobreviver ao ataque da volante alagoana comandada por João Bezerra, mas viu sua querida Enedina ser mortalmente atingida. Sem a companheira, sem o comando do grande Capitão, sem meios de prosseguir na luta armada, procurou refazer sua vida com outros planos.

Mas não era nada fácil a vida de ex-cangaceiro. Foi perseguido, caçado, tido como valioso prêmio. Sempre acossado, vagueou pelo sul da Bahia, retornou a Sergipe, passou uma temporada no Rio de Janeiro até retornar novamente a Poço Redondo, dessa vez para resolver problemas familiares, vez que o seu pai havia falecido. Seu desejo era permanecer no seu lugar, tomando conta do seu quinhão na herança, mas teve de retornar a Nova Iguaçu para cuidar de outros negócios seus deixados por lá.

Ainda naquelas distâncias, saudoso, martirizado pela vontade de retornar de vez, não suportou mais e decidiu regressar. Ao retornar dá início ao seu plano maior: ser o primeiro prefeito do então emancipado município. A antiga povoação havia alcançado sua independência política em 1953. E a primeira eleição já estava sendo organizada.

Mesmo sendo lembrado pelos adversários como o “ex-cangaceiro”, Zé de Julião era benquisto demais perante a população. E sua vitória era dada como certa. Disputou com Artur Moreira de Sá, um político famoso em Porto da Folha, de onde Poço Redondo acabava de ser desmembrado, e o resultado foi surpreendente, pois deu empate: 134 votos para cada um. Pelo critério da idade, Artur Moreira acabou sendo eleito, pois mais velho que o filho de Seu Julião.

O resultado, contudo, não foi motivo para desânimo, pois ele já se mostrava fortalecido o suficiente para ser o escolhido na eleição seguinte, a de 1958. Assim achava e assim planejou. Não sabia, porém, que teria como adversário, além de um candidato propriamente dito, também as principais lideranças políticas do estado, a corrupção eleitoral, a justiça tendenciosa e toda sorte de perseguições. Vinte anos depois e a face de ex-cangaceiro ainda era explorada pelos concorrentes. Fato marcante é que aqueles declaradamente seus eleitores deixaram de receber os títulos eleitorais.

Mesmo jogado às feras, acossado de todo lado, vendo a injustiça imperar, resolveu não fraquejar e decidiu levar adiante seu sonho de ser prefeito. Contudo, não havia como vencer sem ser votado, e a maioria de seus eleitores não podia votar. No dia da eleição, sabendo que os títulos negados lhe tiravam qualquer chance de vitória, convidou alguns vaqueiros amigos e, como numa cavalhada desenfreada, com todos montados nos melhores cavalos, saiu invadindo seções eleitorais e saqueando urnas. No lombo dos animais as provas das aviltantes manobras políticas.

Não só teve seu sonho desfeito mais uma vez como se viu encurralado pela justiça. A ordem de prisão foi prontamente expedida. A polícia procurava-o por todo canto, mas ele continuava ali pertinho, no vizinho município baiano de Serra Negra e sob a proteção do poderoso coronel João Maria. Contudo, tempos depois é cercado pela polícia sergipana e preso. Passou pouco tempo na penitenciária e foi liberado por interferência política, sob a promessa de que transformaria sua revolta em aceitação governista. Sem saída, aceitou, mas não engoliu o acordo. Era do seu feitio ser assim.

Em liberdade, planejava ser candidato novamente, mas foi insistentemente aconselhado por amigos a passar uns tempos noutro estado até a situação política e judicial se mostrar mais confiável. Então comprou passagem e seguiu. Mas dizem que nunca chegou ao seu destino. Outra versão diz que já estava em Salvador quando resolveu retornar. Não propriamente a Poço Redondo, mas para ficar escondido nos arredores esperando o momento certo para acertar contas com antigos desafetos políticos.

Nada disso pode ser confirmado. O que se tem como verdade é que viajou e se manteve por um tempo afastado de seu berço de nascimento. E também que retornou, pois numa manhã de domingo, 19 de fevereiro de 1961, Zé de Julião foi encontrado morto, assassinado, num lugar chamado Bastiana, nos arredores de sua querida cidade. As motivações desse crime ainda hoje são controversas. Muitos asseveram que foi morto à traição e a mando daqueles com quem pretendia ajustar contas, resolver na bala mágoas políticas ainda não esquecidas. Algum dia contarei a verdade de toda esse fatídico episódio.

Eis, portanto, parte da história desse grande sertanejo. Contudo, ainda que sua saga seja comprovadamente rica de dramaticidade e sua vida tenha sido tão marcante, por muitos anos ficou completamente esquecida da população poço-redondense. Inacreditável que pudesse ter acontecido assim, mas foi preciso que Alcino desencavasse a história desse grande sertanejo para que o seu conterrâneo passasse a conhecer esse épico maior.

Continua...

Poeta e cronista

blograngel-sertao.blogspot.com